Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto.
Óleo sobre tela, 1900. Acervo do Museu Paulista da USP
Laboratório Fotográfico do MP/USP - foto publicada com a matéria
MUSEOLOGIA
Pintura histórica: documento histórico?
Os museus históricos antigos estavam vinculados ao domínio estético, já que a arte fixa
sínteses simbólicas de alto impacto e é eficaz para transmitir valores cívicos. Hoje, esse critério tornou-se impróprio. É que a noção de tema
histórico alargou-se muito e abrange todos os agentes da vida social, incluindo os anônimos e as massas
Por Ulpiano T. Bezerra de Menezes (*)
Um visitante desprevenido, desejoso de saber com que outros
documentos se faz História, além dos papéis dos arquivos, certamente ficaria confuso se se dirigisse a um museu histórico tradicional - e não só no
Brasil. Com efeito, teria a impressão de que, nos museus, a matéria-prima do conhecimento histórico se constitui basicamente de móveis de aparato,
porcelanas (de preferência brasonadas), armas vistosas e pinturas a óleo - retratos de personagens ilustres, cerimônias, cenas de batalha etc.
Aliás, os museus históricos antigos podiam ser confundidos com museus de artes decorativas, categoria cuja natureza, hoje, tem suscitado discussões.
A vinculação destes museus históricos ao domínio estético não é mero acaso. Muitos deles, no
modelo europeu, derivaram de museus de arte antiga. Além disso, o papel nobilitante das artes, para comunicar valores cívicos, sempre foi eficaz. No
universo das imagens, especialmente, temos campo fértil para fixar sínteses simbólicas de alto impacto.
Não é de estranhar, assim, que o Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga) tenha acumulado,
ao longo de sua trajetória quase centenária, ricas coleções artísticas. Foi, aliás, de seu acervo de pinturas oitocentistas que surgiu o núcleo
original da Pinacoteca do Estado, inaugurada em 1905. Ainda na década de 50 se encaminharam várias telas à Pinacoteca, permanecendo basicamente
aquelas que apresentassem "temas históricos".
Hoje, evidentemente, tal critério temático parece impróprio, seja porque a noção de tema
histórico ampliou-se enormemente, abrigando todos os níveis e agentes da vida social (incluindo os anônimos e as massas), seja porque não é apenas o
tema, numa obra iconográfica, que tem conteúdo histórico.
Mesmo, porém, que nos limitemos ao tema, os museus encontrariam dificuldade para explorar
historicamente as obras de arte. Conviria, por isso, tentar um pequeno exercício de leitura temática de uma tela, por exemplo, para indagar qual seu
valor documental para a História. Para tanto, Benedito Calixto pode fornecer excelente oportunidade. Esse importante pintor paulista (1853-1927), de
sólida formação acadêmica, notabilizou-se como paisagista e pintor de temas religiosos, mas também percorreu os territórios da História.
A primeira menção, no Museu Paulista, a uma tela de Calixto é a aquisição, por dez contos de
réis, da "Fundação de São Vicente", feita com verba da Comissão Comemorativa do IV Centenário do Descobrimento.
A tela, datada de 1900, retrata o desembarque de Martim Afonso
de Souza, com centenas de companheiros, no futuro local de São Vicente, em 1532, onde fundaria oficialmente a primeira vila do Brasil.
Três aspectos sobressaem, se a examinarmos de um ponto de vista espacial. Em primeiro lugar,
a enorme extensão de espaço que ela representa, e que articula terra, mar e céu. (Medindo 3,85 x 1,92 m, a obra dificilmente teria outro destino que
não um edifício público).
A seguir, a estrutura bem marcada, mas muitíssimo simples, da paisagem, sobretudo na sua
porção terrestre: planície em ligeiro declive, praia abrigada, riacho e barra, morros, vegetação rala rompida de vez em quando por intromissões da
floresta. Nada de excepcional ou particular, contudo: a natureza desse mundo recém-descoberto nem é estranha ou ameaçadora nem paradisíaca.
Por fim, ampla distribuição de figuras (são quase 90 personagens), acompanhadas de suportes
de atividade humana: malocas indígenas com os respectivos equipamentos, cruzeiro, caravelas, bandeiras etc. etc.
Este vasto espaço se caracteriza por dois atributos determinantes, cheios de implicações:
extensibilidade e indiferenciação. Nenhuma fronteira o circunscreve, nenhum acidente da paisagem tem função demarcatória, nenhum sinal indica
término.
