PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
XIV - Fluxo e refluxo de opiniões
Gustavo d'Eichtal, condiscípulo e amigo de infância de Augusto Comte, em carta de Berlim, dando conta de
suas impressões do respectivo meio, escrevi ao filósofo: "...o jesuitismo
protestante é dez vezes pior que o jesuitismo católico, porque tem menos boa fé que este".
Isto foi escrito em 22 de agosto de 1824, há precisamente noventa anos. Por esse tempo, Augusto
Comte ainda não tinha fundado o seu sistema doutrinário, ainda não se encontrava nos grandes dias do seu apogeu filosófico e da sua glória de
reformador imortal. Estudava em Paris e lecionava Matemática para viver.
Passaram-se os anos. O filósofo descobriu as leis fundamentais da Sociologia, sistematizou as
ciências e instituiu a Religião da Humanidade - coronide última de seus primitivos esforços. O positivismo, transformado em credo religioso,
disseminou-se, mais ou menos rapidamente, por alguns países da América do Sul, correspondendo assim às previsões do seu fundador, que atribuía, às
populações desta porção do planeta, preponderante papel na propaganda do moderno credo.
Augusto Comte confessa que o trabalho de expansão da sua doutrina no continente americano foi
devido, principalmente, a um jornalista - d. José Segundo Florez -, e a seu jornal Ordem e Progresso - único, aliás, que o Sumo Pontífice do
Positivismo lia.
Ora, se Gustavo d'Eichtal vivesse hoje e fosse contemporâneo da propaganda positivista, se
convivesse com as igrejas ortodoxas e as igrejas cismáticas de Londres, de New Castle, de Paris, do Chile, de Bombaim, e sobretudo do Brasil, daria
conta de suas impressões nos seguintes termos: "Eu disse, em 1824, que o jesuitismo
protestante é dez vezes pior que o jesuitismo católico, porque tem menos boa fé que este. Agora, porém, deparei com um jesuitismo vinte vezes pior
do que o jesuitismo protestante, porque é inteiramente destituído de boa fé: - é o jesuitismo positivista".
Os adeptos religiosos do positivismo, entre nós, e em qualquer grau - positivistas completos,
prosélitos ou meros simpáticos - são geralmente e habitualmente uns refinados hipócritas. Sob a aparência e a máscara da austeridade pessoal e
cívica, escondem-se corações ofegando e pulsando ao ritmo violento e anormal das mais perigosas paixões.
Excetuam-se, é claro, umas cinco ou seis individualidades egrégias que, mesmo sem se inspirarem
nas lições do Catecismo Positivista, seriam dignas e respeitáveis, por terem nascido fundamentalmente boas e terem, no decurso de sua
carreira, aplicado generosamente ao bem geral os seus talentos e as suas virtudes. A continuidade do exercício desenvolve as funções - e essas
individualidades tenderam, por isso, a tornar-se cada vez melhores.
O sr. Saturnino de Brito, porém, é do tipo acabado do carola positivista. A sua humildade é
postiça, é falsídica a sua modéstia, é fingido o seu desapego às solicitações pessoais da vaidade e do orgulho. Aparenta, com habilidade, que o
interesse público e o amor ao cumprimento do dever profissional é que o levam a bater-se pela aprovação da sua planta, com avenidas de 120 metros de
largura - quando o que o mantém na sua teimosia é, para os homens experientes, a fatuidade de ligar seu nome às reformas da cidade e o despeito,
porque, apesar de sua apregoada sapiência e de seu prestígio técnico infalível, o seu trabalho foi analisado minuciosamente, severamente criticado
e, finalmente, condenado por absurdo, por anti-estético, por anti-econômico, em uma palavra - por inexeqüível, com qualquer Câmara, com qualquer
governo e em qualquer ocasião.
Diz que não se envaideceu com os elogios, estampados outrora nesta folha, em relação à sua
individualidade; mas vai desentranhá-los do arquivo da Comissão de Saneamento, para dar-lhes, novamente, larga publicidade, como compensação à
sem-cerimônia com que houvemos por bem tratá-lo ultimamente,no intuito de quebrar-lhe o encanto aos olhos do povo, iludido pela réclame
sistematicamente organizada em torno de suas capacidade e de seu grande nome.
