PARTE II - DOCUMENTAÇÂO
VII - Parecer do dr. Nilo Costa, advogado e consultor jurídico da Municipalidade
Exmo. sr. prefeito municipal - Dando cumprimento ao que me foi
por v. exa. determinado, venho apresentar o resultado do estudo que fiz, relativamente a uma série de artigos, sob a epígrafe A planta de Santos,
publicados na Seção Livre d'O Estado de S. Paulo e firmados pelo dr. Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, chefe da Comissão de Saneamento
desta cidade.
A referida planta foi apresentada à Câmara Municipal em 1910 e, como não tivesse sido aprovada,
conforme as reiteradas solicitações do seu elaborador, vem ele, como molestado na sua autoridade profissional, verberar, pelas colunas daquele
jornal, o procedimento da nossa Edilidade, sem querer absolutamente atender as razões contidas no Parecer da mesma sobre o assunto.
Deixando de lado o merecimento técnico da aludida planta, cuja apreciação escapa às minhas
atribuições, para só encarar as questões de direito que ela envolve, tenho a dizer que a sua aprovação por parte da Câmara seria, sem dúvida, um ato
de temeridade e irreflexão administrativa, cujas conseqüências não poderiam ir buscar uma justificativa na ignorância e inconsciência da corporação
a que está confiada a gestão política dos negócios municipais.
Se o signatário dos artigos em questão tivesse uma compreensão mais nítida da situação jurídica em
que ficaria colocada a Municipalidade, aceitando e aprovando imediatamente o seu trabalho, certamente não se lhe afiguraria tão fácil a questão a
resolver.
Entende ele que o seu plano de melhoramentos desta cidade é perfeitamente exeqüível e para a sua
realização duas soluções oferece. Conforme a primeira, a aprovação da planta terá como conseqüência a declaração de utilidade pública dos terrenos
necessários às praças e ruas, a permissão, para serem exploradas, nestas faixas, benfeitorias de caráter transitório, estabelecendo-se legislação
especial para edificações aí feitas; a isenção de impostos sobre a frente ou superfície de tais terrenos a desapropriar, não se exigindo que sejam
murados na largura prefixada para as ruas. Quanto à segunda, consiste esta na expropriação dos eixos das futuras ruas, e aplicar ao caso as posturas
que estabelecem o recuo de um certo número de metros de cada lado do eixo, para todas as edificações marginais.
Por mais eficientes que sejam essas soluções, a aplicação delas teria de fatalmente violar
o direito da propriedade, constitucionalmente garantido, a não ser que a Câmara se achasse atualmente em condições econômicas tais que pudesse arcar
com a enormíssima indenização de todas as propriedades que, de conformidade com a planta, ficam sujeitas à desapropriação, o que, porém, não
acontece.
Ora, não havendo recursos capazes de comportar tamanho encargo, que seria uma conseqüência
imediata do ato aprobatório da planta, restaria à Câmara o expediente de aplicar à viação urbana o que dispõe a lei n. 1.855 sobre a viação férrea,
isto é, APROVADA UMA PLANTA DE MELHORAMENTOS, ESTÃO, IPSO FACTO, DECLARADOS DE UTILIDADE PÚBLICA TODOS OS TERRENOS NELA DEMARCADOS PARA A SUA
REALIZAÇÃO E, CONSEGUINTEMENTE, AS BENFEITORIAS ULTERIORES NÃO ONERARÃO A DESAPROPRIAÇÃO A FAZER "EM QUALQUER TEMPO".
Mas, neste caso, entendo que ainda que a Municipalidade tivesse competência para utilizar-se desta
medida, aplicando à sua viação urbana as disposições daquela lei, elas, entretanto, atentam contra o direito de propriedade, pois, apesar de ser
declarado de utilidade pública um terreno, a desapropriação só se dá por efetuada depois que o seu dono recebe o preço da indenização e, assim,
enquanto isso não acontece, pode ele continuar a exercer sobre o mesmo todos os seus direitos, como legítimo titular que é, inclusive o de
estabelecer nele as benfeitorias que entender.
Impedir, pois, que as faça ou de contemplá-los na futura indenização, é isso uma violação positiva
do direito patrimonial que a administração deve respeitar.
Concluindo os seus artigos, o digno chefe da Comissão de Saneamento de Santos lembra ao Estado a
necessidade de tomar, quanto antes, a iniciativa de modificar e ampliar as leis vigentes relativas à expropriação por utilidade pública, conforme as
exigências do progresso quanto aos melhoramentos públicos, especialmente aos planos de saneamento.
Entende ainda que o Estado deve criar legislação nova no sentido de garantir a execução de tais
planos nas cidades onde os tenha de fazer.
