Capítulo XIV - Jorge Correia
Por provisão de 22 de junho de 1590, expedida em Lisboa por Lopo de Sousa, então donatário da Capitania de S. Vicente, foi "Jorge Correia, moço da
Câmara de el-rei nosso senhor", nomeado capitão-mor-loco-tenente e ouvidor da Capitania de S. Vicente, de cujos cargos tomou posse em 1592,
vencendo o ordenado de 50$000 anuais, enquanto servisse os dois cargos, e de 40$000 quando exercesse um só, pagos pelas rendas da mesma capitania,
as quais eram bem escassas.
O governo de Jorge Correia não seria feliz. Veio ele encontrar a capitania
muito agitada em vista das ameaças de próximos e iminentes ataques dos índios do sertão contra a vila de S. Paulo, vila estabelecida no interior
da América Portuguesa, a mais próxima dos silvícolas.
As atas da Câmara de S. Paulo dão notícia do estado de espírito dos
governantes da terra, que refletia o estado de espírito da maioria dos homens bons e dos moradores da capitania. Sem dúvida da maioria, mas
não da totalidade, pois que alguns pensavam como os jesuítas em relação aos índios. Nem todos eram pela guerra contra o gentio. Os jesuítas tinham
também os seus partidários.
O governo de Jorge Correia foi reacionário ao do seu antecessor. Os oficiais
da Câmara reclamaram com energia e vigor a necessidade da declaração de guerra justa contra o gentio, para defesa imediata e conseqüente
ofensiva no sertão. Era um dos momentos críticos para a existência colonial do planalto.
O novo capitão-mor não via, ou não quis ver, o perigo que representava para a
colônia a vitória dos índios. Talvez considerasse exageradas as reclamações da Câmara. A verdade, porém, é que ele veio partidário da orientação
dos jesuítas, talvez a seu ver mais acertada.
Esta afirmação é justificada pela sua conduta em S. Vicente, conforme diz
Azevedo Marques em seus Apontamentos, parte cronológica, a 14 de novembro de 1593, em que afirma que Jorge Correia, de acordo com os padres
da Companhia de Jesus, resolveu impedir a guerra contra os índios tupiães e tupiniquins.
Que Jorge Correia foi partidário e amigo dos jesuítas é incontestável. Em 11
de junho de 1638 fez doação por escritura de todos os seus bens ao Colégio S. Miguel dos Padres Jesuítas em Santos (Cartório da Tesouraria da
Fazenda de S. Paulo, maço 4 de próprios nacionais, citado pelo mesmo Azevedo Marques).
Esta doação é confirmada na relação
dos bens confiscados aos jesuítas, quando de sua expulsão no século XVIII no tempo de Pombal e de d. José I. Nessa relação (pág. 345 e seguintes
dos Documentos Interessantes, fascículo nº 44 do Arquivo do Estado) encontra-se notícia da doação entre vivos, feita em 1638, por Jorge
Correia à Casa de S. Miguel de Santos de todos os seus bens, entre eles moradas na vila de S. Paulo e terras na borda do campo, para com o produto
serem compradas casas, cujo rendimento seria destinado a sustentar os reverendos padres jesuítas.
***
Em abril de 1592, começou ele a sua
atividade administrativa na vila de S. Paulo e seu termo, pelo provimento dos cargos locais. Assim, em 25 de abril fez a nomeação de Gaspar Colaço
para capitão e língua da aldeia de S. Miguel; a 9 de maio, a de Belchior da Costa, para escrivão e tabelião da Câmara, do judicial e notas,
almotaçaria e órfãos.
Por provisão de 20 de abril desse ano, nomeou para uma entrada Afonso
Sardinha (Reg. Geral, pág. 51) capitão da vila de S. Paulo, provisão que foi apresentada a 2 de maio desse ano à Câmara (Atas, vol.
1º, pág. 439).
Afonso Sardinha, apesar de procurar viver bem com os dois partidos – colonos e
jesuítas – era conhecidamente favorável à Companhia de Jesus, sua futura legatária universal (Documentos Interessantes do Arquivo do Estado
de S. Paulo, vol. 44).
