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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
A pequena povoação vicentina do século XVI


Nas páginas do jornal santista A Tribuna, o pesquisador, historiador e cronista Costa e Silva Sobrinho incluiu inúmeros textos, alguns dos quais foram mais tarde republicados como parte de sua obra Romagem pela Terra dos Andradas. Como este, na série Santos noutros Tempos, publicado na edição de domingo, 24 de agosto de 1952, nas páginas 21 e 20 - segundo caderno - (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

São Vicente primitiva e pequenina

Costa e Silva Sobrinho

São Vicente primitiva e pequenina! S. Vicente na sua infância prodigiosa! S. Vicente de Antonio Rodrigues e de Martim Afonso de Sousa! S. Vicente de Manuel da Nóbrega, de Leonardo Nunes e de José de Anchieta! Há que tempos tudo isto vai! Os nossos olhos, os olhos da nossa memória, que é que poderão distinguir hoje através desse passado tão distante?

Diz-nos a História, no seu perene relembrar, que muita coisa poderão eles entrever, inclusive mesmo algumas relíquias documentárias dignas de serem exumadas do esquecimento.

Sendo assim, que remédio! Sacudamos o velho pó dos arquivos, deitemos abaixo os livros que, tratando da matéria, repousam aprumados nas estantes das nossas bibliotecas. Esforcemo-nos por ressuscitar o povoadozinho transitório.

Não se há mister de ser muito versado na história pátria para conhecer aquele famoso bacharel que Diogo Garcia, marinheiro português ao serviço de Espanha, teria encontrado em S. Vicente em 1527, já com trinta anos mais ou menos de morada habitual, e vivendo em companhia de filhos e genros.

Ficará, porém, de lado esse assunto. Apesar das discussões que tem suscitado, anda ele ainda muito cheio de obscuridade.

Frei Gaspar, historiador de faro sutil, vem-nos em seguida em nosso auxílio, apontando com o dedo do lado de lá, o lado onde existiu mais tarde o Porto das Naus; pois no mistério daquelas paragens outro povoador andou.

Merecem traslado as suas próprias palavras, que são poucas e ilustrativas:

"João Ramalho, diz Frei Gaspar, foi o único europeu estabelecido em Piratininga, quando aqui residia Martim Afonso. Até seu companheiro Antonio Rodrigues habitava na marinha defronte de Tumiaru, em terras que por sesmaria lhe concedeu o mencionado donatário; e por isso o encontro muitas vezes no livro mais antigo da Câmara de S. Vicente, exercitando os empregos de juiz, vereador e almotacé. Suspeito que já morava ali mesmo, continua o historiador, quando aqui chegaram os primeiros povoadores, e que esta seria uma das razões motivas de fundar o capitão-mor a vila perto da última barra. Não passa de conjetura minha esta última circunstância; porém que Antonio Rodrigues assistia defronte de Tumiaru pelos anos de 1543, consta do citado livro mais antigo da Câmara de S. Vicente, no qual se acha declarado em vereação de 4 de agosto do dito ano, que deram a vara de almotacé a Antonio Rodrigues, morador da banda d'além". (Memórias, n. 155).

Fixara-se João Ramalho no planalto para poder mais facilmente receber os escravos aprisionados no sertão pela sua gente. Dali os mandava para o litoral, para o porto de Tumiaru, destinados ao aludido Antonio Rodrigues, seu sócio, que os enviava, por sua vez, à Bahia e Pernambuco.

A propensão mercantil dos portugueses culminara naqueles apresadores de índios. Sempre com o olho turvo no mais crescido lucro, protegia-os ainda uma lei da Câmara de S. Vicente, que vedava a compra de escravos vermelhos acima da taxa de 4$000, e ao mesmo tempo recomendava aos cristãos a maior discrição na presença dos indígenas. Nenhum branco podia maldizer do outro, nem também depreciar-lhe a mercadoria.

Óbvio se nos afigura, apesar disso, que tanto Antonio Rodrigues como Ramalho muito fizeram em benefício dos povoadores do nosso país.

De sua mulher, filha do régulo Piqueroby, batizada com o nome de Antonia Rodrigues, teve o primeiro numerosa descendência, à qual o linhagista Pedro Taques deixou infelizmente de referir-se, para decerto não tisnar de bugrismo os altos foros de nobreza das famílias que incluiu no seu registro nobiliário. Silva Leme, entretanto, menos apegado a primazias de nobreza, não se desdenhou de mencioná-la na Genealogia Paulistana.