Não podemos negar que A Tribuna inseriu, a 20 de junho de 1911, em sua primeira coluna
redatorial, o artigo sobre a planta de Santos, agora reproduzido noutros jornais para desagravo da reputação do sr. Brito; mas, a verdade é que era,
então, secretário desta folha, um jornalista carioca, ainda não conhecedor do nosso meio, nem das nossas várias questões locais, grandes ou
pequenas.
O sr. Saturnino enviara-nos um exemplar da famosa planta. Como se tratasse de uma obra técnica,
exigindo a respeito uma opinião de especialista, o nosso ex-secretário lembrou-se de mandar pedir à Comissão de Saneamento os dados de que
carecíamos. De lá mandaram-nos, pronto para o prelo, o artigo elogioso que o sr. Saturnino agora anda transcrevendo, com impudente vaidade, pela
seção livre de diferentes jornais.
O ex-secretário d'A Tribuna acolheu-o de boa fé, mas se o tivesse mostrado previamente ao
nosso diretor, com toda a certeza ele sofreria importantes modificações em seu contexto e uma poda completa nos descompassados adjetivos que
enguirlandavam a obra, o nome e a pessoa do chefe da Comissão.
Entretanto, pode de lado a verdade do fato, acima relatado, assumimos, intrépida e francamente, a
responsabilidade integral daquele artigo; e vamos demonstrar ao sr. Saturnino de Brito, à clara luz do critério positivista, que não existe a menor
contradição entre as nossas opiniões de 1911 e as opiniões que sustentamos agora.
Não ignora s.s. que a primeira lei da Filosofia primeira manda-nos "fazer
sempre a hipótese mais simples e mais simpática, de acordo com o conjunto dos documentos apresentados".
Ora, o sr. Saturnino aqui trabalhava há alguns anos, assentando esgotos; viera precedido de grande
fama como engenheiro sanitarista; ninguém conhecia fatos, provas ou documentos que comprometessem a nomeada que trazia de fora e a sua idoneidade
profissional e moral. Era nosso dever, era dever de todos os cidadãos refletidos, fazer a seu respeito a hipótese mais simples e mais simpática.
Diante de sua planta geral, diante do exemplar com que nos obsequiara, que dados possuíamos para negar-lhe nossos aplausos e nossa admiração, e
atacá-lo nesse momento, quando estávamos sinceramente convencidos de sua competência e de sua probidade?
Passaram-se os anos e as provas em contrário surgiram. Soube-se que os fundamentos primitivos da
ponte pênsil de S. Vicente tinham desabado, porque o engenheiro chefe, por deplorável ignorância, os implantara na areia, persuadido de que ao fundo
havia um grande bloco de rocha granítica. Foi preciso mudar o local e a direção da ponte, o que deu em resultado custar a obra três vezes mais do
que a importância em que fora orçada.
Tratou-se de abafar esse escandaloso fracasso; porém, as verdades úteis devem ser divulgadas
vastamente, e é por isso que tornamos a aludir ao desastre que tanto contribuiu para arruinar o outrora inabalável prestígio do sr. Saturnino de
Brito.
Soube-se também que s.s. pensava em construir cerca de trinta estações elevatórias para os seus
esgotos, mas, diante da crítica de um famoso especialista europeu, que, num livro sobre a matéria, mostrou-se mais que admirado - assombrado com tal
exagero, tratou de modificar seus planos, diminuindo extraordinariamente o número das estações projetadas.
Soube-se depois que o engenheiro, sr. Bouvard, consultado, a respeito da planta de Santos, pelo
seu autor, criticara as avenidas desmesuradamente largas, porque levam à tristeza, à solidão e à monotonia. Em vista disso, o sr. Brito tratou de
corrigir o erro essencial notado pelo seu eminente colega francês e plantou, nas faixas centrais, bosques de eucaliptos, que a Municipalidade, mais
tarde, deveria destruir, vendendo, como compensação pecuniária, as suas madeiras apropriadas para construções.
À sombra desses bosques, a imaginação do autor construiu jardins zoológicos e hortos botânicos;
edificou escolas e sanatórios; estabeleceu campos para jogos desportivos e ridentes logradouros para piqueniques...
