Capítulo XV - João Pereira de Souza
De posse de sua nomeação e da carta de recomendação feitas por d. Francisco de Souza, João Pereira de Souza partiu da Bahia e à Câmara de S. Paulo
apresentou-se a 8 de abril de 1595, tratando logo de partir para o sertão.
Alguns cronistas acrescentam aos três nomes deste capitão de S. Vicente mais o
sobrenome de Botafogo e chamam-no João Pereira de Souza Botafogo. Nos arquivos públicos de S. Paulo, quer no estadual quer no municipal, só
o encontrei com os três primeiros nomes "João Pereira de Souza".
D. Francisco de Souza, na patente da nomeação, apenas deu-lhe o nome de João
Pereira de Souza. No auto de posse e na ata, em que se lê a carta de recomendação, só constam os três primeiros nomes (Reg. Geral, vol. 1º,
pág. 74). No inventário que se procedeu no sertão da Parnaíba por morte de João de Prado, feito por ordem de João Pereira de Souza, este só
assinou os três nomes, e por oito vezes, em diversos termos.
O escrivão do arraial só mencionou estes nomes nos diversos termos que lavrou
(Inv. e Test., vol. 1º, pág. 77).
Na correspondência entre a Câmara da Vila de S. Paulo e o donatário Lopo de
Souza, referindo-se a este cabo de bandeira, em 1606, só com os três primeiros nomes é ele mencionado.
Em diversos lugares, em diversos atos, em diversas épocas só
se encontram os nomes João Pereira de Souza, e jamais com o acréscimo de Botafogo [1].
A Câmara, logo que ele chegou, tomou imediatamente conhecimento da patente,
leu a carta, obedeceu e determinou que a provisão fosse registrada nos livros do conselho, o que foi feito sem demora.
É bem fácil de calcular a satisfação com que a Câmara registrou o seu triunfo,
ansiosa como estava, por uma guerra contra o gentio que ameaçava os interesses e a existência da colônia.
João Pereira de Souza era um impetuoso, e mais ainda se tornou sentindo-se
apoiado pelo governador-geral. Começou logo a agir, e sem habilidade, na formação de uma entrada ao sertão. Indispôs-se com os dois ajudantes, aos
quais desdenhava de ouvir; com as Câmaras do litoral, a que não ligou importância; e com os jesuítas, que não queriam a guerra com o gentio.
Os dois documentos – provisão e carta – devidamente registrados na Câmara de
S. Paulo, estão publicados no volume 1º das Atas, às fls. 503, e no volume 1º do Registro Geral, às fls. 74 e seguintes.
E, para que não reste dúvida alguma sobre o conteúdo dos dois documentos, vão
eles transcritos, em seguida:
"Aos oito dias de abril de 1595 os oficiais da
Câmara se ajuntaram nela para assentarem coisas necessárias ao bem comum e ali apareceu o sr. João Pereira de Souza com uma provisão de capitão
desta capitania e uma carta do senhor governador-geral d. Francisco de Souza, a qual se leu e obedeceu e se mandou que se registrasse a dita
provisão e eu Belchior da Costa o escrevi – Jorge Moreira – Gaspar Fernandes – João Sobrinho – Josepe de Camargo.
"Traslado
da provisão de João Pereira de Souza de capitão desta capitania de S. Vicente".
"Dom Francisco de Souza, do Conselho de el-rey,
nosso senhor, governador deste Estado do Brasil, etc. Faço saber a todos e quaisquer justiças da Capitania de S. Vicente, a que esta minha
provisão for apresentada e o conhecimento dela com direito pertencer que eu ora mando vir emprazado a esta cidade e alçada a Jorge Correia,
lugar-tenente e capitão e ouvidor da dita capitania e outrossim devassar dele por m'o requererem as câmaras principais de Santos e S. Vicente por
seu procurador bastante Atanazio da Mota por.... lugar-tenente se dizer... bem em seus cargos... sua majestade... bem comum da república como...
