PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
IX - A inexeqüibilidade do plano geral
No quinto artigo da série, propõe-se o sr. Saturnino de Brito mostrar a exeqüibilidade do seu plano
geral, e, para isso, reedita os mesmos argumentos dos antigos anteriores, que nós, sem o menor esforço, destruímos completamente.
Ao começar, assim explica s.s. o prosseguimento da série que, no artigo da véspera, dera por
concluída: "Disse que possivelmente voltaria ao assunto".
S.s. não disse tal: depois de dar por finda a sua resposta, declarou categoricamente: "Em
outros artigos, apresentarei algumas observações". Aí não se disse que possivelmente
s.s. voltaria à discussão. A promessa foi categórica, assinalando mais uma das famosas contra-marchas em que tão repetidamente se compraz o seu
espírito instável e contraditório.
Atenda-se ainda a que o ilustre engenheiro declarou que ia apresentar "algumas observações",
quando a verdade é que s.s. escreveu, além dos outros, mais quatro longos artigos - longos, maciços, pastosos e formidáveis.
O sr. Saturnino pretende provar que as soluções propostas não abrem conflito entre o interesse
público municipal e o interesse privado dos proprietários; e cita, sem referências nominais, posturas de várias Câmaras em abono de suas
proposições.
Deixamos de analisá-las, não só porque, não sabendo a que municipalidades brasileiras alude ele,
não podemos conferir, com as citações que faz e os exemplos que cita, as leis invocadas; como também porque nada adianta para o caso santista, o que
a respeito façam as administrações dos outros municípios.
Cingir-nos-emos, pois, ao que consta de nossa legislação positiva, de cujas disposições o sr.
Saturnino supõe tirar argumentos favoráveis à exeqüibilidade de seu malogrado plano geral.
Diz s.s., quanto a Santos, o seguinte, que trasladamos integralmente para que não nos acusem de má
fé na transcrição de suas surpreendentes observações e singulares argumentos:
"1º - O proprietário de um terreno na cidade
(ou de casa condenada à demolição), com 4 metros de largura, pela disposição acima citada, não poderá construir; terá de comprar um suplemento de
terreno a um dos vizinhos ou vender o seu terreno a um destes. Se por falta de terreno anexo, ou por outro motivo, não puder fazer a operação, 'pagará
imposto sem proveito'".
Entende s.s. que "todas estas e outras
violências" são legais e são praticadas pela Prefeitura, "com
a sanção da Câmara atual", ao passo que o plano ideado por s.s., "de
arruamentos futuros, regulador do desenvolvimento da cidade", apavora a Edilidade.
A Municipalidade de 1897 fez, realmente, essa exigência, que, aliás, não importa em violência
alguma ao direito de propriedade. Ela exigiu - e a exigência perdura até hoje, para os prédios de um só pavimento - que estes não tenham
largura inferior a quatro metros e meio e não quatro metros, como, em detrimento da verdade, assevera o sr. Brito.
Ao Poder Público assiste o direito - que doutrina alguma contesta e contra o qual nenhuma lei se
levanta - de exigir que os prédios tenham certas dimensões, necessárias ao seu arejamento, à cubagem de seus aposentos e câmaras, às instalações
sanitárias, às condições higiênicas, impostas, não só pelas decisões da ciência moderna, como pela legislação estadual.
Uma casa de um só pavimento, com menos de quatro metros e meio de largura, não pode comportar uma
divisão interna que lhe assegure as condições higiênicas indispensáveis.
Pelo argumento do sr. Saturnino de Brito, ou em nome dos planos sanitários a executar-se, o Poder
Público pode dispor da propriedade alheia discricionariamente, determinando que se faça nela apenas o que seja conveniente aos seus propósitos; ou a
liberdade que tem o proprietário, de dispor de seus bens, dá-lhe o direito de construir, em seus terrenos, casas que atentem contra as regras
elementares da higiene privada e da higiene pública.
Na opinião de s.s., se o direito de propriedade é tal que a Câmara não pode se apossar de terrenos
particulares para, invocando a utilidade pública, abrir neles as ruas e vielas planejadas pela Comissão de Saneamento - podem, então, os
proprietários, fazer em seus domínios as construções que quiserem e bem entenderem.
Um cidadão qualquer, por exemplo, que possua um terreno com dois metros de largura, ou menos,
teria, segundo a lógica disparatada do sr. Brito, o direito de edificar nesse terreno. Poderia mesmo fazer um prédio sem janelas, apenas com a porta
de entrada. E como é dono incontrastável do que é seu, poderia, em vez de telhas modernas, cobri-lo de sapé, como nas épocas primitivas.
Tal argumentação não é séria. As leis municipais e as leis estaduais exigem determinadas condições
higiênicas para cada prédio, mas não proíbem ao proprietário que edifique dentro dessas condições.
