A CASA DOS PIRES
Minha família mudou-se
para a nova casa em 1910, passando a ter um conforto considerável. Usufruíam da bela praia à sua frente.
Tornou-se a casa o ponto preferido pelos parentes, para se confraternizarem. Vó
Philomena e Tia Lucinda, mãe e irmã de papai, vieram morar com meus pais, que sempre olharam por elas com muita dedicação e carinho.
No casarão branco nasceram a Sylvia, em 1911, e o Francisco, em 1912. Foi nessa época
que, também ali, se realizou o primeiro casamento. Futuramente, muitos anos depois, ele seria palco de outros enlaces, que rememoro com uma saudade
imensa.
Mas esse primeiro casamento merece ser narrado com detalhes que o tornaram um
acontecimento novelesco. Meu tio Manoel, que chamavam de Maneco, apaixonou-se por uma moça de nome Heloíza, sobrinha do coronel
Joaquim Montenegro, seu tutor, pessoa de destaque no meio social e político, tendo sido várias vezes vereador e prefeito.
Desenvolvia também um trabalho assistencial de relevância, sendo portanto um cidadão de grande projeção em nossa cidade.
Tão logo soube do namoro entre os jovens, o coronel mostrou-se totalmente contrário ao
romance, tomando uma atitude drástica: mandou a sobrinha para o interior, bem longe de nossa cidade.
Mas o destino deles estava traçado... Depois de um exílio de dez anos, seu tio
permitiu a Heloíza retornar a Santos, julgando que a chama daquele amor se apagara...
No momento em que descia do trem, Heloíza cruzou com tio Maneco, que fora à
estação ferroviária para levar algumas amostras de café e documentos para serem despachados.
A troca de olhares entre eles fez com que aquele amor irrompesse, vencendo as
barreiras do tempo e da separação que lhes fora imposta. Uma vez que ambos tinham idade suficiente para decidir sobre suas vidas, resolveram unir-se
pelos laços do matrimônio.
Meus pais, criaturas generosas e compreensivas, assumiram a responsabilidade de
providenciar tudo que fosse necessário para que o sonho deles se tornasse realidade.
Como era o costume da época, foi armado um altar todo ornado de flores, na sala
principal, tendo comparecido o juiz de paz, para o casamento civil, e um padre, que realizou a cerimônia religiosa, sob os olhares comovidos de
todos os presentes. Seguiu-se uma recepção para os convidados.
E foi assim, como o desfecho de uma linda estória de fadas, que tia Heloíza e tio
Maneco iniciaram a caminhada a dois!
A vida dos Pires no casarão decorria com serenidade e paz. Aos domingos, iam todos à
missa na pequena capela de Santo Antonio, que fora construída pelo sr.
Antonio Ferreira da Silva Júnior, o visconde do Embaré, na chácara de sua propriedade. Ela foi inaugurada no dia 19 de
outubro de 1875, pelo cônego Scipião Junqueira Goulart, que batizou o grande e imortal poeta Zezinho Fontes.
Essa chácara foi dividida em lotes, onde foram edificadas muitas casas. É ao visconde que devemos o nome de bairro do Embaré.
Um copeiro alemão, que servira à família Dick, ficara trabalhando com os novos
patrões. Chamava-se Ernesto, um servidor fiel, interessado pelo funcionamento da casa, com a mesma dedicação que o fizera com os patrões anteriores.
Também ficara um lindo cão negro, o Nero, que não estranhou a ausência dos antigos
donos, divertindo-se com toda a criançada.
Na parede de um dos corredores havia um telefone enorme. Para
proceder-se a uma ligação, levava-se o fone ao ouvido e a telefonista dizia: - "Que número, faz favor?" O número das linhas era tão pequeno, que as
telefonistas sabiam o nome dos assinantes e o respectivo número, pelo que se podia pedir a ligação dizendo: - "Quero falar com Fulano".
Meu irmão mais velho, o Jorge, desde pequeno era um apaixonado por fotografias, pelo
que pudemos colecionar muitas delas, dessa primeira fase da vida, no casarão branco. Em 1912 ele fotografou a pequena capela a que me referi. Ela
tem sido guardada com imenso carinho.
Há pouco tempo, indo à Basílica de Santo Antonio do Embaré, vi que na parede da
sacristia estavam dois quadros, um da Basílica, e outro da capelinha que a antecedeu. Como curiosidade, quero contar que, quando iniciaram a
construção da Basílica, a capelinha permaneceu dentro dela, até que pudesse ser armado um altar na nova construção, isto para que os cultos e missas
não sofressem interrupção. Parecia um bombom recheado...
Perguntei ao frei Guilherme se eles não tinham foto da primitiva capelinha, e ele
surpreendeu-se, pois não sabia de sua existência, uma vez que sua congregação só viera a tomar posse da igreja já reformada e ampliada, no ano de
1920.
Foi com muita alegria que providenciei uma cópia aumentada da foto que possuo. Mandei
enquadrá-la e ofereci a eles como contribuição para a história daquele templo que é um orgulho para Santos. Frei Guilherme agradeceu comovidamente.