Faltou-lhe - e já lho lembramos - um hospício; e agora damos-lhe a idéia da construção de uma
catedral positivista, onde os seus colegas da comissão de Saneamento, atraídos pela palavra apostólica do sr. Egydio Martins, de rabona preta e de
gravata verde, possam ir às explicações dominicais do catecismo, e às orações públicas, persignando-se ortodoxamente na cabeça, com a palma da mão
direita estendida sucessivamente sobre os órgãos respectivos do sentimento, da inteligência e da atividade, e proferindo a fórmula sagrada: "O
amor por princípio, e a ordem por base; o progresso por fim".
Soube-se ainda do fiasco dos canais destinados ao enxugo do solo. S.s. afirmava que eles seriam
sempre impetuosamente lavados pelas águas do mar. A crer nos desenhos espalhados pela Comissão do Saneamento, eles deveriam ser até navegáveis, pois
lá aparecem botes e canoas deslizando airosamente ao impulso dos remos dos tripulantes.
Entretanto, a realidade é muito outra: a água escassa, e quase parada,não dá nem sequer para que
aí flutuem os barquinhos de papel, jogados pela criançada, e que encalham no seco. A falta de irrigação abundante e a deficiência de fluxo
converteram os canais, de aparelhos de saneamento, a que eram destinados, em receptáculos de detritos que a Municipalidade precisa fazer limpar
freqüentemente para que não se transformem em focos geradores de pernilongos, de bacilos e de miasmas pestíferos de toda a sorte.
Soube-se, finalmente, que s.s. cita de falto autores, altera o pensamento dos mesmos ao grado das
suas opiniões; e, usando da hipocrisia caracteristicamente positivista, aconselha uma coisa e faz outra.
Em suma: soube-se que s.s. não era o modelo, que se inculcava habilmente, de capacidade e
moralidade profissional. Diante das referências que ouvíamos a seu respeito em 1911, a hipótese mais simples e mais simpática levava-nos, de acordo
com a primeira lei da Filosofia primeira, a tê-lo na conta de um engenheiro íntegro e capaz. Hoje, em face dos irrefutáveis documentos que existem,
e dos fatos que temos relatado, a hipótese mais simples, mais simpática e mais conforme à referida lei - leva-nos a reformar totalmente nosso juízo
anterior, para supô-lo irrevogavelmente um charlatão meio maluco.
E de que não há contradição alguma entre o juízo de ontem e o de hoje, provam-no, além da lei
teorética em que nos apoiamos, os exemplos concretos colhidos na história do Positivismo.
Augusto Comte escolhera Pedro Lafitte para seu sucessor no Pontificado da Humanidade, por ser o
"mais eminente" de seus discípulos. Mais tarde, anulou a escolha e reformou o seu juízo, por ter descoberto que o eminente discípulo era fraco de
caráter. Foi baseado no último juízo do filósofo que um grupo de positivistas franceses, brasileiros, britânicos e chilenos repudiaram a chefia de
Lafitte.
A seguirmos a lógica do sr. Brito, o primeiro juízo de Augusto Comte deveria prevalecer sobre o
último, feito, aliás, depois de uma convivência mais íntima com o discípulo e de uma observação mais prolongada do seu caráter privado e social.
Também os chefes nacionais do Positivismo, aos quais presta obediência o chefe do Saneamento,
dedicaram suas primeiras obras a Pedro Lafitte, aceitaram a sua direção, cobriram-no dos mais ternos e entusiásticos elogios, até ao dia em que o
sucessor de Augusto Comte, intervindo em assuntos da política brasileira, caiu no desagrado daqueles chefes.
Abriram eles contra o chefe geral uma campanha tremenda, na América e na Europa, substituindo os
adjetivos elogiosos da véspera pelos mais violentos epítetos infamatórios. Na opinião do sr. Saturnino de Brito é isto uma condenável contradição:
na sua lógica disparatada, nós devemos fazer, inalteravelmente, das individualidades quaisquer, o mesmo juízo que uma vez fizemos, ainda que elas
pratiquem posteriormente erros graves, sérios deslizes e talvez mesmo crimes.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 100) |