Destarte, além da companheira de Antonio Rodrigues, poderemos enumerar várias outras mulheres de povoadores e todas elas autóctones de origem. Acodem-nos à memória os nomes de Isabel Dias - Bartyra, mulher de João Ramalho; o de Margarida Fernandes, filha do morubixaba de Ibirapuera, casada com Braz Gonçalves; o de Maria da Grã ou Terebé, filha de Tibiriçá e mulher do ex-jesuíta Pero Dias; o de Ana Camacho, mameluca, descendente de João Ramalho, mulher de Domingos Luís, alcunhado o Carvoeiro, na qual radicam sua genealogia os Buenos e os Camargos; o de Suzana Dias, filha de Lopo Dias, neta de Tibiriçá, mulher de Manuel Fernandes Ramos, o desbravador do sertão de Parnaíba; o de Mécia Fernandes - a quarteirona esposa de Salvador Pires, bisneta de Piqueroby, que propagou numerosos descendentes - sendo merecidamente qualificada de Assú (Mécia-Assú) pelos subidos quilates dos seus predicados.

Sobram os documentos para multiplicarmos essa lista de matriarcas aborígenes.

Em vista do pequeno número de famílias existentes naquele tempo, intensivo cruzamento tinha por força de haver entre elas. Por isso, escreveu João Mendes de Almeida que, após a primeira ou a segunda geração, não haveria em São Paulo quem não houvesse recebido o sinal da chancela brasílica.

Conta-nos Afonso de Taunay, uma das autoridades mais eminentes neste particular, que o barão de Sousa Queiroz, cidadão de grande prestígio em São Paulo, procurando certa vez instruir um parente, longos anos ausente, acerca das relações de família, assim o aconselhava: "Quando vires alguém decentemente trajado, dá-lhe o tratamento de primo, porque o é de fato". (São Paulo no século XVI, pág. 230).

Honras de pioneiro teve o náufrago João Ramalho. Êmulo de Caramuru, patriarca dos escravizadores de índios, alcaide-mor de Santo André, capitão-mor da vila de Piratininga quando em 1562 esteve ameaçada de um assalto dos tupis do sertão, aliados aos tamoios do vale do Paraíba, foi ele pai de muitos filhos, que se ligaram à melhor gente indígena. Dele derivam inúmeras famílias. Nem há quase paulista de antiga estirpe, assevera-nos com a sua competência magistral Afonso de Taunay, que na extremidade de sua árvores genealógica não lhe encontre o nome e o de sua mulher Isabel Dias.

Em São Vicente, entre os primeiros discípulos dos jesuítas contaram-se os seus netos. Na verdade, quando começaram, com a chegada do padre Leonardo Nunes, os ministérios dos jesuítas em São Vicente, o primeiro atrito foi com João Ramalho, porque eram eles contra as mancebias e o cativeiro injusto dos índios. Gravíssima foi a questão. Sofreu Leonardo Nunes amiudadas ameaças. Mas tudo se desanuviou em 1559, com a intervenção de Nóbrega e Manuel de Paiva, este último parente e amigo de João Ramalho.

Naqueles dias tão distantes, os problemas relativos à moral e aos costumes deviam de fato ser tremendos.

Na Bertioga, por exemplo, havia certo Pascoal Barrufo, que fazia servir-se à mesa por jovens escravas, no maduro esplendor das suas formas, como outras tantas Evas no Paraíso, e dava-se à fantasia de com isso afrontar os seus hóspedes mais respeitáveis. (Taunay, obr. cit., 7).

Quem se der ao paciente labor de respigar fatos interessantes nos nove volumes de Silva Leme, a intervalos achará uma iluminura galante para aligeirar os enfados de trabalhos como este nosso. Ponhamos um exemplo:

No princípio da fundação de S. Paulo, em 1554, passou de S. Vicente para ali um irmão leigo da Companhia de Jesus. Chamava-se Pero Dias.

Governava os índios daquela região o cacique Tibiriçá que foi batizado com o nome de Martim Afonso Tibiriçá. Era este violento, desabrido, tenaz, e os seus olhos encovados, como duas sinistras janelas, refletiam-lhe a alma nos instantes de capricho e de mau humor. Ao irmão leigo, entretanto, rodeava-o constantemente de inefáveis atenções. Afeiçoou-se tanto pelo leigo Pero Dias, que o pediu para seu genro.

Explicaram-lhe os padres a impossibilidade de realizar-se tal pretensão. Não se capacitava, porém, o cacique de que aquele irmão leigo, em quem resplendia uma mocidade pletórica, não pudesse casar. E, pertinaz, porfiava no seu propósito. Não havia meio de o velho índio compreender o poder dos votos religiosos. Não percebia nada das razões que ao celibato e à castidade prendiam o seu afeiçoado.

