PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
XVI - Conclusão parcialO
paralelo que ontem estabelecemos, entre a conduta moral de Augusto Comte e a de Alfredo de Musset, em situações pessoais análogas, prova, de sobejo,
que nem sempre a compreensão dos instintos orgânicos, pela abstinência e pela temperança, coloca os homens acima das contingências do pecado.
Releva notar que Alfredo de Musset não era indiferente à paixão da jovem que o fora procurar na
solidão de seu quarto, a desoras: numa de suas Nuits, ela a invoca como sua musa, tarjando o mesmo flutuante roupão de seda branca e trazendo
as madeixas loiras esparzidas sobre as espáduas, exatamente como ela lhe aparecera por aquela noite de luar idílico.
Escrevendo longe de nossos livros entre as quatro paredes do quarto de um hotel, só consultamos as
reminiscências de nossa memória: é natural, pois, que, nas nossas narrativas e citações, escapem detalhes essenciais e haja mesmo possíveis enganos
que não alteram, contudo, o conjunto de nossas apreciações.
Já Augusto Comte, antes de ser o austero reformador que deslumbrou o Ocidente com as fulgurações
de seu gênio e a santidade de sua moral - tinha resvalado pelos despenhadeiros do pecado. Quando estudante em Paris, ele vivia de lecionar
Matemática; e por essa época manteve relações adulterinas com a esposa de um amigo e discípulo, mme. Paaulina ("Ma Pauline", chamava-lhe
carinhosamente o filósofo, numa de suas Lettres à Vallat, referindo-se à mulher do outro). Dela houve uma filha, que pouco depois sucumbiu
aos estragos da varíola.
Os positivistas atenuam a gravidade dessa queda, dizendo que o seu idolatrado mestre, muito moço
ainda, entregue ao turbilhão da vida parisiense, e sem uma doutrina que o amparasse (porque ele rompera com a religião materna, que era a católica),
deixara-se arrebatar na voragem. Vamos encontrá-lo, entretanto, muitos anos depois, no apogeu da madureza e no zênite de sua carreira filosófica,
querendo reproduzir as leviandades da juventude...
E todavia os positivistas são tão severos, tão rigorosos e tão intolerantes para com as naturezas
que caem como o seu chefe, sem possuírem, contudo, os eminentes predicados deste!...
Remata o sr. Saturnino de Brito o seu artigo, dizendo que os jornalistas implicam com os
positivistas porque se sentem incomodados com a implacável sentença de Augusto Comte a respeito do jornalismo. O modo por que nos temos referido ao
filósofo e à sua obra prova que não implicamos nem com um, nem com outro. Implicamos, sim, com a hipocrisia dos famigerados carolas positivistas que
querem dominar o mundo, aparentando uma conduta em desacordo com os seus mais secretos instintos.
Também o positivismo combate o clericalismo, mas respeita a religião católica, contribui
pecuniariamente para o seu culto externo e aconselha aos que não podem atingir a positividade a que permaneçam fiéis ao catolicismo.
Aliás, a sentença de AUgusto Comte deve ser entendida com o espírito de relatividade com que a
formulou o filósofo, e não com o absolutismo que lhe emprestam o sr. Saturnino de Brito e seus confrades. O filósofo confessa que o derramamento de
sua doutrina na América do Sul foi devido, principalmente, a um jornalista e seu jornal - a d. José Segundo Florez e ao periódico Ordem e
Progresso, redigido em espanhol.
A circunstância de d. José Florez ser jornalista não impediu que Augusto Comte o considerasse como
seu discípulo ortodoxo, escolhendo-o para seu executor testamentário.
Também o sr. Miguel Lemos, chefe da Igreja brasileira, numa das suas Circulares anuais, elogiou a
série de artigos jornalísticos que o autor destas linhas escreveu outrora em defesa da Utopia da Virgem-Mãe, atacada por um eminente pregador
católico, do púlpito da Sé de São Paulo. A redação d'A Platéa, que publicava tais artigos, foi solenemente excomungada pelo bispo de então.
Mas, deixemos de lado essas penosas recordações da mocidade, que já vão bem longe, e retomemos o nosso tema.
Ninguém ignora a leviandade e a incompetência com que a maior parte dos jornalistas, em todo o
mundo, decide das questões quaisquer, sobrepondo as suas opiniões pessoais às opiniões dos homens capazes. Todo o indivíduo que assim procede, quer
seja profissional, quer não, faz obra de jornalista, porque decide em Sociologia sem saber Aritmética, segundo a expressão do filósofo.
Ora, no caso que nos preocupa, nossa conduta não foi de mero jornalista, escrevendo por dever de
ofício. Combatemos a planta geral de Santos, do sr. Saturnino de Brito, e as suas clamorosas heresias jurídicas, não em nome de nossas opiniões
individuais, mas citando opiniões competentíssimas de engenheiros, de arquitetos e de jurisconsultos.
Quando afirmamos que o engenheiro-chefe do Saneamento apresenta sintomas de desequilíbrio, não o
fizemos em nome do nosso critério personal, mas citamos uma opinião infalível para o sr. Saturnino de Brito: a opinião de Augusto Comte, que
diz que o desacordo entre as opiniões e os atos é o que caracteriza a alienação mental. Não agimos, pois, como jornalistas neste debate, porquanto
não decidimos por nossa conta e risco em assunto de tanta magnitude: invocamos humildemente a egrégia opinião dos homens capazes.
Obra de jornalista -segundo o conceito ortodoxo - foi, sim, a sua obra nesta campanha. S.s.
superpôs orgulhosamente a sua opinião pessoal à de Bouvard, à de Camilo Sitte e outros especialistas, quanto às condições técnicas de sua planta
geral, e com o seu puro critério individual, combateu o pensamento dos constitucionalistas e dos civilistas que se opõem às suas despropositadas
idéias sobre o direito de propriedade e o instituto da desapropriação. Nesta longa contenda, o verdadeiro jornalista, do tipo fulminado pela
sentença de Augusto Comte, foi s.s., que decidiu em Sociologia sem saber Aritmética.
Tínhamos dado por terminada a nossa tarefa. Na sua réplica aos drs. Silva Telles e Nilo Costa, o
sr. Saturnino de Brito deixou vitoriosamente de pé a argumentação daqueles dignos profissionais, e a nossa. Nada havia mais a acrescentar ao que
nestas colunas foi dito.
O engenheiro-chefe do Saneamento provocou à luta a nossa Municipalidade: cá esperávamos as suas
primeiras escaramuças no terreno das demonstrações práticas para nos colocarmos ao lado dos que defendem a autonomia municipal, a propriedade
particular dos munícipes santistas, o direito constituído e a pureza do regime republicano, em nome da ordem e visando o verdadeiro progresso.
Eis porém que s.s. resolveu replicar, um por um, aos artigos desta série, segundo acabamos de ver
na seção livre do Estado.
Somos, pois, obrigados a oferecer-lhe nossa tréplica.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 120) |