Mas, como a intervenção do Estado no empreendimento e execução de obras de tal natureza terá lugar
em qualquer das seguintes hipóteses: ou a Câmara de uma localidade tem os necessários recursos para levá-las a efeito e entretanto não o faz por
descurar criminosamente das atividades públicas, ou ela absolutamente não os tem; segue-se daí que, neste último caso, o Estado, na impossibilidade
econômica de exigir ao município o ônus da realização integral do plano de melhoramentos que lhe impõe, deve por ele responder, mas isso sem
detrimento da autonomia municipal, que é um princípio constitucional.
Mais claro e aplicando ao nosso caso: a Câmara não pode de nenhum modo assumir as conseqüências do
ato da reclamada aprovação; ora, se o Estado, de acordo com a teoria do absolutismo administrativo que o dr. Saturnino de Brito parece defender,
considera uma necessidade inadiável e suprema a adoção da planta em questão, é imperioso que chame a si a iniciativa de quanto haja de fazer para
garantir a execução de seus trabalhos, e aí ficarão também o ônus e a responsabilidade das indispensáveis desapropriações.
Antes de concluir, ainda algumas considerações do instituto da desapropriação, para acentuar
melhor a evidência da impraticabilidade do plano de melhoramentos elaborado pelo dr. Saturnino de Brito.
Não é indispensável aqui indagar do fundamento, da natureza do direito de desapropriação por
necessidade ou utilidade pública.
De quantas teorias se tenham arquitetado a respeito, a mais lógica e a mais jurídica, para
explicar a razão fundamental desse direito, é a que só vê no exercício do mesmo aplicações concretas do grande princípio de que ao Estado compete,
no interesse público, impor à integridade do domínio as limitações DEFINITIVAS OU TEMPORÁRIAS, RESTRITAS OU AMPLÍSSIMAS, conforme o caso exige,
sujeitas todas à condição primordial da indenização pela privação, que ao proprietário advém, do seu direito.
Com ela se harmoniza, como diz L. de Almeida (Desapropriação por utilidade pública, Rev.
Predial, vol. 1, fasc. 1) o magno princípio dominante em toda a matéria de Direito Público, na moderna teoria do Estado da ordem jurídica - de que o
direito de Estado na desapropriação vai até onde legitimamente chega a necessidade ou utilidade pública a que a desapropriação vai servir.
Segundo nos ensina a história, esse direito excepcional do Estado a nenhuma das idades civilizadas
foi estranho.
Assim é que não poucos textos, que dele dão testemunho, encontramos em escritores tanto da
Antiguidade como da Idade Média.
De existência precária, sem dúvida, pois que não se achava consagrado de um modo claro e positivo
nos momentos legislativos de então. Entretanto, no seu exercício, salvo casos de prepotência que se repetem em todos os tempos, era normalmente
respeitada e guardada a inviolabilidade do direito da desapropriação privada.
Pelo que, o conceito da desapropriação, seja ela considerada "um ato de soberania, uma restrição
do domínio, uma venda obrigatória etc.", implica o da indenização.
A indenização, porém, deve ser justa (Cód. de Napoleão, art. 545); e assim se entende, diz
o conselheiro Ferreira Vianna, no seu parecer impugnando a lei n. 1.020, de 26 de agosto de 1903, "quando
ela é determinada na razão composta do valor dos bens desapropriados e do prejuízo resultante da desapropriação, da depreciação da propriedade que
continua em poder do desapropriado e dos trabalhos que ele será obrigado a fazer".
Neste particular não há divergência na legislação dos povos cultos e na jurisprudência geral.
Assim se acha a indenização compreendida nos textos das nossas leis sobre o assunto e mais
explicitamente no art. 26 do dec. n. 353, de 12 de julho de 1845, e no art. n. 12, parág. n. 4º, do dec. n. 1.664, 27 de outubro de 1855, expedido
para a execução do dec. 816, de 1º de julho do mesmo ano.
Mas a indenização deve, além de justa, ser prévia, conforme já se encontra entendida na lei de 9
de setembro de 1826, que a nossa Constituição (art. 72, § 17) mantém como garantia absoluta assegurada ao expropriado, aliás reproduzindo a
Constituição Monárquica (art. 179, § 22): "...Se o bem público legalmente verificado, exigir o
uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele PREVIAMENTE INDENIZADO do valor dela".
Deste modo, se a plenitude do direito de propriedade apenas sofre a única restrição do bem
público, a prévia indenização é um preceito absoluto; e, qualquer que seja o caso de desapropriação, não se efetuando ela senão depois de
devidamente indenizado o expropriado, este, enquanto o não é, continua na posse de sua propriedade, da qual só poderia ser privado por um ato de
prepotência.
É o meu parecer, que submeto ao dos doutos.
Santos, 15 de maio de 1914. - Nilo Costa, advogado.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 213) |