Vendo os superiores de Pedro Dias que tão poderoso e dedicado amigo começava a entediar-se com o caso, julgaram melhor consultar sobre ele a Santo Inácio de Loyola, então residente em Roma. E pelo fundador da Ordem foi resolvido, em face das ponderosas razões apresentadas, desligar o jovem leigo da Companhia e permitir-lhe, querendo, que se casasse. Destarte Pedro Dias desposou Terebé, a filha de Tibiriçá, que no batismo veio a receber o nome de Maria da Grã, em homenagem ao padre Luís da Grã, que foi o primeiro superior do Colégio de Piratininga.

Encontrou Pero Dias na sua Terebé, a mulher predestinada, que foi para ele uma divindade reveladora, que o amou com o mesmo profundo enternecimento de uma senhora dotada das mais puras virtudes antigas. Desse consórcio surdiu, enfim, grande descendência. E Tibiriçá, o antepassado da maioria dos paulistas, na imensa embriaguez da sua felicidade, viveu mais esse sonho radiante.

Martim Afonso Tibiriçá, companheiro de armas dos paulistas e amigo leal dos jesuítas, mereceu destes, quando faleceu, no Natal de 1562, "a maior homenagem, que os mesmos fazem aos seus amigos, ainda que sejam reis" (Serafim Leite, Hist. da Comp. de Jesus no Brasil, 1, 292).

Essa figura, luminosa e real, ficará na memória de todos os brasileiros.

Neta desse Tibiriçá e filha de João Ramalho, foi ainda Joana Ramalho, casada com Jorge Ferreira, cavaleiro fidalgo, capitão-mor loco-tenente da Capitania de S. Vicente por duas vezes, a primeira em 1556 e a segunda em 1567.

Iniciou, segundo frei Gaspar e frei Vicente do Salvador, uma povoação na Ilha de Santo Amaro, a qual se extinguiu antes de ter pelourinho (Memórias, 281; História do Brasil).

"Ele opinava conforme os empregos que tinha", diz-nos frei Gaspar (obr. cit., 287). Talvez por isso mesmo, a nosso sentir, teria fomentado a célebre questão de terras entre a condessa de Vimioso (N.E.: o nome certo é Vimieiro) e o conde de Monsanto.

Frei Vicente do Salvador, na sua História do Brasil, que é a primeira história do Brasil composta por brasileiro, observou que os portugueses, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitavam por negligência das do Brasil, mas se contentavam "de andar arranhando ao longo do mar como caranguejos" (pág. 19).

Insolidários neste ponto com o laureado historiador baiano, ser-nos-ia fácil demonstrar o seu desacerto com o simples exemplo dos nobres povoadores de São Vicente, se não tivéssemos de deslizar do nosso tema. Os vicentinos, a quem serviram de molde as ações dos seus maiores, souberam inscrever-se no padrão do bandeirismo.

Falta-nos espaço para desenvolver aqui esse assunto, mas citaremos um caso para exemplificar.

No seu viver recolhido, entre o verde das matas e o marulhar das ondas, houve sempre em São Vicente a vitalidade latente de um povo viril.

Aí estão os Motas, os Monizes de Gusmão, os Laras, os Guerras, os Paivas, os Sodrés, os Pachecos Nobres, os Tavares, os Furtados de Mendonça, os Lopes da Silva, e tantos outros nomes de genuína cepa vicentina. São títulos que convidam a instrutivas digressões pelo passado. E bem as merece terra tão evocativa.

Ocorre-nos, em conclusão, haver lido numa das obras de Cícero, uma passagem a respeito de um antigo solar romano que nos impressionou vivamente. Contava-nos o insigne orador que aquela vivenda tinha sido para Cnéus Octavius, parente ilustre do imperador Augusto, um título de honra que havia concorrido para elevá-lo à dignidade de cônsul, embora fosse ainda bastante moço.

É que aquele solar era um símbolo no qual se encerravam as tradições heróicas dos seus antepassados. Ele ali estava evocando aos pósteros o amor do passado, o culto das tradições, porque o presente se alumia e encaminha pelo pretérito.

Em S. Vicente, tudo nos projeta o espírito através das centúrias, tudo nos aproxima do passado e nos faz pensar nesse elemento plástico formador dos destinos da nacionalidade - que é a sua gente admirável.

