HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS -
PIONEIROS DO AR
Asas partidas (Tragédia na praia)
J.Muniz Jr. (*)
A década de 1920 foi de muita importância para a Aviação de todo o mundo, pois
assinalou inúmeros recordes e raids aéreos, principalmente sobre o Oceano Atlântico, levados a cabo por ousados e destemidos aviadores da época,
tais como Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que empreenderam em 1922 a primeira travessia do Atlântico Sul pelos ares, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro
através de um notável vôo em homenagem às comemorações do Centenário da Independência do Brasil.
Quatro anos mais tarde, em 1926, coube a uma equipe de brasileiros atravessar o Atlântico, de Gênova até a
represa de Santo Amaro, conquistando - com aquela ousada iniciativa - um mundo de glórias para a Aviação Brasileira.
Mas, para que tal façanha fosse concretizada, a equipagem do célebre Jahu contou
com um excelente mecânico que executou um eficiente trabalho no aparelho em que viajavam, revisando-o em todos os lugares por onde passavam,
principalmente, quando se encontrava em Porto Praia, na África Portuguesa, onde a aeronave sofrera uma pane no motor, colocando em condições de vôo para
prosseguir na empolgante viagem aérea pelo Atlântico - considerada, naquele tempo, uma verdadeira epopéia alada. Estamos nos referindo ao mecânico Vasco
Cinquini.
Amerissagem do Jahu ao Estuário de Santos (ao fundo, o Monte Serrat), nos anos 20
Foto: livro Asas e Glórias de S.Paulo
Tudo começou naquele mesmo ano de 1926, quando o jovem aviador paulista João Ribeiro de Barros (nascido em Jaú),
após vender parte da herança materna aos irmãos, seguiu para a Itália com o objetivo de adquirir um aparelho Savoia Marchetti, na própria fábrica. Mas,
como existia a possibilidade de o Marquês de Pinedo realizar um raid aéreo para a América do Sul, ofereceram-lhe um aparelho tido como
imprestável para uma longa travessia, isso devido a um acidente, motivo pelo qual se encontrava à venda pelo Conde Casagrande, que havia fracassado
quando tentava levar a cabo o raid Itália-Argentina.
Assim é que o gigantesco hidroavião do conde italiano, denominado Alcione - que havia sofrido reparos e
inclusive a troca de motores -, foi vendido por 200 contos de réis ao aviador brasileiro, e após algumas modificações foi rebatizado com o nome de
Jahu, em homenagem à cidade natal do seu novo proprietário.
Aconteceu que desde a primeira experiência, realizada em Sesto-Calende, João Ribeiro de Barros pôde observar que
o hidroavião não estava em boas condições para empreender o arrojado vôo sobre o Atlântico, isso devido ao estado precário dos botes, que estavam a
ponto de afundar toda vez que o aparelho amerissava.
Foi nesse momento de preocupação que o mecânico Vasco Cinquini - que se havia incorporado à tripulação - surgiu
em cena para sanar tal situação, consertando não só os botes como também outros defeitos que haviam sido observados no aparelho.
E assim, completamente refeito, o Jahu pôde levantar vôo do Lago Maior, em Sesto-Calende, no dia 13 de
outubro de 1926, alcançando Gênova pouco depois, de onde partiu no dia 17 rumo a Gibraltar. No entanto, foram obrigados a pousar em Valência e em
Alicante, na Espanha (onde foram até presos), e, quando chegaram a Gibraltar, o mecânico Cinquini teve muito trabalho para pôr o aparelho em
funcionamento, pois fora constatada sabotagem nos tanques dos motores. Somente no dia 25 do mesmo mês é que puderam iniciar a segunda escala daquela
aventura aérea.
A tripulação do Jahu, seguindo para terra logo após o pouso na represa de Santo
Amaro
Foto publicada com a matéria
Além
do aviador João Ribeiro, a tripulação do Jahu era integrada pelo co-piloto Arthur Costa (que foi substituído pelo tenente aviador da Força
Pública do Estado de São Paulo, João Negrão), pelo navegador capitão da Aviação Militar Newton Braga e pelo mecânico Vasco Cinquini - que, sem dúvida
alguma, realizou, durante toda a viagem, uma tarefa nada fácil, garantindo assim as condições de vôo para o gigantesco avião anfíbio.