A Câmara de S. Paulo, apesar de considerar Afonso Sardinha apto para fazer a
entrada, opôs objeções, sendo afinal a 30 de maio trasladada a provisão (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 51). No mesmo mês de maio de 1592
a Câmara e o povo da terra, entre outras coisas, praticaram que havia dois ou três anos que estavam em guerra e que eram necessárias providências
enérgicas para defesa da vila e para ofensiva no sertão; e, reclamando-as do capitão-mor, apelaram para o governador-geral e ouvidor-geral do
Brasil (Atas, vol. 1º, págs. 442-443).
As providências do capitão-mor Jorge Correia eram, entretanto, todas no
sentido de evitar a guerra ofensiva.
A 20 de setembro de 1592, lançou uma provisão que alvoroçou a vila de S.
Paulo. A Câmara se reuniu nesse mesmo dia, convocou o vigário da paróquia, padre Lourenço Dias Machado, os homens bons que já haviam administrado
a vila desde o tempo em que a sede estava em Santo André, todo o povo enfim, para ler e ouvir a inopinada provisão, na qual mandava entregar as
aldeias dos índios aos padres da Companhia de Jesus. A provisão foi largamente debatida, sendo considerado que Jorge Correia, vindo de pouco do
reino de Portugal, "não tinha tomado bem o ser da terra" e a necessidade dela; que Jerônimo Leitão, aí capitão-mor por cerca de 20 anos,
conhecedor dos negócios locais, jamais quis fazer tal entrega, que contrariava os índios amigos e deixava a terra à mercê dos inimigos. Foi
resolvido não se obedecer à provisão e a ela pôr embargos, sendo, entretanto, conservado aos padres da Companhia o direito de doutrinar e ensinar
os índios sem impedimento algum, como sempre o fizeram.
Das 77 pessoas presentes a esse ajuntamento, 5 votaram contra a deliberação
municipal e foram o vereador Antônio Preto, Estêvão Ribeiro, o velho, e Belchior da Costa, escrivão, e mais dois do povo – Braz Esteves e
Pero de Campos que fizeram declarações – ao todo 72 a favor e 5 contra a atitude assumida, todos assinando a vereança (Atas, vol. 1º, págs.
446 a 448).
Tal provisão abalou profundamente a Câmara e o povo e deu sério alarma aos
moradores da vila.
Foi o primeiro embate público do conflito entre os jesuítas e os colonos,
latente desde o início da catequese em 1549. Eram os dois sistemas de civilização aplicados ao selvagem – de um lado a domesticação do indígena
pelo cativeiro e pela mestiçagem, de outro lado a catequese católica exclusiva e a administração do gentio pelos padres da Companhia – que
abertamente se encontravam frente a frente.
A linguagem da Câmara nessa vereação foi hábil, firme, se bem que respeitosa.
Os colonos apresentaram embargos à provisão de Jorge Correia perante o
governador-geral do Brasil na cidade do Salvador, na Bahia.
As guerras alegadas nos embargos eram temidas conforme diziam as atas, mas
eram ao mesmo tempo ambicionadas; teriam sido provocadas pelos colonos com as suas entradas ao sertão, a princípio para resgate com o gentio e em
seguida para cativação do braço para as suas lavouras, ou teriam sido começadas pelo próprio gentio, cuja primordial preocupação da existência era
fazer a guerra uns contra os outros, umas tribos contra outras tribos, contra os portugueses que invadiam as terras, contra todos em suma.
Mas as ameaças e os ataques dos índios continuavam, os povos queriam a guerra,
reclamavam entradas ofensivas. Os jesuítas persistiam em opor a elas hábil resistência.
A orientação governamental, que Jorge Correia trouxe do reino, ou a influência
jesuítica, que na colônia sofreu, encontrava de frente os interesses dos colonos e indicava o perigo para a colonização portuguesa.
Diante dessas dificuldades o capitão-mor hesitava e procurou contemporizar. Na
provisão de 30 de setembro de 1592, registrada a 10 de outubro desse ano (vol. 1º, pág. 59 – Reg. Geral), Jorge Correia determinou que
Afonso Sardinha, em seu nome, fosse ao sertão, a ver o estado dos contrários ou a dar-lhes guerra com a maior segurança, levando a gente de
Piratininga e os índios dessa terra, ordenando que as pessoas e justiças da capitania o conhecessem como capitão dessa entrada.