Costa e Silva Sobrinho também publicou em seu livro Romagem pela Terra dos Andradas esta palestra, datada de 27 de janeiro de 1952 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Cenas e figuras do passado vicentino

(Palestra realizada a convite da Câmara Municipal de São Vicente, dia do 420º aniversário de fundação daquela cidade)

Costa e Silva Sobrinho

Quatrocentos e vinte vezes faz hoje que esta data se reproduz na série do tempo, assinalando a fundação de S. Vicente pelo insigne guerreiro e navegador Martim Afonso de Sousa.

Quatrocentos e vinte anos que, trazidos nas asas brancas das velas de uma heróica e deslumbrante armada, aqui desembarcavam cerca de 400 homens, da melhor gente lusitana, para colonizar e guardar as costas do Brasil.

Dia é este portanto, que simboliza para todos nós uma hora culminante, uma hora sublime da história pátria - a da primeira alvorada da nação brasileira. E, no perscrutar  o fundo desse passado distante, confessamos a peito aberto que sentimos sempre uma sedução imensa.

Por esse motivo, aquiescendo à gentileza do convite que nos fez o digno presidente da Câmara, nosso prezado amigo Edison Teles de Azevedo, concordamos em vir hoje aqui para convosco celebrar esta grande efeméride e reviver um pouco do pretérito da cidade.

Para revivê-lo apenas um pouco, frisamos bem, porque nada mais faremos do que uma ligeira evocação de quadros de que S. Vicente foi cenário e teatro e de algumas personagens que aqui ou nasceram, ou viveram, ou se finaram. Não precisamos recordar o feito de Martim Afonso, que é assunto bastante conhecido.

Para quem tem a curiosidade das averiguações, são mais interessantes os pontos menos trilhados, as veredas pouco iluminadas da nossa história. Até porque o povoado martim-afonsino, durante a sua primeira centúria, marasmou numa grande estagnação. Saint-Hilaire, na Viagem à Província de S. Paulo, menciona a povoação de S. Vicente em 1630 apenas com 200 habitantes, excluídos os escravos. Ela pouco se diferenciava da aldeiazinha de 1532.

Vejamo-la, por isso, no mesmo dia de hoje, neste mesmo mês, mas há 337 anos, quando defronte das suas praias, à boca da barra, balouçava uma esquadra estrangeira.

Era Jorge de Spilbergen quem ali estava, isto é, um dos melhores navegadores holandeses daquele tempo, que tinha recebido o comando de uma frota equipada pela Companhia das Índias Orientais, para atravessar o estreito de Magalhães, percorrer a costa sul-americana do Pacífico e rumar para as Molucas, donde prosseguiria viagem a fim de completar a circunavegação do globo.

Assim, haviam zarpado de Amsterdam a 8 de agosto de 1614 as seguintes naus: o Sol grande, a Lua grande, o Caçador e a Gaivota; da Zeelândia: o Éolo; de Roterdam: a Estrela matutina. Eram ao todo seis naus.

A 3 de outubro vogava a esquadra nas costas da Ilha da Madeira. Avistava a 23 as ilhas do Fogo e Brava, no arquipélago de Cabo Verde, e a 9 de dezembro os navios cruzavam os Abrolhos, a 30 milhas da costa da Bahia. Comemoraram essa passagem com um serviço religioso em ação de graças. E, ao jantar, cada marinheiro teve em sua mesa uma bilha de vinho espanhol.

Em 12 de dezembro avistaram a costa do Brasil, muito alta e montanhosa. E daí em diante navegaram sempre à vista da terra. À barra do Rio de Janeiro chegaram no dia 19. Com a Gaivota sempre na dianteira, atingia enfim a frota a Ilha Grande, no dia 20, fazendo-se ali aguada e grande pescaria.

A 15 de janeiro de 1615 a esquadra desaferrava da Ilha Grande, zarpando para S. Vicente, com o fim de pedir refresco aos portugueses. A costa paulista era vista a 17. Enxergava-se em terra grande fumarada. No dia 18 a Gaivota chegava a pouca distância da praia, em S. Vicente, onde havia muita gente.

Gritavam os portugueses que só descesse em terra um homem e que os escaleres não tentassem ancorar. João Hendriksz, segundo piloto da Lua Grande, despiu-se, e rápido nadou para a terra Apareceu então uma porção de homens brancos seguidos de numerosos índios armados de arco e flechas. Dentre os brancos sobressaiu um que perguntou ao piloto de que nação eram os seus, donde vinham, para onde iam e que pretendiam ali. Que eram flamengos, respondeu-lhe o outro, que queriam comprar refrescos ou provisões para a guarnição, e que iam para o Rio da Prata.