Não vamos relatar aqui todo o extraordinário feito empreendido por aquele punhado de bravos que, para nosso
orgulho, eram brasileiros.
Como é sabido, o Jahu, comandado pelo aviador João Ribeiro de Barros, levou a cabo o raid
Gênova-São Paulo, com escalas em Gibraltar, Las Palmas, Cabo Verde, Porto Praia, Fernando de Noronha, Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos,
alcançando finalmente a represa de Santo Amaro no dia 2 de agosto de 1927, concretizando assim a sua árdua missão após ter coberto um percurso de 9.795
quilômetros em 57 horas e 3 minutos de vôo.
Quanto à sua passagem por Santos, relatamos o seguinte na obra Presença da Força Aérea na Baixada Santista
(volume I, página 22):
A chegada do poderoso hidroavião em Santos ocorreu por volta das 15h30 do dia 28 de
julho de 1927, que depois de evoluir sobre a cidade, sob a aclamação do povo, desceu nas redondezas da Base, onde ficou
fundeado. Após o desembarque, atendendo convite do
capitão-de-fragata aviador naval Ricardo Greenhalg Barreto, comandante da Base, o aviador José Ribeiro de Barros, acompanhado pelo navegador Newton
Braga, pelo mecânico Vasco Cinquini e pelo piloto João Negrão, visitaram aquela Unidade de Aviação Naval, onde foram recepcionados. Às 16h30, o
comandante João Ribeiro e seus companheiros, acompanhados das autoridades civis e militares da cidade, seguiram de lancha para o cais, onde foram
ovacionados pela multidão que estava no porto, à espera dos heróis brasileiros.
Depois de passar quatro dias na cidade, quando foram alvo de grandes homenagens por
parte das autoridades e do povo, os audazes tripulantes do Jahu seguiram viagem com destino às águas da represa de Santo Amaro, considerada a
última etapa daquela arrojada epopéia.
Após ter sido rebocado por uma lancha da Base até o Valongo, o famoso hidroavião
deslizou sobre as águas do estuário, ao som de prolongados silvos dos navios atracados no porto e de vivas da multidão que se encontrava no cais, e
decolou suavemente. Depois de descrever um círculo, rumou para São Paulo, onde seus ocupantes foram recebidos e aclamados como verdadeiros heróis. |
O hidroavião, na represa de Santo Amaro, sendo inspecionado no dia seguinte ao histórico pouso
Foto publicada com o artigo
Depois do notável feito aviatório, é claro que não faltaram as homenagens oriundas de todos os quadrantes do
País e, quando tudo passou, cada um dos heróicos tripulantes do Jahu seguiu seu rumo. João Ribeiro de Barros, além de engenheiro mecânico e
piloto-acrobata, continuou em São Paulo, empreendendo diversos vôos através do Estado e do País, sempre regressando à base na sua cidade natal, chegando
a se aperfeiçoar nos Estados Unidos e na Alemanha.
João Negrão, que havia ingressado na Força Pública paulista em 1915, transferindo-se posteriormente para a
Esquadrilha de Aviação daquela milícia, alcançou o posto de coronel em meados da década de 1940 e obteve a reforma em princípios da década de 50.
O navegador Newton Braga, por sua vez, que era capitão de Infantaria do Exército e havia se formado na primeira
turma do Curso de Observadores Aéreos em 1921, foi transferido para a Arma da Aviação do Exército em novembro de 1927. Com a criação do Ministério da
Aeronáutica, em janeiro de 1941, passou para a nova organização aérea, alcançando o posto de brigadeiro-do-ar pouco depois.
