PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
XV - A religião da temperançaNa
réplica que ofereceu ao primeiro artigo desta série, defende-se o ilustre sr. Saturnino de Brito da "acusação" que lhe fizemos de ser sóbrio,
temperante e abstinente. Em primeiro lugar, não o acusamos de possuir tão belo conjunto de predicados pessoais; explicamos, apenas, que essas
virtudes, essa compressão contínua e sistemática das funções orgânicas, é que o predispunham, como à generalidade dos positivistas ortodoxos, à
misantropia, à irritabilidade crônica de caráter, às vacilações da vontade, ao torpor da inteligência, ao desequilíbrio mental.
Em segundo lugar, nós não o aconselhamos, nem aos seus respeitáveis confrades, a entregarem-se a
orgias báquicas e sultanescas, na perenidade das calaçarias noturnas. O que pensamos é que todo homem equilibrado tem o dever de dar justo
derivativo e metodizada expansão às inclinações irreprimíveis da natureza. O contrário - e os fatos cotidianos o estão provando, dentro mesmo dos
monastérios positivistas - constitui um prejuízo pessoal para os abstêmios e um alarmante perigo social para a coletividade.
Sem querer dirigir-nos indiretas, pois declara não nos conhecer, o sr. engenheiro entende que
piores do que os abstinentes são os intemperantes, os que abusam dos excitantes quaisquer. Engana-se redondamente s.s.: não são raros os exemplos
eminentes em oposição à sua afirmativa. Há naturezas viciosas, dando esplêndida demonstração da mais perfeita nobreza moral; e almas banhadas de
pureza mística, refocilando-se torpemente nas mais funestas degradações da matéria.
Um famoso moralista francês - Duclos, cuja encantadora obrinha Considérations sur les moeurs
Augusto Comte incluiu na Biblioteca para uso do proletariado, sustenta que, através da corrupção dos costumes, pode-se manter inalterável a pureza
dos sentimentos.
E quantos casos não conhecemos nós, a cada momento, de indivíduos que, embora reprofundados nos
tumultos da vida passional sem regras, sem peias e sem limites, são, entretanto, verdadeiros tipos que se recomendam pela lealdade nas relações da
amizade pessoal, pela intransigente fidelidade aos princípios por que se orientam na vida, pelo devotamento às causas da pátria, levado aos mais
audaciosos rasgos da coragem e da bravura; pelo espírito simpático de solidariedade universal, pelo respeito espontâneo aos homens egrégios, às
instituições respeitáveis, à inviolabilidade da justiça, e às leis fundamentais em que a organização social repousa tranqüilamente?
Para convencermos o sr. Saturnino de Brito de que labora em engano, quando supõe que os
abstinentes hão de ser, fatalmente, melhores em sua vida moral que os intemperantes, vamos citar-lhe um duplo caso característico.
VIviam em Paris, na mesma época, sem se conhecerem, e marchando rapidamente para a glória, por
caminhos diversos, o maior filósofo e o maior poeta dos tempos modernos: Augusto Comte e Alfredo de Musset.
O primeiro, com mais de quarenta anos, era a figura calma, impassível, rígida e severa do pensador
absorvido nas suas cogitações especulativas. Preocupado com a questão social e com a crise religiosa - após ter fundado as bases da Sociologia e
sistematizado as ciências -, o filósofo de Montpelier sacrificava abnegadamente as necessidades primordiais de sua vida vegetativa em benefício da
integridade de sua vida cerebral, dedicada, até à morte, à solução positiva do problema humano.
Reduzira a sua alimentação ao mínimo possível e abstivera-se de todos os excitantes em voga. Como
higiene mental e em complemento indispensável à higiene física que instituíra para o seu uso pessoal, dando rigoroso e inquebrantável exemplo aos
seus discípulos e adeptos, ele abolira as leituras revolucionárias de qualquer espécie, e além das suas prolongadas meditações filosóficas, o seu
espírito apenas se comprazia na leitura de um capítulo da Imitação de Cristo, pela manhã, e de outro, pela noite, à hora de dormir.