Desconfiado daqueles flamengos que não eram súditos de Portugal, respondeu-lhes o luso interpelante, que no Brasil estavam todos proibidos de traficar com os de Holanda.

No dia seguinte, fundeou Spilbergen com quatro dos seus navios, na baía de Santos, deixando o Caçador de sentinela na frente da praia de Parnapoan, onde tinham aparecido os portugueses e os índios.

De 20 a 22 levaram os flamengos a parlamentar com os portugueses, tendo o almirante mandado de presente a Pero Cubas, capitão-mor interino de S. Vicente, dois queijos, duas garrafas de vinho velho espanhol, um pacote de facas e várias quinquilharias para o povo.

Não foi possível, entretanto, nenhuma avença entre eles. Pelo que, a 23, o próprio Spilbergen assumiu a iniciativa de uma ação enérgica. Investida de todos os lados, S. Vicente tinha de pagar bem caro a audácia das suas recusas.

Parte da esquadra avançou para a entrada da barra de Santos e parte para o porto de S. Vicente. Ocuparam o grande engenho de S. Jorge, com as suas várias dependências e uma igreja, perto da nascente do rio S. Jorge, também chamado, por isso mesmo, rio da Igreja. Era ela dedicada a N. Senhora das Neves, nome que João Cornelissen de Mays, cronista daquela viagem, grafou Seignora de Nives, por conhecer o latim "nix, nivis", e no plural "nives, nivium", e ignorar completamente o português "neves". Desse lugar aprazível, onde havia pomares e extensos canaviais, trouxeram os escaleres muita fruta para bordo.

A 24 entrou Spilbergen pelo canal, em direção à vila de Santos, e mandou que quatro chalupas subissem o rio da Bertioga em busca de refresco.

No dia 29 voltaram as chalupas holandesas à praia de S. Vicente, dirigiram-se os soldados ao lugar de um velho baluarte, colheram nos pomares mais de 8.000 laranjas, limões e abateram vários suínos.

Incendiaram ao mesmo tempo um engenho, um depósito de açúcar e a igreja de Santa Maria de Nague, palavra esta que o cronista erradamente grafou, devendo ser N. S. dos Navegantes, por dizer-se em latim "navigans". Tudo isso tinha pertencido a Jerónimo Leitão, conforme licença que obtivera da Câmara vicentina em 14 de agosto de 1580 para construir um engenho, um trapiche com casa de purgar e uma capela ao lado fronteiro a Tumiaru, ou fronteiro à vila (Cfr. Gaspar, Memórias, n. 35).

E, afinal, o "velho baluarte", era o fortim mais tarde conhecido pelo nome de Fortalezinha, a qual se acha mencionada na planta hidrográfica da barra e do porto de Santos, levantada pelo barão de Tefé, em 1876; no mapa da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de S. Paulo, edição preliminar de 1911; e nos trabalhos de Calixto. Ela ficava precisamente no sítio chamado mais tarde Fortalezinha, ou Casa de Pedra.

Numa escritura pública de venda do sítio Parnapuan, passada em 12 de fevereiro de 1891, entre Joaquim Manuel das Neves e outros e Antonio de Lima Machado e outro, pudemos verificar que aquele sítio dividia de um lado "com a Prainha, em frente à boca da barra de S. Vicente, e Pasto Grande, e partia da Fortalezinha ou Simirinduba ao cume do morro etc.".

Esse nome tupi - Simirinduba - afigura-se-nos corruptela de Itamirindyba, que significa lugar onde existem em abundância pedras pequenas. A denominação de sítio Casa de Pedra, vamos encontrá-la por sua vez no aviso régio de 1817, época em que tal imóvel pertencia a d. Josefa Ferreira Bueno, e media 100 braças de testada por 50 de fundos.

Estas coisas remotas, que nos levam o pensamento para os longes do passado, é pena que hoje só existam em velhos e relegados papéis. Seriam preciosas relíquias documentárias, seriam, se ainda aí estivessem, as raízes vivas desta nacionalidade que os nossos antepassados com tanto esforço, com tão entranhável carinho e tanto amor edificaram!

Mencionaremos ainda outro iconoclasta das nossas coisas antigas.

Na segunda metade do mesmo século XVII, havia em S. Vicente um homem de gênio arrebatado, grosseirão e violento, que se chamava Manuel Vieira Calassa. Era capitão de infantaria.

