PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
Sinfonia de aberturaO
sr. engenheiro Saturnino de Brito publicou uma numerosa série de longos artigos na seção livre do Estado de São Paulo, a respeito da planta
geral de Santos, que s.s. ofereceu à consideração do Governo Municipal e que este, até agora, por motivos notórios, não aprovou, apesar das
reiterações insistentes do ilustrado chefe da Comissão de Saneamento local.
Vimos desempenhar-nos hoje do compromisso que tomamos de opor às suas prolixas considerações,
sublinhadas constantemente de maliciosas referências pessoais, as nossas contestações positivas. Aos desvarios de sua palavra irritada e aos
devaneios quiméricos de seus grandiosos projetos, teremos de oferecer a verdade nítida dos fatos, documentalmente provados, e as superiores razões
de lógica e de justiça que, de encontro aos fundamentos essenciais de seus planos, se levantam, insuperavelmente.
Confessamos que foi com imensa mágoa e não menos viva surpresa que vimos o sr. dr. Saturnino de
Brito - em quem a população de Santos admirou sempre, além do renome técnico, as esmeradas qualidades de cavalheiro, de polimento social insigne -
esquecer-se improvisamente do sincero afeto, da consideração e da solidariedade de que foi sempre cercado pelos administradores do município e
vibrar contra eles armas impróprias da educação que todos, espontaneamente, reconheciam na sua dupla individualidade privada e pública.
O reprovável descomedimento de sua linguagem, e a perfídia venéfica de suas insinuações contra a
integridade moral dos depositários do poder municipal em nossa terra, salpicam de grosseiras manchas a sua exposição de motivos e fazem compreender,
desde logo, que a s.s. falta, em argumentos racionáveis e justiçosos, o que lhe sobra em jactância, em presunção e em orgulho.
Nada, realmente, pode justificar, perante os espíritos imparciais e os corações retos, a
desapoderada rudeza de seus ásperos ataques à nossa municipalidade. O parecer n. 288, que lhe fez perder as estribeiras, é um modelo de serenidade,
de delicadeza e de voluntário acatamento aos seus méritos, efetivamente respeitáveis, mas certamente expostos à liberdade de apreciação crítica dos
que têm qualquer parcela de responsabilidade nas esferas governamentais.
O sr. dr. Saturnino de Brito habituou-se, porém, às excessivas louvainhas elegíacas, entoadas,
aqui e alhures, à sua competência; e convenceu-se de que a sua sabedoria, no departamento de que se fez especialista, escapa ao exame público de
seus colegas, de seus superiores administrativos e dos seus concidadãos em geral.
O orgulho profissional obliterou-lhe, de tal maneira, a cristalinidade do raciocínio, que s.s.,
tendo planejado a reforma da cidade, entende que à execução dos planos a adotar não podem erguer-se obstáculos de natureza alguma. Tudo e todos
devem curvar-se à infalibilidade de sua apregoada sapiência: a ordem jurídica, o direito privado, o estatuto constitucional, o conjunto das leis
positivas, elaboradas para regular as relações entre a sociedade e os governos; o poder legislativo, o poder executivo, as municipalidades, tudo e
todos devem obedecer, sem discussão, sem discrepância e sem vacilações, à sua capacidade técnica sem contrastes.
Espezinhe-se a lei, postergue-se o direito, dilacere-se a constituição, destrua-se a autonomia do
regime municipal, espolie-se a propriedade, subvertam-se os elementos básicos da ordem - mas execute-se o seu plano de reformas para satisfação
cabal do seu orgulho alvorotado e ferido. Que a fanfarra da reclame estruja sonorosamente em triunfais clangores, anunciando ao mundo estupefato a
glória sem rival deste reformador!
Entretanto, tais assomos patológicos de mal-sofrido egoísmo têm a sua explicação na própria
doutrina pela qual o dr. Saturnino de Brito modela o seu coração, esclarece o seu espírito e encaminha a sua atividade.