MÃE ZULMIRA, VONTADE DE VIVER
Por ocasião do nascimento
de Sylvia, mamãe contraiu uma febre rebelde, passando muitos dias entre a vida e a morte.
Quem a tratava era o dr. Silvério Fontes. Ele lutou heroicamente para salvá-la. Quando
o chamavam em seu consultório para atendê-la, ele pedia desculpas aos clientes que aguardavam consulta e partia no bondinho puxado por burros, rumo
à residência dos Pires.
Segundo o que narravam os meus familiares, o dr. Silvério ficava horas consultando
livros, estudando tudo acerca do estado de mamãe, para encontrar um meio de recuperá-la.
Ele jamais se conformaria com o fato de não poder salvar uma mãe tão jovem, de apenas
31 anos, já com oito filhos. Muitas vezes ia até a praia e, andando, olhando para o alto, pedia aos céus uma intuição!
Certo dia, ele receitou uma taça de champanhe, o que surpreendeu a todos. Mas sua
recomendação foi obedecida. A verdade é que, a partir desse momento, mamãe foi melhorando e conseguiu deixar o leito.
Sua fraqueza era enorme. Perdera os cabelos devido à febre. Papai decidiu que ela
fosse passar uma temporada na fazenda de amigos, onde ela consolidou sua recuperação e seus cabelos se renovaram.
Minhas tias contavam que quando mamãe estava muito mal, todas ao seu redor, orando
pela sua melhoria, vovó percebeu que ela dava um grande suspiro e então gritou desesperada: - "Minha filha!"
Este fato era contado mais tarde por mamãe. Ela sentira-se erguida no espaço, mas,
diante do grito lastimante de sua mãe, retornou ao corpo!
Que milagres pode fazer um amor de mãe!
Quando o Francisco, o Chico, nasceu, quinze meses depois, mamãe já estava bem e
enfrentava normalmente o período de gravidez.
A SAGA DE PAI FRANCISCO
Faço aqui uma pausa para
falar sobre o novo proprietário do casarão branco, meu pai, meu grande mestre.
Ele e mamãe ensinaram-me os verdadeiros valores da vida: a dignidade, a integridade de
caráter, o respeito e culto Deus, o amor à família e ao próximo.
Mamãe, companheira dedicada, exemplo de virtudes, soube guiar-nos dentro dos
princípios cristãos.
Papai nasceu no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, aos 17 de setembro de 1879. Seus
pais, Philomena da Costa Pires e José Antonio Pires, eram portugueses. Como tantos outros europeus, sentiram-se atraídos pelo Brasil. Pensaram em
fixar-se num lugar propício à educação dos filhos.
Trouxeram três, todos nascidos em Lisboa: Conceição, Manoel e João, que logo depois
veio a falecer. Saíram em Portugal em 1873 com idéia de desembarcar em Santos, mas não puderam fazê-lo,
pois a cidade estava passando por um surto epidêmico de febre amarela.
Tiveram de descer em Porto Alegre, onde nasceram mais quatro filhos: Carolina,
Francisco, Antonio e Lucinda.
Meu avô era alfaiate e, para manter a família, exerceu a profissão em Porto Alegre,
sempre sonhando com nossa cidade.
Quando papai estava com dez anos, toda a família transferiu-se para Santos, indo
residir numa pequena casa no local onde hoje se encontra a Prefeitura Municipal.
Essa felicidade não durou muito. Certo dia, meu avô viajou para Campinas, pois fora
informado de que uma bem montada alfaiataria estava à venda e podia lhe interessar. Lá chegando, adoeceu gravemente, vindo a falecer.
Os irmãos Costa Pires pouco haviam estudado. Mas um professor que ficara devendo três
fraques para meu avô, propôs dar seis meses de aula em pagamento da dívida. Papai, muito inteligente e desejoso de progredir, aproveitou muito essas
aulas. E, no decorrer do tempo, tornou-se um autodidata.
Para ajudar a mãe, que ficara com o difícil encargo de criar os filhos, papai
empregou-se num bar, para lavar copos e xícaras.
Logo tornou-se querido pela freguesia. Recebeu um convite para trabalhar na firma
Ferreira de Souza & Cia. Dormia no sótão da loja, para abri-la logo cedo.
Percebendo o seu gosto pela leitura e o desejo de ampliar os seus conhecimentos, as
pessoas, que ali compareciam para fazer compras, emprestavam-lhe muitos livros, que ele lia à noite, sob a luz de um lampião.
Saindo desse emprego, foi para uma firma de café, produto que viria a ser a paixão de
sua vida.
Estava com 17 anos, quando casou-se com Zulmira de Barros Pires, descendente também de
portugueses e que tinha apenas 16 anos de idade. Tiveram 13 filhos; apenas uma, a Laura, não sobreviveu.
Trabalhou em outras firmas cafeeiras, sempre com capacidade e devotamento.
E foi graças à sua tenacidade e inteligência, que progrediu economicamente, o que lhe
permitiu comprar o casarão branco.
Retirando-se da firma J. D. Martins, ao receber a vultosa quantia que lhe cabia como
sócio, pôde efetuar o negócio. |