Residiam também ali, na mesma época, o capitão Rafael Carvalho, lisbonense, e sua mulher d. Catarina de Siqueira de Mendonça. Tinha este casal uma filha, filha única, de 16 anos, cuja beleza se expandia com a graça e o perfume de uma flor. Achavam-na mesmo a figura feminina mais sedutora do vilarejo.

Vendo-a constantemente, enamorou-se dela aquele Manuel Vieira Calassa. E começou ele a sentir então que o amor lhe serenava os estouvamentos impulsivos, aperfeiçoava-lhe a alma dura e brutal, comunicava-lhe lucidez aos pensamentos e doçura ao coração. Sentindo-se por isso possuído da maior paixão que ainda palpitou e fremiu e ardeu em coração de homem, deliberou casar-se com ela.

Foi à casa de Rafael Carvalho. Acolhido com fidalga cortesia, pediu em casamento a encantadora Margarida. Após um ligeiro intervalo de meditação, respondeu-lhe Rafael Carvalho:

- Pois sim, sr. capitão, vou consultar minha filha a esse respeito.

- Segundo nossas usanças, ponderou Calassa, em tais casos compete aos pais dispor da vontade e da sorte dos filhos.

- Não, redargüiu o pai, quero que minha filha encontre no casamento a realidade das suas aspirações. Eu preciso ouvir-lhe a voz do coração.

- Visto isso, tornou o pretendente, que conhecia muito bem a firmeza das resoluções de Rafael Carvalho, aguardarei a resposta.

E saiu ruminando o seu resplandecente sonho.

Margarida, consultada, rejeitou desde logo o pedido.

- Conheço-lhe o gênio despótico, impulsivo e estouvado - disse ela. Não porei o meu destino aos pés desse homem.

Sabedor da recusa, teve Calassa uma explosão de cólera. Já concitava capangas e valentões para um ataque à residência de Rafael Carvalho, quando, informado disso, mandou este a mulher e a filha para a casa de Cipriano Tavares, seu cunhado e capitão-mor governador da Capitania, e dispôs-se a pelejar com os acometedores. Essa desavença, porém, deu apenas muito que falar. Não desfechou em luta.

Algum tempo tinha rodado sobre esse fato. Um dia, novo casamento aparecia para a linda vicentina. Pedia-lhe a mão desta feita Domingos da Silva Monteiro, filho de outro Domingos da Silva Monteiro, sargento-mor da fortaleza do Itapema.

Mas o tempo, grande desgastador de tenções, não havia cambiado ainda em desenganos as esperanças de Calassa. Pretendeu este procurar no pó desinteressante do arquivo da Câmara Municipal, certos documentos relativos à família do pretendente. Pedindo licença para isso ao capitão-mor, este não lha deu.

Ele, então, a coberto das trevas da noite, conseguiu entrar naquele arquivo. A sala estava às escuras. Alumiou-a com um candeeiro de latão amarelo de dois bicos. Revolveu com mão audaz todos os livros e escritos que encontrou, deixando-os em desordem.

De repente, a chama do candeeiro acendeu uma viva labareda num monte de papéis e um incêndio abrasou todos os livros, todos os documentos, todos os móveis do primeiro, do mais precioso arquivo do Brasil. Por esse motivo, escreveu Afonso de Taunay: "Atas seiscentistas da Câmara de S. Vicente, é coisa de que desde séculos não existem vestígios". (Na era das bandeiras, 86).

Margarida Carvalho da Silva veio a casar-se com o aludido Domingos da Silva Monteiro, que pouco depois partia com ela para a remota Cuiabá, como provedor dos reais quintos, e lá enfim faleceu.

O capitão Manuel Vieira Calassa, que alguns chegaram a dizer que havia enlouquecido, viveu ainda longos anos bem rijo e são. Disso aliás nos certifica este fato curioso:

Em 26 de junho de 1701, servindo como padrinho de batismo de uma filha do capitão João Dias Mendes, pôs-lhe o nome Margarida. Demonstrava assim que permanecia na sua alma a lembrança recolhida e intensa daquela que loucamente amara.

Ao lado desses inimigos das tradições da cidade, citemos agora alguns amigos, amigos mais chegados aos nossos dias.

Inda no século XVII, e já no seu derradeiro quartel, chegava a S. Vicente um homem que depois veio a ser tronco de numerosas e preclaras vergônteas. Referimo-nos ao sargento-mor José Gonçalves de Aguiar, natural de S. Martinho de Lordelo, no bispado do Porto. Desposou-se com a vicentina Josefa Rodrigues de Lara e desse casamento surdiram sete filhos.