Quanto ao mecânico Vasco Cinquini, que desde princípios da década de 20 já era mecânico do Campo de Marte, em
São Paulo, após a fantástica viagem através do Atlântico, continuou trabalhando na Capital, chegando a tirar o seu brevet de piloto-aviador em
1929, tendo realizado várias viagens aéreas para Mato Grosso e para outros municípios do Estado de São Paulo com o seu aparelho tipo Apro, que acabou
vendendo para a Força Pública.
Após ser condecorada pelo presidente da República no Palácio do catete, no Rio de Janeiro,
a tripulação do Jahu posou para a foto: Newton Braga (de uniforme branco), Ribeiro de Barros, Vasco Cinquini (atrás), o presidente Washington
Luís, Mendonça (atrás) e João Ribeiro (fardado)
Foto: Edição Extra, agosto de 1962
Em fins de 1929, Vasco Cinquini adquiriu um aeroplano Breda-15, na Itália, com o qual pretendia ganhar a vida
fazendo passeios e excursões aéreas, pois, além da mulher, tinha dois filhos menores para sustentar. O aparelho que encomendara foi embarcado no porto
de Gênova, devidamente encaixotado, tendo chegado ao nosso porto no início dos anos 30 a bordo do navio Conte Russo.
Uma vez desembarcado no cais, o pesado volume foi transportado para a residência do aviador Reynaldo Gonçalves,
que morava na casa de número 179 da Linha Forte Augusto, na Ponta da Praia (hoje Almirante Saldanha da Gama). E assim, após ter sido informado pelo
amigo que a encomenda havia chegado e encontrava-se à sua disposição, Cinquini desceu a serra acompanhado pelo mecânico Irany Correa, com o qual
tencionava voltar voando para São Paulo, logo após a montagem do aeroplano.
Vasco e o seu acompanhante hospedaram-se no Hotel Internacional (já demolido), no José Menino, sendo que o
trabalho de montagem, que teve lugar no hangar do aviador Reynaldo Gonçalves, localizado na mesma praia, terminou no dia 10 de janeiro de 1930. E já no
entardecer daquele mesmo dia, Cinquini manifestou o desejo de experimentar o aparelho e, apesar da objeção dos amigos, levantou vôo elevando-se a uma
altura de 200 metros e, depois de algumas evoluções, veio pousar junto ao hangar na praia.
Durante o curto trajeto, ele percebeu uma anormalidade na estabilidade do aeroplano, que mostrava tendência para
se inclinar para um dos lados, confessando que a aterragem que fizera não fora muito segura.
Apesar do defeito que constatara no aparelho, Vasco Cinquini resolveu levantar vôo com destino à Capital no dia
seguinte. Achando que aquilo seria um verdadeiro suicídio, o aviador Barreta, que se encontrava veraneando em Santos e que acompanhava todas as fases da
montagem do Breda-15, chamou sua atenção para o fato, alertando ainda sobre o perigo que representava o cerrado nevoeiro sobre a serra, impróprio para
vôos. Barreta tentou dissuadir Cinquini de todos os modos, uma vez que o aparelho nem bússola tinha. Cinquini, no entanto, prosseguiu firme com o
intento, confiando, naturalmente, na sua perícia de piloto.
Naquela noite, antes de dormir, Vasco Cinquini manteve demorada palestra com um dos companheiros do Jahu,
João Ribeiro de Barros, que também se encontrava passando uma temporada na praia à espera de um aparelho oriundo da Europa, que deveria desembarcar no
porto e ser montado no campo da Latecóere, em Praia Grande (N.E.: esse campo, depois base da
Air France, passou em 1946 a ser usado pelo Aeroclube de Praia Grande, servindo como referência geográfica que originou o bairro do Campo da Aviação).
A palestra durou até altas horas da noite e por isso Cinquini deitou-se tarde.
No dia seguinte (11 de janeiro), logo que levantou, correu para o hangar e colocou o avião para fora,
solicitando então a um outro mecânico, Arthur Mitscke, que decolasse para um rápido teste. Todavia, antes que o mecânico tomasse assento no aparelho,
ele mandou esperar, pois tinha resolvido, ele mesmo, fazer a experiência, e de imediato subiu no aeroplano, acionou o motor e deslizou pela areia da
praia até levantar vôo.