que dele... foram apresentados as ditas... pelo dito Atanazio da Mota... por esta razão dita vaga a dita capitania enquanto se tirar esta devassa
e fizerem diligências, que mando fazer, para se saber a verdade do conteúdo dos ditos capítulos hei por bem e serviço de sua majestade de prover
por capitão da dita capitania de S. Vicente a João Pereira de Souza por ser pessoa benemérita e de que confio faça o que convém ao serviço de sua
majestade e obrigação do dito cargo e para que nele corra com mais brevidade e inteireza lhe nomeio para seus adjuntos a Simão Machado e João
Batista Malio para todos três determinarem os casos e negócios da dita capitania como lhes parecer justiça e aumento......... o qual cargo o dito
João Pereira de Souza servirá enquanto eu o houver por serviço de sua majestade e o dito senhor não mandar o contrário......... ordenados, pios e
percalços ao dito cargo pertencentes assim e de maneira que.......... o dito Jorge Correia, e ele me deu... mensagem da dita capitania
obrigando-se na forma dela como é costume e houve juramento perante mim dos santos evangelhos de bem e verdadeiramente servir o dito cargo
guardando em tudo o serviço de sua majestade e as partes o seu direito, pelo que mando as justiças da dita capitania que tanto que o dito Jorge
Correia for suspenso do dito cargo de capitão e ouvidor, por virtude da provisão – que para isso mando passar, seja logo metido de posse o dito
João Pereira de Souza com os ditos declarado e que esta cumprisse...................."
Falta nesse registro a parte final da provisão; e isso é notado pelo
publicador dos livros, Manuel Alves de Souza, no volume primeiro do Registro Geral. O que falta, no Registro, pouca coisa é do final
costumeiro das provisões, o que não invalida o seu conteúdo.
Os dizeres principais do título de capitão-mor de João Pereira de Souza
encontram-se aí trasladados. A data de sua transcrição pode ser determinada pela vereança de 8 de abril de 1595, pois nesta data manda a Câmara
fazer o registro dessa provisão. No livro, o registro anterior ao da provisão é de 8 de abril de 1595 e refere-se a uns chãos concedidos a João
Maciel.
É natural que João Pereira de Souza fizesse o registro da sua provisão no
mesmo dia em que foi ele ordenado, isto é, a 8 de abril de 1595. Mas, para provar que a nomeação de João Pereira de Souza, para capitão da
capitania de S. Vicente, foi feita por d. Francisco de Souza, governador-geral do Brasil, bastaria a vereança de 8 de abril de 1595, que está
íntegra, na qual a Câmara determina o registro.
Esses são documentos autênticos com mais de três séculos de existência, ou
exatamente com 356 anos neste abril de 1955.
À vista desses documentos, cuja veracidade não pode ser contestada, a hipótese
aventada por alguns cronistas de que João Pereira de Souza tivesse sido um falsário ou que, com uma provisão falsa, se tivesse apoderado do
governo da Capitania de S. Vicente, fica completamente aniquilada.
Essa hipótese, sem nenhum fundamento de valor, originou-se da má interpretação
de uma carta dirigida a 1º de dezembro de 1605 por Lopo de Souza (Atas, vol. 2º, pág. 175), donatário da capitania de S. Vicente, à Câmara
de S. Paulo, na qual há o seguinte trecho:
"Pela carta dessa Câmara que me foi dada, entendi e
me maravilhei das maldades e traições de João Pereira de Souza, e atrevimento tão grande como foi levar uma provisão falsa minha e uma provisão
para cobrar o meu o que tudo na forma que apresentou era falso, porque quando a minha verdade não bastara para prova disto, bastava a morte que
teve de sua maldade e traição porque não sou eu o senhor que disponha um homem sem culpa, nem pelos maiores interesses do mundo, pelo que advirto
a essa câmara e ela o faça as mais que isto foi engano e falsidade" etc. etc.
Essa carta, como tudo que escreveu Lopo de Souza, é realmente confusa. Escrita
a 1º de dezembro de 1605, nela acusa João Pereira de Souza de maldades, atrevimentos, traições, falsificações de provisões e já se refere à morte
desse capitão-mor. A carta da Câmara de 13 de janeiro de 1606 (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 110) não é resposta a essa, porque alude a uma
trazida por João Pereira de Souza, que Deus levou.