O sétimo, de nome Gaspar Gonçalves de Aguiar, nascido em 1727, casou por sua vez com Beatriz Corrêa de Oliveira, de Conceição de Itanhaém. Figura ele na lista da Ordenança de S. Vicente, em 1765. Lavrador, punha no trabalho a força criadora de todas as suas energias; e por isso, em 1798, aos 71 anos de idade, colhia 150 alqueires de arroz, 90 de farinha e 100 medidas de aguardente. Possuía a seu serviço duas agregadas e 15 escravos. Ademais, tinha rede de arrastar, com a qual ganhava por ano 25$600. Tudo vendia para a vila de Santos. E gastava anualmente em sua casa em vestuário 100$000.

Seis filhos teve ele, sendo que o quarto nasceu a 10 de setembro de 1765 e na pia batismal recebeu o nome de José, em 21 do mesmo mês e ano. Chegou este a capitão-mor. É o capitão-mor José Gonçalves de Aguiar, ou simplesmente capitão-mor Aguiar, o último capitão-mor de S. Vicente.

De seu matrimônio com Vitoriana Ferreira Ribas, natural da vila de Curitiba, filha de Manuel José Ferreira e Antonia Maria Ribas, nasceram:

1) Gertrudes Gonçalves Ribas, em 1803, que foi casada com o sargento-mor João Pereira Sodré;

2) José Manuel Gonçalves Ribas, 1804, que casou com Rosa Maria da Assunção, filha de Manuel Antonio Machado e Domingas da Conceição;

3) Manuel Gonçalves Ribas, 1806, falecido na infância;

4) Manuel Gonçalves Ribas (2º), 1810, também falecido criança;

5) Maria da Luz Gonçalves Ribas, 1812, casada com João de Azevedo Cunha; e, finalmente,

6) Carolina de Oliveira Ribas, 1817, casada com João Pereira Machado, filho do citado Manuel Antonio Machado e sua mulher Domingas da Conceição.

Quisemos fazer esta referência a esses vários nomes porque a quase todos eles, como a raízes profundas de uma tradição doméstica, estão ligadas importantes famílias vicentinas e santistas. Constituem o liame entre o tempo que foi e o tempo de agora.

O sargento-mor Aguiar faleceu em 22 de dezembro de 1843, assaz entrado em anos, tendo transposto a casa dos 78, e foi inumado na igreja Matriz, defronte do altar de N. S. da Assunção.

Habituado a medir-se com toda a sorte de trabalhos, foi grande lavrador; foi edil e juiz vereador em 1806; fez o recenseamento de S. Vicente em 1813; foi procurador da Irmandade do Santíssimo Sacramento; foi presidente do senado da Câmara em 1822; e, em 1835, exerceu o cargo de juiz municipal, com grande opinião de competência e inteireza.

Como juiz vereador, assinalou-se em 1817 Sebastião Lopes de Azevedo. E distinguiram-se também pelo merecimento seus dois filhos: Tomaz Antonio de Azevedo, como juiz de paz, em 1841, 1888; e João Marcelino de Azevedo, como presidente da Câmara de 1871 a 1873.

Não pode, por conseguinte, ser mais fagueira a fortuna da presidência atual da Câmara de S. Vicente, quando a vemos ocupada por uma pessoa do porte de Edison Teles de Azevedo, digno descendente desses homens que foram valorosos romeiros do progresso da cidade.

Não cabe nas proporções da nossa palestra desenvolvermos aqui os diferentes capítulos da história desta terra.

Conteriam eles, sem dúvida, substanciosas notícias sobre temas como estes: o Colégio dos Meninos de Jesus; o engenho dos Erasmos; o Pelourinho; o Senado da Câmara e os antigos camaristas; os capitães-mores; os vigários antigos; a Fazenda de Santa Ana (onde nasceu frei Gaspar); a agricultura; o comércio; as estatísticas; a cadeia antiga; o cemitério; as vias públicas e as suas denominações; a ponte pênsil; a instrução; a Empresa Carris de Ferro; S. Vicente na Abolição e na República; a imprensa; o marquês de S. Vicente e a razão do seu título; e vicentinos olvidados como, pondo um exemplo, o padre Manuel Gomes Loureiro, que era tão conhecedor da história de S. Vicente e de Santos que Machado de Oliveira, seu sobrinho, para escrever o Quadro histórico da Província de S. Paulo, dele colheu preciosos subsídios.

Dois pontos, por isso, vão servir-nos de fecho e remate. São eles: o recrutamento em S. Vicente, e o problema da água.