O ilustrado engenheiro é positivista ortodoxo, e, como a generalidade dos adeptos desse credo,
julga-se uma individualidade pairando egregiamente acima dos seus contemporâneos. O positivismo prega a humildade, a resignação, a paciência, a
tolerância e a bondade, mas os seus fiéis, na prática da vida, são exatamente o oposto dessas virtudes seráficas. São orgulhosos, irritadiços,
impacientes, intolerantes e secarrões. tendem para mandar despoticamente e esquivam-se à obediência.
A história do Positivismo, em toda a parte do mundo, é a luta insurrecional dos chefes nacionais
contra os chefes universais e dos chefes locais contra os chefes nacionais. Todos querem mandar e ninguém quer obedecer, cada qual se julga mais
senhor da doutrina do que os outros e o resultado é o fracasso geral da propaganda.
Dividido em igrejolas nacionais, retalhado em grupinhos que se guerreiam, repartido em centenares
de sinagogas que se disputam a primazia do pontificado espiritual, ele está enfraquecido e desmoralizado pela rivalidade dos vários chefes em luta.
E qual a causa desse malogro completo? A vaidade pessoal dos seus adeptos, erigidos em instrumentos de organização apostólica.
Augusto Comte, com o seu grande conhecimento do coração humano, já tinha dito que a superioridade
filosófica do positivismo era tal que tendia a desenvolver o orgulho de seus fiéis. Ele não cessava, pois, de acautelá-los contra as ciladas desse
instinto grosseiro, repetindo-lhes continuamente que a doutrina era superior a seus órgãos quaisquer, não havendo, portanto, razões para se tomarem
de excessivo orgulho os que se acolhessem à sombra de sua bandeira.
Mas os conselhos do simpático filósofo caíram em terreno sáfaro, como as sementes da parábola: o
sr. dr. Saturnino de Brito é um dos que não se aproveitaram deles; e a sua longa série de artigos resulta de uma explosão combinada do seu orgulho e
da sua vaidade.
O ilustre engenheiro quer que a sua planta seja aprovada imediatamente e sem discussão prévia e
meditada: é a vaidade ostentosa, reclamando aplausos; s.s. quer que ela seja executada desde já, embora com sacrifício dos mais legítimos direitos
privados e dos interesses públicos municipais; é o orgulho irreprimível, exigindo imperiosamente o cumprimento das resoluções sugeridas pelas
inclinações da vaidade.
Acrescente-se, ao estado de eretismo crônico desses dois instintos conexos, a proverbial dureza e
rígida severidade do regime ortodoxo, com os seus jejuns lácteos, a supressão sistemática do bife, a abolição dos excitantes quaisquer, o conjunto,
enfim, das penitências apostólicas, empobrecendo o sangue e destruindo, em conseqüência, a vitalidade do sistema nervoso, e ter-se-á compreendido
qual a razão do permanente humor azedo e da habitual irritabilidade agressiva que caracterizam, ao menos no meio brasileiro, a bizarra psicologia
dos adeptos religiosos do Positivismo.
Eles, em vez de cultivarem o desenvolvimento dos instintos altruístas, comprimem o egoísmo. Um
belo dia, toda essa compressão, longamente acumulada, explui (N.E.: = explode);
e o público, assombrado, contempla, nesse mirífico espetáculo, os contraproducentes resultados práticos da doutrina.
Com o sr. engenheiro Saturnino de Brito foi o que sucedeu: sentindo-se melindrado na sua
capacidade profissional, os seus instintos pessoais romperam brutalmente os diques das conveniências, mas os jatos recaíram em cheio sobre ele
mesmo, sobre os seus postulados teóricos, sobre os seus trabalhos de especialista, sobre os seus merecimentos e sobre a boa fama de seu nome.
O digno chefe da Comissão de Saneamento esqueceu-se de que, segundo seu mestre, só há um princípio
absoluto: - é que tudo é relativo. O seu projeto é impraticável pelo espírito de antipático absolutismo com que foi elaborado: não é relativo ao
nosso atual estado jurídico e nem às nossas atuais condições econômicas.
É o que vamos demonstrar metodicamente.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 9) |