Houve, pois, de Lopo de Souza uma anterior à de 1º de dezembro de 1605, da
qual esse capitão só poderia ser portador estando vivo, a qual entretanto não consta no arquivo municipal.
As Atas e o Registro Geral da Câmara da Vila de S. Paulo,
correspondentes aos anos de 1602 a 1607, desapareceram, não tendo sido publicadas; não se pode, por conseqüência, verificar os termos da
correspondência trocada, nesse período, entre o donatário e a Câmara de sua Vila de S. Paulo. Mas pode-se concluir que Lopo de Souza era um
trapalhão ou não foi sincero na carta de 1º de dezembro de 1605, como se vai ver. Desde já é de estranhar que, fazendo tão mau e deprimente
conceito sobre João Pereira de Souza, o encarregasse de levar cartas à Câmara da Vila de S. Paulo.
A autoridade de Lopo de Souza foi muito pouco respeitada na sua capitania de
S. Vicente; e d. Francisco de Souza, quando para ela se passou, em 1599, aí exerceu não só as suas atribuições de governador-geral do Brasil, como
absorveu e exerceu todos os poderes do donatário, e mesmo as funções de juiz, como se pode ver no inventário de Belchior Carneiro (vol. 2º, pág.
165), e até as dos próprios capitães por ele nomeados.
Nenhuma atenção deu ao donatário aos seus direitos, agiu como se não houvesse
donatário. Nomeou tantos capitães-mores quantos quis, ou julgou necessário para o descobrimento de minas, em que se empenhou a fundo.
E quando os capitães-mores nomeados pelo donatário estavam com ele de acordo,
acrescentava-lhe atribuições judiciais, como no caso de Roque Barreto que, nomeado somente capitão por Lopo de Souza, foi por ele nomeado também
ouvidor da capitania (Reg. Geral., vol. 7º, pág. 89).
O próprio Lopo de Souza, sem coragem ou sem forças ou sem
prestígio para fazer valer os seus direitos, também atabalhoadamente fazia nomeações para a sua capitania. Assim verifica-se na provisão em que
nomeou Antônio Pedroso de Barros e Pero Vaz de Barros, a 21 de novembro de 1605 (Atas, vol. 2º, págs. 173 e 174) capitães de S. Vicente, na
qual declara que o faz por mais um triênio, que deve portanto ser acrescido ao triênio anterior, o que mostra que já os havia nomeado três anos
antes, isto é, em 1602 [2],
e torna bem claro que a nova nomeação deveria ser contada de modo a haver mais três anos, que deveriam, pois, terminar no fim de 1608. Entretanto,
antes desses novos três anos, em fevereiro ou março de 1607, sem maiores ou menores explicações, nomeia Gaspar Conquero capitão-mor e ouvidor de
S. Vicente, desautorando os nomeados anteriormente (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 142 e 145).
A própria Câmara da Vila de S. Paulo espantava-se dessa profusão de
capitães-mores e lho diz na carta de 13 de janeiro de 1606 da maneira mais franca e explícita que possa ser.
Assim escreve:
"Só faremos lembrança a V.mcê que se sua pessoa ou
cousa muito sua e que muito se doa desta capitania, não acudir com brevidade pode entender que não terá cá nada porque estão as coisas desta terra
com a candeia na mão e cedo se despovoará, porque assim os capitães e ouvidores que V.mcê manda como os que cada quinze dias nos metem os
governadores gerais em outra coisa não entendem nem estudam senão como nos hão de esfolar e destruir e afrontar em isto gastam seu tempo, não vem
nos governar nem aumentar a terra que o senhor Martim Afonso ganhou e que Sua Majestade lhe deu com tão avantajadas mercês e favores". (Reg.
Geral, vol. 7º, pág. 111).
Quando o donatário Lopo de Souza, escrevendo à Câmara de S. Paulo, a 1º de
dezembro de 1605, diz que, por carta dessa mesma Câmara, ficou entendendo e se maravilhou das maldades e atrevimento de João Pereira de Souza
apresentando-se na capitania com uma provisão falsa, já João Pereira de Souza não pertencia ao número dos vivos, porque é o próprio donatário que
escreve, dizendo "para prova do que afirmo basta a morte que ele teve de sua maldade e traição".