Diz o sr. Saturnino de Brito que a exigência da largura nunca inferior a 4 metros e meio impede o
dono de edificar, obrigando-o a vender o seu terreno a um vizinho ou a comprar terreno deste. Se, "por
falta de terreno anexo, ou por outro motivo, não efetuar a operação, pagará imposto sem proveito".
É de uma revoltante má-fé, por sua desbriosa oposição à verdade, este argumento. A lei de 27 de
julho de 1910 declara que "essas dimensões podem ser alteradas, a juízo da Prefeitura, estando
os terrenos onde se pretenda construir, encravados entre prédios, ou não sendo possível obter área maior".
Como se atreve, pois, o engenheiro-chefe a sustentar que o proprietário fica impossibilitado de
construir no seu terreno, e a pagar impostos sem proveito? Pois a lei não autoriza, claramente, nitidamente, positivamente, a Prefeitura a alterar
as dimensões, quando o proprietário não possa conseguir área maior?
É natural que a Câmara, não podendo e nem devendo permitir que se construam casas inabitáveis,
estipulasse a largura mínima para cada prédio a construir na cidade, e os proprietários têm o maior interesse em obedecer a essa estipulação, porque
se eles edificassem, ainda mesmo que com a aprovação do poder municipal, uma casa fora das condições prescritas pela higiene, no dia seguinte, a
Comissão Sanitária, com o respectivo Código na mão, intima-los-ia a não residir nela nem locá-la a quem quer que seja.
O respeito da Municipalidade pelo direito dos proprietários é tão grande que, antes mesmo da lei
de 1910 autorizar o prefeito a alterar as dimensões dos prédios, nos casos taxados no parágrafo único do art. 1º, já ela tinha dado soluções
parciais a cada caso concreto, sujeito à sua apreciação.
Ela interpretou sempre as disposições do artigo 42, da lei número 100, de 1897, que regula a
matéria, como referentes a casas residenciais e não a quaisquer outras. É assim que, quando um terreno não tinha as dimensões necessárias para a
construção de um prédio higienicamente habitável, ela aí permitia edificações destinadas a comércio, depósitos e outros misteres. O que ela não
permitia é que se edificassem casas sem capacidade habitável, onde indivíduos morassem habitualmente, dormindo nelas, em contrário a todos os
postulados da higiene, e com menosprezo de sua própria saúde e da salubridade geral.
Ora, como se vê, não há a menor comparação entre a conduta que tem tido a Municipalidade e a que o
sr. Saturnino de Brito exige dela para a execução de seu plano geral - plano errado, plano feio, monótono e caríssimo, verdadeiro monstrengo a
escarnecer, diante do público, dos seus méritos profissionais, outrora muito apregoados, e hoje profundamente abalados.
A verdade é que a Câmara de Santos, impondo condições de certa ordem para a construção de prédios
na cidade, de forma a que a saúde dos seus moradores ficasse perfeitamente assegurada, não impediu nenhum proprietário de edificar em seus terrenos,
nem os espoliou da posse deles.
Já o mesmo não é possível dizer das intenções anarquistas do sr. Saturnino de Brito, cuja opinião,
em resumo, é esta: se a Municipalidade de Santos não pode, atualmente, despender quantiosas importâncias para desapropriar as terras indispensáveis
à execução de meu (N.E.: SIC: de seu...)
gigantesco plano - proíba, desde já, os respectivos proprietários de edificar nessas terras, para que elas não se valorizem, até que as necessidades
vão determinando as desapropriações oportunas. Em compensação, os proprietários poderão, em caráter provisório, fazer aí benfeitorias de que
usufruam rendas, benfeitorias que a Comissão de Saneamento, quando julgar azado, mandará por abaixo, sem indenização alguma.
Que semelhança existe, pois, entre as exigências das leis municipais e as monstruosas pretensões
do engenheiro-chefe do Saneamento local? Chama-se a isto expropriação sem indenização - idéia que faz parte do programa do socialismo radical, com
uma diferença: é que o sr. Saturnino de Brito - filiado, aliás, a uma doutrina conservadora e orgânica, como é o positivismo - vai mais longe que os
próprios socialistas.
Estes propendem a expropriar, para o domínio comum, os bens rurais dos pequenos proprietários,
indenizando-os. Somente os grandes proprietários serão expropriados sem indenização. O sr. Saturnino desapropria todos, grandes e pequenos, sem
nenhuma espécie de indenização.
Se este déspota dispusesse de qualquer parcela de poder governamental, Santos, a estas horas,
estaria convertida num montão de destroços, e os seus proprietários ficariam reduzidos à miséria, verdadeiros mendigos, de saquitel em punho, rotos,
famintos e esmolambados, a pedir esmolas, ao longo das vielas de progresso, das avenidas de expansão e dos canais caudalosos, com que a sua
febricitante imaginação de paranóico larvado há tantos anos sonha inutilmente.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 68) |