Esta matéria foi publicada em 15 de abril de 1956 no jornal
A Tribuna, e faz a comparação de duas fotos: a segunda, de 1956, e a superior, de meio século antes, isto é, dos primeiros anos do século XX.
A ortografia foi atualizada nesta transcrição: Companheiros no
passado e no presente
Francisco de Marchi
Imagens publicadas com a matéria
As duas vistas aqui apresentadas, para comparação, tiradas com intervalo de meio
século, servem para evidenciar que o trecho apanhado (Avenida Ana Costa, próximo à Rua Lucas Fortunato) é bastante
conservador; tanto quanto possível guarda velhíssimas linhas na figura de três bons vizinhos, três prédios mais do que sexagenários...
A fotografia superior, então, terá especial sabor para os que conheceram a antiga
Santos: recordar-lhes-á o que era a parte mais habitada da Avenida Ana Costa, a que se estendia da estação de bondinhos de
burros, na Vila Matias, à esquina da Rua Lucas Fortunato; da esquina desta rua e em direção à praia, as casas podiam
ser contadas pelos dedos.
Próximo da avenida, na citada Lucas Fortunato e no começo do século, em prédio ainda
existente, funcionava a "Serraria Villa Mathias", plantada em terreno inundável. E da serraria e para as bandas do Campo
Grande vicejava denso matagal, onde a custo localizaríamos os telhados de algumas casas residenciais.
Na foto quinquagenária, batida em dia de pesadas chuvas, pode-se também apreciar o
isolamento de um quarteirão pelas águas pluviais, ocorrência comum naqueles tempos; meia-dúzia de pessoas foram fixadas pela objetiva quando, ao
demandar um dos prédios, faziam ginástica sobre pranchas, usadas como ponte.
Da comparação feita ressaltará que o sobrado (à esquerda) passou por modificações mais
amplas que as duas casas que se lhe seguem (portadoras de telhados em forma de "V" invertido). O sobrado, construído por Pedro Kohler, um alemão que
emprestava suas atividades na fábrica de gelo local, sofreu várias reformas, a última das quais em 1928 quando seu atual proprietário, um cavalheiro
que se intitula "antiquário" e ali mantém comércio de coisas idosas, lhe acrescentou a varanda, reformou-lhe janelas, ornou-lhe as fachadas e deu à
parte térrea do prédio utilização comercial. Entretanto, não deixa de ser curioso que um antiquário, ao invés de preservar as velhas linhas de um
prédio, mesmo feias, trate de modernizá-las...
As duas casas de telhado em ponta sofreram ultimamente ligeiras modificações externas;
a mais próxima ao sobrado possuía, até há um mês, os beirais originais; conserva, todavia, na fachada, os velhos ornamentos.
São essas duas habitações as matusalênicas ocupantes do trecho; Sebastião de Castro
Rios, um conhecedor da antiga Santos, disse-nos que quando aqui chegou, em 1891, já as encontrou e se mostravam, naquela ocasião, bem surradas pelo
uso...
Na antiga vista podemos verificar, mais, a ausência da rede aérea elétrica, de alta
voltagem. Ainda não havia aparecido o bonde elétrico e os trilhos, assentes lado a lado, serviam à movimentação dos famosos bondinhos de burros.
Recolhiam-se os bondinhos na estação da Vila, na parte em que funcionava o relógio público e que não é outro senão o que ainda hoje nos ajuda a
acertar os ponteiros de nossos modernos e ultra-ordinários cronômetros.
Atente-se também para a camada limosa que denegria a fachada e os telhados dos prédios
fotografados, sinal de freqüência de chuvas duradouras naquela época. Aliás, eram também freqüentes as inundações de largos trechos da cidade; se
algumas pessoas se recordam do temporal de 1909 (24 de janeiro), outras, mais idosas, referem-nos a cheia ocorrida seis ou sete anos antes de findo
o século passado (N.E.: século XIX), e que fez as águas das chuvas, no centro da cidade,
atingirem a altura de um balcão de casa de varejo. Não existiam canais para drenar as águas pluviais, é fato; hoje constituem extensa rede, mas
ainda assim, devido ao fenômeno coincidente das marés altas, não puderam eles dar vazão às massas líquidas precipitadas pelas
terríveis chuvaradas de março último.
Se o calor e chuvas diluvianas reinaram na cidade, no passado, não
é de pasmar que nos visitem agora. Ciclos semelhantes ocorrem em todas as partes do mundo. De certo modo, porém, sabendo-se como o mau tempo
castigava a baixada, é de se admirar a obstinação dos três prédios a que se refere a presente crônica, três bons companheiros, três anciões ainda
com vitalidade, que tiveram por dezenas de anos a fio os alicerces ensopados pelas águas das chuvas represadas no terreno raso e nem por isso se
abalaram, nem sonharam em ceder o lugar aos primos de hoje, os orgulhosos prédios de apartamentos...
Mais meio século passado, desde a publicação da matéria acima, e
esta é a vista atual daquele cruzamento, da Avenida Ana Costa com a Rua Lucas Fortunato, tendo ao fundo o Monte Serrat.
Apenas o casarão reformado em 1928 se manteve, com poucas alterações. No lugar dos trilhos e fiação elétrica para os bondes, resta apenas a linha
energizada para o serviço de trólebus, que também se tenta extinguir:
Fotos: Carlos Pimentel Mendes, em 20 de outubro de 2007
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