HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Confusão no necrotério
Olao Rodrigues (*)
Naquela repartição pública federal - que hoje não mais existe - trabalhavam mais
de 100 funcionários, que usavam farda. Era a Guardamoria da Alfândega. Se todos eram amigos e cordiais, três deles tinham
amizade de irmãos, fraternos, afetuosos e sempre juntos, sempre acamaradados.
Juntos e acamaradados até nas farras, apesar de casados; nos bares, nos aperitivos, nos almoços, nos jantares,
nas ceias com ou sem mulheres. Enfim, amigos de verdade, cada qual conhecendo os segredos do outro.
Certa manhã, um deles, o mais lido, veio a saber que fora liberada pelo Tesouro a importância
correspondente à parte fiscal de um contrabando de filmes cinematográficos, canetas, lentes e outros objetos, apreendidos pelos três amigos, aos quais
coube a metade do valor e a outra ao Fisco, na importância de mais de 500 mil cruzeiros.
No mesmo dia chegou o processo à Guardamoria. E no dia seguinte, o dinheiro estava à disposição deles na
tesouraria da Alfândega. Como sempre, foram juntos receber a bolada. Da Alfândega rumaram para o Café e Bar Marreiro, onde
passaram a bebemorar o acontecimento. Já se fazia quase noite. Um deles desgarrou-se, alegando ter que ir ao necrotério da Santa Casa despedir-se
de um conhecido e lá, no velório, voltaria a reunir-se aos dois amigos inseparáveis.
Assim foi feito.
Planejaram até jantar no Ao Casca Arame, famoso restaurante que havia na Bernardino de Campos-Joaquim Távora,
bem pertinho do hospital da Beneficência Portuguesa.
Mas eis que um deles teve a infeliz idéia de telefonar para a sua residência, anunciando que jantaria fora com
os dois amigos - Raimundo e Reinaldo - e voltaria para casa só de madrugada.
E ele, o Abelardo, no telefone:
- É de casa? Olhe, eu e o Raimundo vamos ao necrotério da Santa Casa ver o Reinaldo, que lá está; não vou jantar
e só voltarei pra casa de madrugada, ouviu? E bateu o telefone.
Na verdade, lá num dos velórios, compungido, a despeito de já haver ingerido algumas jeribitras, estava
entre outros o Reinaldo, que velava o corpo de um seu amigo falecido às primeiras horas da tarde.
Daí a pouco, naquele salão triste, com coroas e flores, com urna funerária acomodando o defunto, surgiram
Abelardo e Raimundo, ambos falando alto, como se estivessem num compartimento do mercado.
Despediram-se dos familiares do falecido e já na porta de saída viram quando pararam bruscamente três
automóveis.
Deles saíram várias mulheres, entre coroas, velhas e mocinhas, além de rapazes. Choravam convulsivamente,
lenços sobre os olhos, enquanto Reinaldo reconheceu a mulher e uma das filhas.
- Mas o que é isso?
Foi uma cena inenarrável. Todas correram para o Reinaldo boquiaberto.
- Querido, é você? Mas você não estava morto no necrotério?
- Pai, meu querido pai, deixa beijá-lo.
E as moças agora choravam, mas de alegria.
É hora de esclarecer a confusão.
Quando Abelardo telefonou para casa, avisou que não iria jantar e só voltaria de madrugada porque, em companhia
de Raimundo, estava no necrotério da Santa Casa. Ambos iam ver o Reinaldo que lá estava.
Julgando que o Reinaldo tivesse morrido de repente, a mulher de Abelardo, compungida, cuidou de telefonar para
sua amiga, "viúva" de Reinaldo, dando-lhe pêsames.
Daí a confusão.
E daí o esclarecimento.
Abelardo não gostou do qui-pró-quó, pois a farra fora adiada para a noite seguinte...
(*) Olao Rodrigues, jornalista, incluiu essa história em seu livro
Santos de Pijama, publicado post-mortem em 1981/2 na Gráfica A Tribuna, de Santos/SP. |