Mandava fazer um reconhecimento, e dava a responsabilidade e a iniciativa da
guerra aos moradores da vila.
Foi nessa época, a 13 de novembro de 1592, que estando de caminho para a
guerra, Afonso Sardinha fez o seu longo testamento.
Nesses tempos absolutos, nesses tempos de extremo fervor religioso, Afonso
Sardinha e a gente de Piratininga tiveram medo de justificar a fama de nova Rochella, que já se aplicava à vila de S. Paulo.
Essa medida protelatória, essa entrada, pouco resultado produziu, apesar de em
alguns inventários se encontrar descrição de índios da viagem de Afonso Sardinha (Inv. e Test., vol. 1º, pág.
2(0)), os
quais poderiam ter sido cativados em outras expedições.
A maioria da opinião continuava super-excitada, reclamando a guerra ofensiva
contra os índios; mas dividida, uns do lado dos jesuítas, outros do lado dos colonos.
Algumas Câmaras mesmo, como a de Santos e a de Itanhaém, e seus povos, foram
contrários à guerra.
Na vereança de 5 de dezembro de 1593, a Câmara de S. Paulo convocou os
homens bons da vila e perante eles se leram as cartas (vol. 1º, pág. 476) dessas duas Câmaras, que entendiam "não dever se fazer tal guerra
porque o gentio não nos dava opressão".
As Câmaras do litoral estavam longe, e só temiam os ataques dos piratas
ingleses.
A Câmara de S. Paulo, para justificar a sua reclamação, fez vir alguns dos
moradores da vila – Belchior Carneiro, Gregório Ramalho, filho de Vitorino Ramalho, e neto de João Ramalho, Manuel, índio cristão de S. Miguel,
irmão de Fernão de Sousa, Gonçalo Camacho – que tinham feito parte da Companhia de Antônio de Macedo e de Domingos Luis Grou, restos da expedição,
a fim de juramentados sobre um livro dos Santos Evangelhos, declarassem o que se passou com o gentio de Bongi que havia assaltado e
desbaratado a Companhia de Macedo e de Grou.
Disseram eles que os índios de Mongi, pelo rio abaixo de Anhembi, junto
de um outro rio de Jaguari, esperaram toda a entrada, e foram dando, matando, desbaratando a uns e outros. Nesse transe "foram mortos
Manuel Francisco, o francês Guilherme Navarro, e Diogo Dias; Francisco Correia, Gaspar Dias e João de Sales levaram um tiro; um moço branco
cunhado de Pero Guedes, ou de sua casa, e Gabriel da Pena também foram mortos, fora Tamarutaca, do qual não havia notícia". "Levaram cativas
muitas pessoas e muita gente tupinaem, e apregoavam nova guerra por novos caminhos para novos ataques e depredações", razão pela qual era
necessário ir fazer-lhes a guerra e com toda a brevidade.
Era a confirmação dos ataques e assaltos mencionados na vereança de 17 de
março de 1590.
Em vista disso, foi requerida a presença do capitão Jorge Correia, que, vindo,
ouviu a leitura das cartas escritas pelas Câmaras litorâneas, a refutação a elas pelos sobreviventes da Companhia de Macedo e de Grou, e os
protestos da Câmara, que o responsabilizavam perante Deus, Sua Majestade e o senhor da terra, por todos os males que caíssem sobre a vila, visto
estarem todos prontos com suas armas e sua gente a acompanhá-lo ao sertão.
Jorge Correia ainda procurou contemporizar, dizendo ser necessário pedir
socorro ao Rio de Janeiro, falou ainda nos perigos dos inimigos piratas que vinham por mar, a que primeiro se devia acudir, sendo talvez
insuficiente a gente da capitania para as duas guerras.
Mas a Câmara insistiu, declarando que "bastava a gente da capitania para a
guerra do sertão contra o gentio de Bongi, que estava já entre mãos, e que se acudisse também ao mar e se lhe desse também o remédio
possível e com a mesma gente do mar, pois que para tudo havia gente".