A Câmara de S. Paulo, como já se notou, acusando o recebimento de uma carta de
Lopo de Souza, a 13 de janeiro de 1606, nesta época também já conhecedora dessa morte, começa a sua resposta escrevendo "Com o Capitão João
Pereira de Souza, que Deus levou recebemos uma de vossa mercê"....
Para mais confirmar a sua trapalhice ou fraqueza é suficiente ler com atenção
a sua carta de 1º de dezembro de 1605 em que há desculpas, alegando "que quanto a minha verdade não bastara", "que não sou eu o senhor que
disponha um homem sem culpas nem pelos maiores interesses do mundo". Do mesmo modo até na nomeação de capitão dos dois Barros, em que admite que
"se um não queira servir, que seja o outro". Um donatário, com grandes poderes, não se determina por essa indecisa forma e muito menos escreve, ou
faz escrever e assina por esse modo titubeante, ordens para prepostos ao governo de sua colônia americana, no tempo em que a comum rudeza da
linguagem traduzia a rijeza dos caracteres.
A única coisa que consta nos arquivos municipais e estaduais, contra João
Pereira de Souza, é a sua prisão, em 1597, "por culpa de sua devassa", quando comandava uma bandeira nos sertões da Parnaíba. Se essas são as
traições, irregularidades e audácia de João Pereira de Souza, e de outras não falam os documentos, nenhuma procedência tem a acusação.
Mas examinando atentamente o trecho da carta de Lopo de Souza, vê-se que não é
aí levantada contra João Pereira de Souza a acusação de falsificador de provisões, que ele não foi.
A culpa, que aí lhe é atribuída, é a de "se apresentar com provisão falsa do
donatário", o que mudaria a figura do delito, se delito houvesse. O que maravilhou a Lopo de Souza foi a malvadez, foi a traição, foi o
atrevimento de João Pereira de Souza em se apresentar com uma provisão falsa. Entre o apresentar-se com provisão falsa e falsificar uma
provisão vai grande distância. Com inteira boa-fé, um indivíduo pode apresentar-se com uma certidão falsa, desde que não seja ele o falsificador,
nem da falsificação tenha tido conhecimento, ainda que nessa apresentação haja maldade ou traição ou atrevimento.
A maldade, a traição e o atrevimento não são sinônimos de falsificação, embora
possam se ajuntar para uma falsificação, em alguns casos.
A provisão de nomeação de João Pereira de Souza não foi apresentada como
expedida por Lopo de Souza, donatário; mas o foi como ordenada por d. Francisco de Souza, e como tal registrada em S. Paulo, despachada, pois,
pelo governador geral do Brasil, que se julgou órgão competente para o fazer.
D. João III, na provisão de governador geral do Brasil a favor de Tomé de
Souza, sem suprimir, como já notei e é sabido, os direitos dos donatários nas capitanias, subordinou-os, entretanto, aos governadores, o que
permitia a centralização de poderes e a absorção dos direitos dos donatários. Aí teria havido mais uma absorção por parte de d. Francisco de
Souza, e não foi a única e não seria a última.
Lopo de Souza fora mal informado ou
não foi sincero; pois há na sua carta, se ela se refere à devassa de 1597, uma afirmação caluniosa visto que a provisão de nomeação, com que se
apresentou João Pereira de Souza, não era falsa nem a ele, Lopo de Souza, fora falsamente atribuída, mas ao contrário, nela se declarava de modo
expresso ser ela expedida por d. Francisco de Souza, cuja autoridade para a expedir, não era posta em dúvida e que ainda exibiu carta de
apresentação desse governador.
***
Assumindo o cargo de capitão-mor em S.
Vicente, João Pereira de Souza começou a "determinar os casos e negócios da capitania".
Nesse momento, o caso mais interessante, o negócio mais importante da
capitania era a entrada ao sertão para a guerra aos índios, que, então, era também preocupação de d. Francisco de Souza, com o objetivo de
descobrimento das minas.
João Pereira de Souza, pois, começou a preparar uma companhia para a entrada
ao sertão.