Isto lhe trazia a calma cerebral, perturbada pelo excesso das suas exaustivas preocupações
cotidianas, de pensador que tinha dedicado todas as forças do seu coração e todas as luzes de seu gênio à obra ingente da regeneração humana. Quem
conhece, em todos os seus detalhes, a vida do fundador do Positivismo sabe que, já nessa época, a sua pureza moral roçava pelos esplendores da
santidade.
Alfredo de Musset, ao contrário, era o tipo modelar do poeta boêmio, embora, nas suas quedas para
o vício, jamais perdesse a linha inflexível de elegância que lhe viera com o sangue e a nobreza de seus antepassados. A sua poesia, onde os
sentimentos mais vivos do coração humano pulsavam, tocando profundamente a alma de seus contemporâneos, fora o primeiro irreverente golpe dos novos
ideais contra os vistosos castelos e os redutos do romantismo, até então inexpugnáveis.
Os seus versos eram lidos avidamente pela mocidade, e o seu nome, repetido de boca em boca, entre
palavras e exclamações do mais frenético entusiasmo e da mais elevada admiração. Abriram-se-lhe os salões parisienses, ele freqüentou a Corte
dissoluta do segundo império, foi o herói das trágicas paixões desse período funesto; desperdiçou a vida entre as mulheres, o jogo e o vinho - os
três prazeres de que mais vertiginosamente abusara até morrer.
As casas de batota, os prostíbulos e as tabernas - foram, nos intervalos que lhe deixavam os seus
altos deveres para com a sociedade aristocrática de Paris - o cenário tríplice em que ele mergulhou seu gênio, atraído pelas irresistíveis
fascinações do vício.
Augusto Comte, em sua plena madureza, curtia, com amargor, a solidão em que o deixara o abandono
de sua esposa - uma pobre transviada, com quem ele, por um impulso de generosidade, se casara, para livrá-la das responsabilidades e da punição de
um processo policial.
Um dia, o acaso colocou-o em face de Clotilde de Vaux, que então resplandecia em toda a pujança da
sua peregrina beleza e do seu poderoso talento. A graça espontânea, a formosura, a inteligência notável daquela jovem senhora, impressionaram
vivamente o coração sensível do filósofo. Mas o que mais o impressionou foi saber que ela, como ele, vivia erma dos afetos conjugais - forçada a
separar-se de seu marido, um incendiário foragido, que a justiça condenara a galés e que a polícia francesa procurava encarniçadamente.
A similitude dos seus respectivos infortúnios domésticos aproximou-os; e a paixão explodiu com
veemência na alma do reformador. Aquela organização comprimida pelas macerações, pelos jejuns, pela temperança, pela abstinência, vibrou de súbito
no renascimento desse novo afeto.
Augusto comte pediu respeitosamente a Clotilde de Vaux uma entrevista, a que ela compareceu. O
filósofo, depois de expor-lhe a situação cruel em que ambos viviam, propôs-lhe a constituição de um lar, a que seria dada organização legítima, logo
que as condições pessoais de cada um deles o permitissem.
O filósofo deferiu delicadamente à espontaneidade de sua amiga, a época em que as conseqüências
completas dessa união deveriam verificar-se. Clotilde de Vaux anuiu à proposta do filósofo e retirou-se da casa deste, tão casta como entrara, e
para nunca mais lá voltar.
De fato, durante o trajeto para a sua residência, meditou sobre o que lhe fora proposto e, ato
contínuo, escreveu a Augusto Comte uma carta, declarando-lhe que era incapaz de se entregar, a quem quer que fosse, sem amor, e de assinar um
contrato sobre a sua pessoa. Dava o dito por não dito e esperava que as suas relações continuassem como dantes, isto é, no mesmo pé de platonismo
literário e epistolar.
O fundador do Positivismo, ao ler a carta, sofreu um doloroso abalo e deu a Clotilde imediata
resposta. Verberava-lhe, com indignação e acrimônia, a inconstância, própria do sexo, e fazia-lhe sentir que, conservando os ardores da juventude
através da sua madureza física, lhe não era possível manter-se na pura esfera das relações platônicas que ela acabava de propor-lhe. E em frase
cálida, em estilo nervoso e impetuoso, inflamado nas violências de uma paixão que o ia tornando irresponsável - insistia pelo cumprimento da palavra
dada no decorrer da entrevista.