O capitão Jorge Correia prometeu que tudo proveria como era sua obrigação e
que todos estivessem prestes para o seguir e o acompanhar (Atas – vol. 1º, págs. 477, 478 e 479).
Entretanto, os embargos opostos pela Câmara da Vila de S. Paulo à provisão do
capitão-mor e ouvidor da Capitania de S. Vicente, que ordenava a entrega aos padres da Companhia de Jesus das aldeias de índios, foram levados ao
governador-geral na cidade do Salvador, na Bahia, por Atanázio da Motta e iriam lá encontrar favorável acolhimento, por motivos que serão adiante
explicados.
Tais embargos não foram, porém, registrados nos livros da Câmara de S. Paulo,
nem nos da sede da capitania, mas ainda que nesta o tivessem sido, nada deles se poderia saber, porque o antigo arquivo de S. Vicente, como se
sabe, desapareceu totalmente, e há muito tempo.
Mas é lícito supor que, com mais veemência e com mais paixão, repetissem os
argumentos expostos na vereança de 20 de setembro de 1592, mostrando os perigos do cumprimento da provisão embargada.
Não sendo possível conciliar colonos com índios e com jesuítas, ou porque
tivesse tido conhecimento de que o governador geral do Brasil receberia bem os embargos da Câmara da Vila de S. Paulo opostos à sua provisão, ou
porque realmente reconhecesse que o movimento hostil dos indígenas do sertão punha em perigo os bens do senhor da terra e os senhorios de
el-rei, e, portanto, a própria existência da colônia ou por todas essas razões juntas, Jorge Correia em 1594, capitaneando os moradores da
vila de S. Paulo, "fez uma entrada ao sertão, a dar guerra ao gentio inimigo vindo a esta vila de S. Paulo a dar-lhe guerra e pô-la em cerco",
assim o declara a provisão em que Sebastião de Freitas é feito cavaleiro a 26 de junho de 1600 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 105).
Mas a sua resolução foi tardia
[1].
No tempo em que a Câmara opôs embargos à provisão de Jorge Correia, pela qual,
na capitania de S. Vicente, as aldeias de índios seriam entregues aos jesuítas, o governador-geral do Brasil era d. Francisco de Sousa.
D. Francisco de Sousa deu provimento a esses embargos, suspendeu Jorge Correia
do cargo de capitão-mor de S. Vicente, emprazou-o a ir à Bahia para se defender na devassa, que contra ele mandou instaurar. E, enquanto durasse a
suspensão, nomeou para substituí-lo a João Pereira de Sousa, com dois ajudantes, Simão Machado e João Batista Malio, para proverem os negócios da
capitania, e deu-lhe posse na mesma cidade do Salvador, na Bahia, recomendando-o em uma carta à Câmara de S. Paulo.
João Pereira de Sousa partiu imediatamente para o
Sul.
[1]
Na provisão, em que d. Francisco de Sousa armou cavaleiro a Sebastião
de Freitas, a 16 de março de 1601, também se declara que Manuel Soeiro fez uma entrada ao sertão no ano de 1595, como está publicado no
Registro Geral, vol. 1º, pág. 105.
Quando consultei o Arquivo Municipal, em 1902 e 1903, essa provisão estava
registrada na página 22 v. do livro que então tinha o nº 55, e nas entrelinhas estava feita, com letra já antiga, a "tradução" dessa provisão e aí
se lia capitão Manuel Soeiro. Manuel Alves de Sousa a seguiu a tradução e assim foi publicado no primeiro volume do Registro Geral,
pág. 22 v. Naquela ocasião pareceu-me que não era Soeiro o nome do capitão, mas Oliveira, em breve, ou Ribeiro. Assim notei nos meus
apontamentos, decalcando a grafia do escrivão, aliás, péssima. Em verdade, porém, posso afirmar que não encontrei em nenhum documento, quer do
Arquivo Municipal – atas, requerimentos, termos etc. –, quer do Arquivo Público do Estado de S. Paulo – inventários, testamentos, justificações
etc. –, o nome Manuel Soeiro nem referência a entradas ao sertão em 1595. Talvez houvesse; mas os arquivos por mim consultados foram silenciosos. |