Encontrou, porém, sérios embaraços para realização de seu intento por parte
das autoridades. A 1º de junho de 1596, a Câmara da vila de S. Paulo recebeu cartas do ouvidor da capitania, Gaspar Nabo, e requerimentos da
Câmara de Santos e dos próprios adjuntos Simão Machado e João Batista Málio, em que se dizia "que fizesse saber a João Pereira de Souza e o
notificasse, que nada fizesse sem parecer e acordo dos mesmos adjuntos, e que não começasse a guerra; e, ao contrário, a sobrestivesse por causa
dos inimigos ingleses e franceses, que rondavam a costa, e também por estar o gentio amigo cansado e falto de mantimento" (Atas, vol. 2º,
págs. 15 e 16).
A notificação foi feita a João Pereira de Souza. Este, porém, ou porque
julgasse protelatórias as razões apresentadas, ou porque executasse instruções pessoais do governador-geral, ou levado pelo seu temperamento
impetuoso, a nada atendeu e a entrada ao sertão se realizou nesse mesmo 1596 (Provisão de D. Francisco de Souza, Reg. Geral, vol. 1º, pág.
105).
Não era ele morador da Vila de S. Paulo, mas encontrou da parte dos principais
habitantes a melhor boa vontade para a empresa, que todos desejavam, salvo os jesuítas e seus adeptos.
Os inventários de João de Prado (Inv . e Test., v. 1º, pág. 77) e de
Francisco da Gama (mesmo volume pág. 335) vão fornecer elementos para a reconstituição dessa bandeira, assinalando alguns dos pontos por ela
percorridos e atingidos.
Formou ele, entretanto, a sua entrada com bons elementos da vila, da melhor
parte da gente de S. Paulo, na qual encontrou decidido apoio.
E, assim, tomou parte na sua tropa Sebastião de Freitas, que dela foi
escrivão, e que em 1591 viera de Portugal, como soldado da companhia de Gabriel Soares de Souza, para descobrimento de metais preciosos no Rio S.
Francisco; ainda estiveram nessa tropa João de Prado (de Prado como ele assinava e não do Prado como tem sido escrito) com seu genro
Miguel de Almeida; também Gaspar Gonçalo Vilela, Estêvão Martins, Simão Borges, João Bernal, Filipe Vaz, Francisco Farel, Vasco da Mota, Diogo
Ramirez, Juan de Santana, Francisco Pereira, Manuel Gonçalves, Antônio Pinto, Álvaro Neto, Antônio de Campo, Antônio Castilho.
João de Prado era pessoa importante na minúscula localidade. Desde 1588, vinha
ele exercendo os cargos da governança. Nesse ano foi ele juiz, e também o fora em 1592 e vereador em 1594 (Atas, vol. 1º, pág. 444, 433 e
487).
Pedro Taques informa que ele e sua mulher, Filipa Vicente, naturais de
Olivença, nessa época ainda pertencente no território português, eram pessoas nobres e honradas. No inventário de João de Prado (Inv. e Test.,
vol. 1º, pág. 101) declara-se somente que ela, Filipa Vicente, era pessoa honrada e viúva de pessoa honrada, o que significa que os dois foram
pessoas de destaque na então insignificante vila de S. Paulo.
João de Prado, pela sua pessoa, pela sua família, pelas suas
armas, pelo número de índios administrados e escravos que possuía, foi um dos mais poderosos elementos que compuseram a bandeira de João Pereira
de Souza. Era tal a importância de que gozava, que a sua presença na entrada o punha em evidência de chefe. O padre Del Techo, na sua
Hist. Provinciae Paraquariae, o considerou chefe da bandeira, o que não é verdade. Teria sido um dos chefes, mas o chefe supremo foi João
Pereira de Souza, em cujo arraial, no sertão, ele faleceu a 13 de fevereiro de 1597, conforme expressamente é declarado no respectivo inventário
(vol. 1º, pág. 79) [3].
Não se pode afirmar com segurança o dia exato da partida da bandeira; mas foi
depois de 5 de outubro de 1596, porque, nessa data, Francisco da Gama, que nela tomou parte, ainda estava em S. Paulo e, nessa data, passou um
documento a João Fernandes, em que declarou ter dele recebido "dez cruzados emprestados de amor em graça, os quais prometeu pagar em dinheiro de
contado ou em uma peça (do gentio) pelo que valer nesta guerra em que ora vamos com o sr. João Pereira de Souza, como capitão" (Inv . e Test.,
vol. 1º, pág. 351).