Os figurantes se espraiam até o perímetro da tela, que é um corte aleatório, externo, e não
impede a projeção da superfície e das ações para muito além de seus limites. Pelo contrário, impõe-se a extensão fora da tela: o mar e as caravelas
incorporam a este espaço um espaço matriz transatlântico (Portugal); a presença dos índios - apenas homens e meninos -, assim como traços de
assentamento semi-permanente, obrigam a pressupor outros territórios de ocupação.
Doutra parte, nenhuma compartimentação ou especialização hierarquiza o espaço. A óbvia
alocação das naus ao mar, por exemplo, é necessidade funcional, mas não representa qualquer subordinação. Os figurantes não caracterizam áreas de
concentração, embora se possam detectar vazios na baixada até a praia, à direita.
A ação não é dramática, concentrada, mas narrativa, incorporando situações diversificadas e
ocupando todos os planos. Os indígenas comparecem em todos eles. E se nas extremidades, no primeiro plano, parece haver alguma tensão (um soldado
português desembainhou a espada; olhando em sua direção, alguns índios se agitam), em todos os demais pontos há mescla de índios e europeus, em
tranqüilidade e desenvolvendo variada gama de comportamentos: diálogo com a comitiva de Martim Afonso de Souza (que constitui a ação principal), ou
com missionários mais adiante, ou ainda bem longe, à beira-mar, na orla da mata, ou, até mesmo, brincadeiras de curumins.
A preocupação com o detalhe preciso é evidente: transparece nas roupas e armas, nos adornos
e outros artefatos de portugueses e aborígines, assim como no interior da maloca. Estaria nesta precisão o valor documental da pintura? Não, pois
ela é, antes de mais nada, representação, reelaboração plástica. Basta atentar para o fato de que esta caracterização de personagens envolvidas na
fundação de uma vila acentua apenas o nível simbólico.
Não há, por exemplo, nenhuma preocupação com assinalar a paisagem original ou algum traço
físico do assentamento. É que aqui, a cidade (vila) não aparece, como tipo de assentamento, mas como modo particular, formalmente determinado e
explícito, de apropriação simbólica do território. Daí a importância fundamental dos suportes de sentido: cruzeiro, bandeiras, estandartes, armas,
indumentária, gestos e expressões etc.
Note-se que, por isso mesmo, a oposição mais forte entre brancos e índios não se dá ao nível
da aparência corporal, dos equipamentos ou armas em geral. É verdade que aparecem alabardas e espadas metálicas diante de tacapes e flechas;
vestimentas requintadas e volumosas diante de peles e plumas; naus, diante de uma modesta urna cerâmica funerária. Mas não se opõem valores, nem se
acentuam as distâncias. Não há lugar para o exotismo, salvo uma ou outra menção fugidia, como os crânios-troféu espetados num tronco.
A diferença maior se estabelece no plano abstrato, da organização: é uma ordem social nova
que a chegada do colonizador representa, emanada de uma instância emblematicamente presente e multiplicada - o Estado, a coroa - garantidora dessa
ordem que se pretende estável e durável. (É sugestivo comparar, a propósito, o cruzeiro plantado em sólida base de alvenaria e a transitoriedade das
choças indígenas).
Nessa visão, portanto, o presente e um passado tão remoto são radicalmente diversos e a
única ponte que se pode estabelecer entre eles é a da evocação, procurando alguma forma que torne visíveis as referências de origem,
nascimento, a fim de que seu significado, para o presente, possa ser afirmado, reafirmado e difundido.
Em suma, esta tela de Calixto é importante documento histórico, mas não relativamente ao
século XVI. Na verdade, sabemos que a marca da colonização portuguesa não foi a ocupação de território, mas a exploração de recursos; o povoamento
terá caráter eminentemente rural, de grande autonomia, e com um tipo de urbanização muitíssimo particular.
Em compensação, a tela nos remete aos tempos em que foi produzida e consumida. Ela é, sim,
documento das necessidades simbólicas vividas por Calixto e sua sociedade, no final do século passado (N.E.: século
XIX), procurando inventar uma história para a nação ainda jovem - e já superados os ressentimentos com a antiga
metrópole.
A ocupação de território - ação expressa, em seu nível formal,
como pacífica, nobre e tranqüila, feita sob a égide da fé cristã e da coroa lusitana - integra os novos espaços e seus habitantes a um mundo já
definido e superior. As narrações (e representações) de fundações não precisam, por isso, explicar o início de alguma coisa; basta que assinalem o
que, no início, constitui plenitude, modelo, mesmo que posteriormente o tempo tenha produzido outros frutos.
Uma tela como esta é fonte preciosa de informações para reconstruir e entender o imaginário
de sua época.
(*) O autor é professor titular do Departamento de
História da FFLCH/USP e diretor do Museu Paulista da USP. |