Eram precisamente 7h00 e algumas pessoas, que se banhavam no mar, viram quando o aparelho decolou e fez algumas
evoluções e, quando o mesmo encontrava-se nas imediações a Ilha Urubuqueçaba, ao fazer uma curva em declive - pois tencionava pousar na praia -
aconteceu o inevitável: as asas do Breda-15 deslocaram-se da sua posição normal e uniram-se na parte superior do aparelho, que se precipitou bruscamente
no mar, provocando uma coluna de fumaça, devido ao choque com a água.
A tragédia aérea, que ocorreu como num piscar de olhos, foi presenciada por inúmeros banhistas, inclusive por
João José Guedes e Luiz Bastos do Amaral, que correram em socorro do aviador, utilizando uma canoa que se encontrava na areia da praia, pois o aparelho
ainda se encontrava com a parte superior fora d'água. E assim, com remadas vigorosas, conseguiram alcançar o aeroplano acidentado e puderam constatar
que o seu ocupante estava morto.
Mas a tragédia não terminara ali, pois logo que os dois banhistas libertaram o corpo do aviador da nacelle
do avião, para tentar colocá-lo a bordo da canoa, não conseguiram fazê-lo devido às fortes ondas. Tentaram então nadar para a praia apoiados na canoa e
puxando o cadáver de Vasco Cinquini por uma das pernas, amarradas que foram pelo seu próprio blusão para dar mais firmeza. Enquanto os dois se debatiam
lutando contra o mar picado, o povo se comprimia na Praia do José Menino, acompanhando lance por lance estupefatos, gesticulando de nervosismo e
soltando lamentos de dor. Logo uma onda mais forte virou a canoa e o choque foi tão forte que os dois banhistas largaram o corpo de Cinquini, que acabou
desaparecendo, enquanto eles procuravam safar-se da fúria do mar, nadando para a areia da praia.
Naquele mesmo instante, uma lancha da Alfândega, que se encontrava pelas imediações, acorreu ao local. A
embarcação era comandada pelo conhecido esportista Edgard Perdigão, que não hesitou e mergulhou fundo até encontrar o corpo do aviador, trazendo-o para
bordo da lancha, que rumou em seguida para a Ponta da Praia, onde ficou à disposição da Polícia para a liberação do corpo - que, depois de ter sido
conduzido para o necrotério da Santa Casa da Misericórdia, foi constatado ter os seguintes ferimentos: fratura da base do crânio, fratura exposta do
rebordo arbitrário esquerdo, fratura do osso do nariz, fratura exposta do direito do maxilar inferior, fratura exposta da perna direita, fratura das
últimas costelas do lado esquerdo, fratura de quatro dedos da mão esquerda, ferimentos generalizados do tórax, escoriações na face anterior do tórax e
queimaduras de 1º grau no tórax e no braço esquerdo.
Depois de embalsamado, o corpo do aviador e mecânico Vasco Cinquini seguiu para São Paulo, onde foi sepultado.
Assim foi o trágico acidente aéreo que vitimou um dos heróis da memorável travessia transoceânica do célebre
Jahu, cujo relógio de bolso, encontrado posteriormente entre os destroços do avião sinistrado, marcava exatamente 7h15.
N. do A. - Vide "A Morte Trágica de Vasco Cinquini", JM Jr., (jornal) Cidade de Santos, domingo,
8/11/1981.
(*) J.Muniz Jr., jornalista e pesquisador em Santos.
Texto incluído em seu livro Episódios e Narrativas da Aviação na Baixada
Santista, edição comemorativa da Semana da Asa de 1982, Gráfica de A Tribuna, Santos/SP. Imagens reproduzidas do livro e de um
site Web em homenagem ao comandante João Ribeiro de Barros. A represa de Santo Amaro ganhou depois o nome de
Represa de Guarapiranga.
Esquema do hidroavião Jahu
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