Esse documento de dívida, que é cobrado judicialmente, prova que a bandeira a
5 de outubro de 1596 ainda estava em S. Paulo, mas em preparativos para a partida.
Qual o sertão em que foi feita essa entrada? A provisão de D. Francisco de
Souza, que armou cavaleiro Sebastião de Freitas, declarou que este acompanhou Jorge Correia, Manuel Soeiro (?) e João Pereira de Souza a fazer
guerra ao gentio que, em ataque, tinha vindo contra a vila de S. Paulo (vide provisão). Essas três bandeiras foram, pois, ao mesmo sertão.
A 13 de fevereiro de 1597, no sertão da Parnaíba, onde estava o arraial
de João Pereira de Souza, começou-se o inventário de João de Prado, que lá falecera (Inv. cit. pág.79).
Um outro documento de dívida de Francisco da Gama, foi cobrado judicialmente,
em S. Paulo, e cujo processo se iniciou a 22 de julho de 1600 com citação por éditos "por se achar o devedor ausente, perto de três anos ou perto
de quatro anos (Inv. Francisco da Gama, vol. 1º, págs. 349 e 350) e nele depõem cinco testemunhas que afirmam que ele era ido à guerra
de Parnaíba e dele não havia notícias".
Citando ainda Del Techo, História do Paraguai, o barão do Rio Branco,
em Ephemerides Brasileiras, de 1º de setembro de 1583, narra que no vale do Anhembi, hoje Tietê, os Tupiniquins tinham 300 aldeias e 30.000
sagitários, que, em seis anos de guerra, de 1592 a 1599, foram todas destruídas e exterminados os selvagens do Rio de Jeticaí, hoje Rio
Grande.
O rio Parnaíba é afluente da margem direita do rio Paraná e tem suas nascenças
mais a Leste, do lado das nascenças do Rio S. Francisco. Conforme se vê pelas atas da Câmara de S. Paulo, que se referem às entradas de Antônio de
Macedo e de Domingos Luis Grou, já esses sertanistas lá tinham estado. As bandeiras já tinham atravessado o Rio Jaguari, tributário do Tietê, e o
Pirapetingui seu afluente, já tinham ido além do Mogi, afluente do rio Pardo. Com as informações de Del Techo, vê-se que já tinham chegado ao Rio
Grande; e com os inventários de João de Prado e de Francisco da Gama, vê-se mais que já tinham atingido o Sertão da Parnaíba, onde João Pereira de
Souza em 1597 tinha estabelecido o seu arraial.
O sertão, pois, atingido pela bandeira de João Pereira de Souza, foi o da
Parnaíba. Essa Parnaíba não designa a hoje cidade de Santana do Parnaíba, situada apenas a cerca de 40 quilômetros da cidade de S. Paulo, e que,
naquele tempo já tinha moradores e fazendas; mas designa região muito além.
Foi, pois, no sertão onde corre o Rio Parnaíba, afluente do alto Rio Paraná,
que João Pereira de Souza foi fazer guerra ao gentio.
Essa bandeira de João Pereira de Souza sofreu muitas vicissitudes, como aliás
todas as bandeiras.
Quando se fez a repartição dos índios cativados, de que se lavrou termo no
inventário de João de Prado, a 26 de julho de 1597, João Pereira de Souza já não estava no comando da bandeira, por se achar "ausente, preso por
culpas de sua devassa" assim se declara nesse termo em que foi feito o recebimento das peças que couberam a João de Prado (Inv. e Test.,
vol. 1º, pág. 87).
Fora substituído por Francisco Pereira, que assumira o comando da expedição.
"Culpas de sua devassa" diz o termo lavrado no sertão. Na linguagem tabelioa
do escrivão, que esse termo lavrou "preso por culpas de sua devassa" significava que João Pereira de Souza fora preso, sujeito a processo judicial
para apuração de seus crimes. Onde foi feito esse processo? Em S. Paulo, em S. Vicente, na Bahia? Nada se sabe. Nos arquivos de S. Paulo nada
consta.
