O quadro pintado por
Benedicto Calixto, retratando aspectos da fundação da
Vila de São Vicente, não teria sido pago pela Prefeitura, que encomendou a obra
Memória
E os problemas persistem, 100 anos depois...
Documentos do início do século XX mostram preocupação com as invasões, com a praia e com os
cães soltos nas ruas
Clóvis Vasconcellos
Da Sucursal
Os problemas atuais de São Vicente já eram motivo de
preocupações há mais de 100 anos. Em março de 1886, por exemplo, o Governo da Província de São Paulo oficiava à Prefeitura recomendando medidas
sanitárias e preventivas contra o cólera. Em abril de 1890 a Câmara já apresentava propostas para construção de moradias "para proletários". Em
1899, as autoridades alertavam para o risco de desmatamento no Morro dos Barbosas e, em maio de 1905, já existiam reclamações contra barracas nas
praias da Cidade.
Preocupações desse tipo, manifestadas pelas lideranças comunitárias da época, constam de
documentos históricos, do final do século passado e do início deste século (N.E.: séculos XIX e XX),
organizados com paciência pelo chefe do Setor de Arquivo da Prefeitura, o ex-vereador Nicolino Simone. São dezenas de processos, elaborados desde
1878, que demonstram que, se as autoridades estivessem atentas para os problemas já levantados naquele período, a população não estaria enfrentando
hoje as mesmas dificuldades dos antigos habitantes da Cidade.
É o caso da ausência de fiscalização que ocorre hoje, por falta de veículo apropriado, em
relação aos cães soltos nas ruas, motivo de reclamações de muitos munícipes. No dia 20 de setembro de 1901 a Diretoria de Serviço Sanitário alertava
para a necessidade de conter o aumento do número de cães soltos pela Cidade, com a ressalva de que crescia o risco de raiva animal. Ao final, o
documento destacava que, em outros países, "as municipalidades têm elevado o imposto sobre cães, com bons resultados", para conter os abusos.
As invasões e desmatamentos de áreas, um dos problemas mais críticos deste final de século
na região, já causavam preocupação em 1905, quando a Comissão Sanitária de São Vicente alertava que a legislação em vigor proibia as derrubadas de
árvores e construção de moradia acima das represas e nascentes de água.
Um exemplo do cuidado com o meio-ambiente foi dado pelo capitão-mór Aguiar, que doou ao
Município todo o Morro dos Barbosas, com a única condição que suas matas nativas não poderiam ser derrubadas nem maculadas suas nascentes de águas
cristalinas.
A ata da doação "foi dada como desaparecida" em 30 de outubro de 1924, e o morro acabou
sendo loteado e suas nascentes afetadas pelo desmatamento. Os abusos nas praias estavam começando em 1905, quando, no dia 23 de maio daquele ano, a
Delegacia de Polícia oficiava à Prefeitura cobrando providências contra as antigas cabinas de banho:
"É esta a segunda vez que represento pedindo medidas para a regularização das barracas de
banho em nossas praias. Não cabe a mim salientar a falta de estética e de decência. São barracas grosseiramente construídas de tábuas, não
obedecendo, de forma alguma, alinhamento ou uniformidade, afetando em muito o grau de aparência de nossa praia". E o delegado alertava ainda que
muitas cabinas estavam em ruínas, permitindo "os mais repugnantes atentados à sã moral".
Benedicto Calixto (em auto-retrato) ficou inconformado
com o calote
Cidade ajudou Santos Dumont
Os documentos históricos de São Vicente trazem, também, muitos
fatos pitorescos, sendo que um deles faz lembrar as atuais cobranças de indenizações contra a Prefeitura e que resultam até em pedidos de
intervenção estadual. É o caso do famoso pintor Benedicto Calixto de Jesus, que, em 6 de fevereiro de 1905,
cobrou da Prefeitura o pagamento pelos quadros que pintou e entregou à Câmara, sem nada ter recebido até aquela data.
Ao fazer a cobrança por meio de ofício, Calixto diz que pintou um quadro, em tamanho
natural, do fundador da Vila de São Vicente, Martim Afonso de Souza, e outro
mostrando a fundação da mesma vila, em tamanho menor. Ambos, na época, foram colocados na Sala de Sessões. Calixto salienta, no documento, que o
então intendente Antônio Lima Machado ficou de recomendar à Câmara a compra das telas.
Hoje, os quadros do artista, que ficaram durante vários anos no Salão Nobre da Prefeitura,
estão na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, para restauração. Não se sabe se Calixto recebeu pelo serviço.
Sabe-se, contudo, que apenas a parte de sua obra que estava na Prefeitura de São Vicente
valia mais que todo o prédio do Paço Municipal, situado na Rua Frei Gaspar, 340.
Santos Dumont - Entre os inúmeros fatos curiosos dos documentos está, também, o
pedido de apoio financeiro às experiências de Santos Dumont, o inventor do avião, conhecido como o Pai da Aviação.
Diz o texto: "Ninguém duvida hoje que o arrojado brasileiro tenha resolvido praticamente a
dirigibilidade dos balões, mas, nem por isso, o magno problema deve considerar-se solucionado em todos os seus complexos detalhes".
E, mais adiante, um incentivo: "Agora é que os esforços do glorioso descobridor têm de
atender a interesses de ordem mais relevante, porque é preciso dar ao seu invento a utilidade prática que dele se pode e se deve naturalmente
esperar, aplicando-o, como meio normal de transporte, às necessidades da civilização".
Após discorrer sobre os gastos com oficinas e equipamentos, o documento apela: "Não devemos
permitir que Santos Dumont, além do perigo constante a que está exposto, nessas maravilhosas ascensões parisienses a 400 metros de altura, dominando
palácios e torres, pairando sobre colinas e rios, ainda se veja forçado a lançar mão dos seus próprios recursos pessoais, para levar avante suas
notáveis experiências".
Ao final, recomenda que as quantias sejam enviadas ao Banco da República, no Rio de Janeiro.
Detalhe: Santos Dumont ainda não havia inventado o avião.
Fogueira - Os documentos mostram ainda o bucolismo da antiga vila quando Antônio
Militão, em 12 de junho de 1901, oficiou à Prefeitura pedindo autorização para fazer uma fogueira em frente à sua casa para festejar o Dia de Santo
Antônio. Ou quando a empresa Duarte & Cia. pede, em 1902, que seja cobrado imposto sobre o abatimento de uma rez por dia, ao invés de duas, uma vez
que a população da Cidade, na época, não conseguia consumir mais de uma.
Alguns dos documentos guardados na Prefeitura citam quantias que deveriam ser distribuídas a
escravos alforriados e também para o pagamento de diárias "a presos pobres" na cadeia pública.
Outros tratam da criação dos serviços de transporte por bondes, de iluminação, de travessias
por barcaças no Mar Pequeno antes da Ponte Pênsil e até de levantamento para a construção da famosa ligação, inaugurada em maio de 1914.
Há, ainda, recomendações para a construção de Casas da Providência para abrigar escravos
inválidos; um pedido, de Raymundo Vasconcellos, para a construção de um "matadouro modelo", além de relato da criação do grupo de teatro dramático
Martim Afonso.
O Pai da Aviação recebeu apoio financeiro para suas experiências
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