Nova negativa. Nova epístola do filósofo, com redobrada insistência. Foi então que Clotilde de
Vaux, em meia dúzia de linhas enérgicas e decididas, ameaçou-o, caso insistisse, de nunca mais tornar a vê-la; e foi só então que, diante da
resistência da mulher adorada, o filósofo submeteu-se e consentiu que a sua desvairada paixão se fosse transformando aos poucos num afeto cheio de
pureza, idealismo e santidade.
Eis aí: se não fosse a resistência oposta por Clotilde de Vaux, Augusto Comte, apesar de seus
severos princípios filosóficos, de suas preocupações absorventes de pensador, de sua elevação moral, de seus jejuns, cilícios, abstinências e outras
práticas compressoras - teria resvalado na vulgaridade de uma união ilícita, fundada egoisticamente nas solicitações pecaminosas da carne.
Se tal se desse, a Religião da Humanidade não teria sido fundada, porque, perdida a sua pureza na
trivialidade de uma paixão sensual, Augusto comte não se elevaria à concepção da Utopia da Virgem-Mãe, que é a pedra angular do Positivismo
ortodoxo, como o mistério da Eucaristia é a pedra basilar do Catolicismo. É por isso que os positivistas glorificam Clotilde de Vaux e a consideram
colega de Augusto comte na fundação do novo Credo.
Vejamos, agora, como procedeu Alfredo de Musset, em circunstâncias análogas. Belo, jovem,
elegantíssimo, adulado, graças ao seu mérito e à audácia com que abrira à poesia francesas novos horizontes - o grande poeta, como dissemos, vivia a
vida solta de um boêmio parisiense, dando a seus vícios completo repasto e francos derivativos.
Não tinha doutrina moral ou filosófica que comprimisse os seus impulsos, era intemperante, era
incontinente, era o temperamento que ele mesmo descreve e estuda nas suas conhecidas Confissões. Mas, através e apesar dos desvarios de sua
conduta, o seu coração permanecia reto, bondoso e puro.
Numa de suas mais angustiadas crises amorosas, ele retirara-se para a província, a fim de
descansar e retemperar-se, no seio da família e à sombra do parque frondoso e antigo onde folgara nos dias da meninice.
Uma noite, a desoras, debruçado à janela de sua câmara, ele contemplava a paisagem circunvizinha,
impregnada de silêncio, tocada de solidão e banhada pelas magnificências do luar do campo. A um ruído na porta do quarto, que se abrira lentamente,
voltou-se; e a figura de uma sua prima, envolta no roupão de seda branca e com as louras tranças desmanchadas às costas, surgiu-lhe em frente...
Palpitante de amor pelo mancebo, levada de admiração pelo poeta, vinha oferecer-lhe a flor
primaveral de sua beleza desabrochante. A luz do luar, introduzindo-se pela janela aberta, punha na cabeleira da moça os toques e os reflexos de uma
visão espiritualizada.
Tudo convidava às tentações do pecado: a brancura do luar, a solidão da campanha, os eflúvios dos
arvoredos do parque, o abandono da jovem, a cegueira de sua paixão ingênua, o fulgor de seus cabelos doirados, a palidez de sua emoção, o tremor de
seus lábios, o entrechocar nervoso de seus dentes, a ternura de suas frases, o ofegar de seus seios, o bater acelerado de suas artérias...
Pois bem: Alfredo de Musset, o dândi dos salões parisienses, o cultor impenitente do vinho
e das mulheres, que perambulava das alcovas para os prostíbulos e dos prostíbulos para as tabernas - tomou piedosamente nos braços aquela frágil
criatura, aconselhou-a com fraterno afeto, persuadindo-a de que a sua inexperiência a comprometia e fê-la sair de sua câmara de rapaz estróina, mais
casta do que Clotilde de Vaux sairia da casa de Augusto Comte, se não resistisse...
Diga-nos agora o sr. Saturnino de Brito: quem foi mais grandioso na sua superioridade moral? O
filósofo rígido, abstinente e severo, que fundara uma doutrina orgânica para regenerar o mundo; ou o poeta revolucionário, intemperante e boêmio,
que não tinha doutrina alguma com que se orientar na vida?
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 115) |