Qual o crime por ele praticado que o destituiu do comando, o sujeitou à
devassa e prisão? Nada se sabe com segurança, a não ser a confusa carta de Lopo de Souza a 1º de dezembro de 1605, que não é verdadeira na parte
principal referente a crimes.
Os crimes capitais, nesse tempo de catequese, na capitania de S. Vicente, eram
as entradas ao sertão, para guerra e escravização do gentio, cuja liberdade variava conforme os interesses e os intuitos dos executores das leis
que a garantiam.
Não é, pois, arbitrária a hipótese de que a devassa tivesse sido
instaurada pelo ouvidor Gaspar Nabo, por iniciativa dos adjuntos Simão Machado e João Batista Malio, sob a influência da Câmara de Santos, que
todos vigorosamente se tinham oposto à entrada de João Pereira de Souza em 1596, numa época em que muito forte estava a luta entre os dois
sistemas, o da catequese religiosa e o da colonização leiga.
Jorge Correia fora suspenso e sujeito a devassa por ter querido contemporizar
ou impedir uma entrada ao sertão; João Pereira de Souza teria sido preso e sujeito a devassa por ter feito uma entrada ao sertão.
Ora vencia a política sutil dos jesuítas, ora vencia o violento interesse dos
colonos. Os reis cobiçosos de minas de ouro ora abriam ora fechavam os olhos a essas incursões. Apesar da prisão de João Pereira de Souza, a
bandeira continuou a sua faina pelo sertão sob o comando de Francisco Pereira; mas, não obstante essa substituição, parece que a bandeira de 1596
se desmantelou. Sobre minas de ouro nada descobriu.
Francisco da Gama, que fez parte dessa bandeira, por
lá ficou três ou quatro anos, foi recolhido por Domingos Rodrigues, cabo de uma entrada em 1600, da qual adiante se tratará.
[1]
O dr. Vieira Fazenda, num artigo sob o título O Palacete Abrantes
(R. I. H. G. B., tomo 89 correspondente ao volume 143, ano 1921, Pág. 451) depois de lembrar que a Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro,
segundo Gabriel Soares de Souza, chamou-se Enseada de Francisco Velho, acrescenta: "A atual denominação proveio de ter nessa enseada grande
sesmaria João Pereira de Souza Botafogo. Foi casado com d. Maria da Luz Escossia de Drummond, natural da Ilha da Madeira, na qual os seus
ascendentes se refugiaram para evitar perseguições religiosas. Desse casal proveio d. Maria de Souza Brito. Casou com Heliodoro Ebanos, que da
Capitania de S. Vicente acompanhou Estácio de Sá, do qual era primo-irmão".
Não tendo tido ainda ocasião de estudar tal sesmaria, apesar das numerosas
pesquisas feitas, não posso afirmar ou negar que esse João Pereira de Souza Botafogo seja o mesmo capitão-mor de S. Vicente em 1595.
Esses sobrenomes "Pereira", "Souza", eram muito comuns em 1595 e
hoje, ainda o são. É possível também que designem pessoas diferentes, o que parece mais provável. Só um estudo sobre melhores documentos pode
decidir o caso. Há, porém, no Rio de Janeiro descendentes de João Pereira de Souza Botafogo, que foram consultados e nada puderam adiantar a
respeito.
[2]
Pedro Vaz de Barros exerceu esse cargo em 1603 (Atas, vol. 2º,
pág. 138).
[3]
O barão do Rio Branco, citando Del Techo na História do Paraguai,
nas Efemérides Brasileiras, dá também a João de Prado, a chefia dessa bandeira. No tempo em que foram feitas as Efemérides Brasileiras,
valiosíssima contribuição para a nossa História, não tinham sido ainda publicados pelo Arquivo do Estado de S. Paulo os Inventários e
Testamentos, de modo que o barão do Rio Branco não poderia retificar o equívoco de Techo, não tendo tido conhecimento desses inventários.
Aliás o equívoco tem pouca importância para o estudo do devassamento e conquista do sertão. |