PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
X - Ainda a inexeqüibilidade do plano geral
Em continuação, o sr. Saturnino de Brito dá o seguinte "edificante exemplo" de que a Municipalidade
pratica violências à propriedade, em seu próprio interesse, e somente se recusa a atender às exigências da Comissão de Saneamento. Eis, na íntegra,
o que escreve s.s.:
"2º - Suponhamos que um proprietário tenha
um terreno com 'oito metros de frente'
na avenida Ana Costa; parecerá ser este um belo terreno, para uma boa casa. Pois bem, a Prefeitura de Santos, que anda preocupada em conciliar os
interesses dos proprietários dos terrenos das ruas projetadas na planta do Saneamento, essa mesma prefeitura exige (com razão) que cada prédio deixe
dois metros de terreno livre de cada lado; de oito tirando quatro ficam quatro: e como a Prefeitura não admite mais casas magríssimas, o
proprietário do belo terreno de 'oito metros de frente'
terá de comprar do vizinho, se este tiver o que vender, ou terá de vender a ele, se quiser comprar; ou então conservará o terreno para plantar
batatas ou qualquer outra coisa permitida pelas posturas (o capim já está proibido...), pois construir não poderá. Se o terreno for de sete ou seis
metros (construível em outro local), deduzidos os dois metros de cada lado, as casas a construir no restante teriam, pelas posturas, três ou dois
metros de largura... o que é contra as mesmas posturas e o senso comum".
Como já vimos pelas disposições do art. 1º, parágrafo único, da lei 339, de 27 de julho de 1910,
essas exigências não são absolutas, mas relativas. A Municipalidade, baseada na letra e no espírito daquele parágrafo, pode resolver sobre os casos
especiais que surjam, de maneira a não lesar o direito dos proprietários quaisquer.
Está claro que se o terreno for de dimensões tais que não permitam a construção de uma casa
residencial habitável, ela não consentirá na construção; e o seu proprietário, não conseguindo obter na vizinhança um suplemento, ou não podendo
vender o seu lote a um outro possuidor contíguo, terá de edificar um prédio destinado a fim não domiciliário. Não lhe convindo isto, a Câmara tem o
recurso de desapropriar, aos preços correntes, essa pequena porção de terra, a que poderá dar destino público, construindo nela um jardinete, um
belvedere, uma fonte ornamental, um refúgio pitoresco, que seja ao mesmo tempo útil e agradável aos moradores das cercanias, aos transeuntes e à
população em geral.
O que ela nunca faria, e isso está patente no espírito da lei de 1910, seria, em nome do interesse
público, proibir os proprietários de edificar em suas terras e não indenizá-los pelo valor das mesmas.
Aliás, a nossa hipótese versa exclusivamente sobre terrenos de certas dimensões, e não sobre
aqueles que, por sua exigüidade, não permitirem nenhuma espécie de edificação razoável, como, por exemplo, os que só tiverem dois metros, ou menos,
de largura.
Um homem de senso não construiria casa alguma num terreno de um metro de largura, da mesma forma
que não calçaria em botas 27 um pé 48. Independente de qualquer constrangimento por parte do Poder Público,um proprietário a quem, por fatalidade,
restasse um retalho minúsculo de terra, inaproveitável para construção, resignar-se-ia naturalmente a perdê-lo, e não pensaria nunca em levantar
nele prédio para moradia nem em plantar capinzais, como profetiza o sr. engenheiro, recordando-se dos tempos em que sobre ele pascia os seus
olhares, embevecidos na contemplação do verde...
Na hipótese do sr. Saturnino, e tendo em vista o que prescreve o parágrafo único da lei citada, a
Prefeitura, segundo o caso, pode reduzir a dimensão das áreas laterais, ou a largura dos prédios. A lei não foi decretada com o mesmo caráter de
antipático absolutismo que o sr. engenheiro-chefe está habituado a adotar nos seus projetos, planos e criações art-nouveau. A Municipalidade
de Santos inspirou-se como sempre no mais escrupuloso respeito pela propriedade particular dos seus munícipes.
Vê-se, das considerações do artigo precedente, e deste, que a Municipalidade não impede a
edificação em terrenos edificáveis, como insinua o sr. Saturnino de Brito. Com o mesmo direito com que o Governo Estadual exige que, antes de se
começar a construção de qualquer habitação, faça-se o saneamento do solo respectivo, a Câmara exige que, antes de edificar, o proprietário prove que
tem terreno suficiente para a edificação que pretende.
Ela não proíbe que se edifique: impõe condições dentro das quais a construção se deve levantar;
entre elas, a primordial é saber se há um terreno saneado e com dimensões indispensáveis ao fim proposto. Desde que o proprietário não possui um
terreno com o espaço necessário para nele construir uma casa, não pode pensar a sério em erguer semelhante construção, porque a Municipalidade e a
Comissão Sanitária viriam dizer-lhe que só um louco se lembra de edificar sem terreno.
É verdade que o sr. Saturnino de Brito, glória imarcescível da engenharia brasileira, cérebro
pejado de idéias inéditas e originais sobre construção de esgotos, de pontes e de cidades, é bem capaz de alta façanha de construir casas sem
terrenos! Haja vista a ponte pênsil de S. Vicente que s.s. quis edificar sobre areia. Um belo dia, os fundamentos vieram abaixo fragorosamente e
essa obra d'arte, que estava orçada em pouco mais de quatrocentos contos, veio a custar, afinal, à União, ao Estado e a Santos, mais de mil contos
de réis!
Foi preciso fazer de novo todo o trabalho sobre a rocha viva, mas, dado o fracasso da primeira
construção, ainda há muita gente que treme de insopitável pavor quando passa por lá. Assim como o solo em que assentaram os primitivos fundamentos
da ponte era de areia inconsistente e solta e o sr. Saturnino pensava que era de rocha granítica, inabalável e sólida, os cabos que a suspenderam
sobre as águas podem, para os desconfiados praianos, ser de frágil barbante quebradiço, em vez de arame reforçado e resistente. É preciso ter muito
cuidado com as ilusões alucinadas destes espíritos delirantes, encastelados soberbamente no seu orgulho vesânico.
Em seguida, o sr. Saturnino, contra-marchando, volta a tratar da primeira das soluções práticas
que propôs e que analisamos em artigos anteriores, pulverizando-a completamente. Tal solução resume-se nisto: aprovação da planta, declaração de
utilidade pública dos terrenos necessários às ruas e praças, com permissão de serem neles explorados, em caráter transitório, benfeitorias,
produzindo rendas; e adoção das leis do Império para a consumação impune e cínica de tão escandalosos atentados à propriedade alheia.
Já examinamos compridamente essa primeira solução prática, mostrando ao público que ela não passa
de um conjunto de disparates jurídicos e econômicos que não podem ser tomados a sério. Julgamos desnecessário insistir na nossa argumentação, que é
lógica, sensata, decisiva e irrefutável.
Repisando sobre a lei de 1855, reguladora da desapropriação para vias férreas, e que s.s. tornou
erradamente a datar de 1856, escreve o sr. Saturnino de Brito, com pedantesca superioridade:
"Mas dir-se-á: esta sentença de utilidade
pública, já estabelecida para o caso da viação extra-urbana, não deve indefinidamente permanecer: deve ter um limite para caducar se a
expropriação se não fizer efetiva. Assim devia ser, razoavelmente; entretanto, dizem-me alguns sabidos profissionais que a sentença é ilimitada!
Isto é, se a estrada se não fizer, sem uma declaração oficial que invalidade a declaração de utilidade, o proprietário não poderá construir
edificações na faixa ameaçada; se construir, e no fim de qualquer número de anos resolver-se a construção da estrada, ele perderá o valor das
benfeitorias".
E e, frases cálidas de entusiasmo, faz a apologia da lei de 1855! Com que prazer o sr. Saturnino
de Brito aprendeu que essa lei priva de seus terrenos, por tempo ilimitado, os respectivos proprietários, ainda que não sejam executadas as obras
para cuja realização foi decretada a utilidade pública! Com que ansiedade jubilosa e vingativa s.s. trabalha, cheio de esperança, para que o Estado
de S. Paulo adote essa lei, entregando, discricionariamente, em suas mãos, a propriedade particular dos munícipes santistas! Como s.s. arde de
impaciência criminosa para que chegue o decisivo momento em que, aprovada finalmente sua planta, sejam considerados de utilidade pública todos os
terrenos necessários á sua execução!
Tendo sabido que, mesmo quando as obras não sejam efetuadas, os donos não poderão reentrar na
posse de seus terrenos, o sr. Saturnino de Brito seria muito capaz de retardar a execução de seu plano, só pelo gosto satânico de ver os
proprietários santistas privados de seus domínios, sem indenização alguma!
Engana-se, porém, s.s. E engana-se, primeiro, porque, se o Estado integrasse desassizadamente na
sua legislação a lei geral de 1855, espoliadora da propriedade privada, que a Constituição garante em toda a sua plenitude, a Municipalidade - único
poder competente para aproar a planta do sr. Saturnino de Brito, não a aprovaria jamais. Os terrenos não seriam, pois, declarados de utilidade
pública, na forma daquela lei.
Em segundo lugar, ainda se engana s.s., pensando que os proprietários esbulhados não promoveriam
energicamente a reivindicação de seus domínios perante a justiça pública.
Terminado o novo exame a que, com os mesmos velhos argumentos, já por nós combatidos
vitoriosamente, sujeitou a sua primeira solução prática, o sr. Saturnino de Brito volta - insistente, enfadonho e maçador - a examinar ainda uma vez
a segunda solução proposta, que também já combatemos com sucesso e com vantagem.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 73) |