No período colonial, e até mesmo no Império, o recrutamento para as tropas foi o maior espantalho do nosso povo. Quem estivesse em condições e servir ns fileiras, era logo agarrado e conduzido aos respectivos postos. Para o recrutamento não existia critério algum. Dependia tudo das exigências do momento e sobretudo do arbítrio das autoridades.

Atibaia, por exemplo, tornou-se quase erma em 1797, quando ali apareceram alguns agentes recrutadores. A população evadiu-se. Meteram-se os moços por entre a espessura das matas, donde cada um saía, pouco tempo depois, de cabeleira intonsa, barba copiosa e dispersa e o bigode a chover-lhe sobre os lábios. São Vicente foi uma das grandes vítimas desse flagelo. Contra o excessivo e constante recrutamento de jovens vicentinos a própria Câmara Municipal chegou certa vez a reclamar.

Por isso mesmo, Rodrigo César de Menezes, quatro dias após haver tomado posse do cargo de governador da Capitania de São Paulo, já comunicava a d. João V que havia ordenado ao governador da praça de Santos que não continuasse a arrolar na milícia os moços de São Vicente "pela grande vexação (são palavras do governador) que experimentava aquele povo", e para que a vila não se despovoasse.

Sem embargo disso, o recrutamento de quando em quando reaparecia. Caso interessante foi até o que se deu no segundo império.

Era chefe de polícia o dr. Cardoso de Melo Filho. A Constantino de Mesquita, então primeiro suplente do subdelegado de polícia de São Vicente, oficiava ele solicitando que auxiliasse com o seu destacamento policial o serviço de recrutamento que ia ser realizado naquele município. A resposta da referida autoridade policial vicentina foi esta:

"Ilmo. Exmo. Sr.

"Constantino de Mesquita, primeiro suplente do subdelegado da Vila de S. Vicente, tendo, no exercício desse cargo, prestado o relevantíssimo serviço de não fazer coisa nenhuma, vem comunicar a V. Excia. que se considera demitido da tal suplência, e desiste da vara que, por ficção, constata o exercício do cargo.

"Não concordando com as ordens do governo para que haja recrutamento - com ou sem os abusos a que se refere o último aviso do ministro da Justiça, o abaixo assinado cederia de seus intentos e começaria por caçar gente se lhe fosse permitido recrutar as três pessoas mais competentes para preencher os claros do exército: 1º) V. Excia.; 2º) o sr. presidente da Província, e 3º) o duque de Saxe".

Seguem-se na mesma linguagem de troça outros desrespeitos, e remata deste teor: "Deus me guarde de V. Excia., do cônego Manuel Vicente, e das notas falsas. Santos, 16 de novembro de 1888. - Constantino de Mesquita".

Agora o problema da água.

O problema da água é mais do que secular nesta cidade; pois surgiu ele em 1822, quando a Câmara tratou de adquirir metade do morro dos Barbosas. Pertencia este a diversos pardos forros, como Caetano Barbosa, Raimundo Barbosa, Domingos Barbosa, José Mariano Barbosa, Maria Barbosa, Inácia Barbosa e Mariana Barbosa.

Intimados todos eles pelo senado da Câmara para exibir o seu título de domínio e assinar um termo pelo qual se comprometessem a não fazer novas plantações, e nem derrubar pau algum nas redondezas da fonte ali existente, recusaram-se a apresentar o referido documento e não quiseram assinar termo algum.

O juiz presidente e os vereadores estranharam esse tamanho "arrojo", com que se atreveram eles a faltar às ordens do senado e, por isso, mandaram que os recolhessem à enxovia.

No mesmo instante, um deles principiou a dizer que padecia de um reumatismo teimoso, outro que sofria de asma, outro que tinha uma lesão no coração; uma das mulatas, caipira esquiva como uma onça nova, pôs-se a chorar; e, em conclusão, acabaram acrescentando que não tinham dúvida em assinar o termo que o senado da Câmara determinasse e daquela hora em diante jamais plantariam nem cortariam árvore alguma na dita metade do morro.

O morro inteiro lhes tinha custado 12$800. Para que não fossem prejudicados, pagou-lhes a Câmara pela metade dele 6$400. E assim conservou S. Vicente, sob um dossel verde de ramarias, a frescura das águas cantantes da fonte chamada outrora "dos Jesuítas".

Um correspondente do Diário de Santos, proclamando em 25 de dezembro de 1872 a excelência dessa água, escrevia: "Muito me tem descontentado o estado em que se acha o nosso chafariz. Ali se encontra a melhor água conhecida, e não houve quem não ficasse surpreendido, ao prová-la. É de tal forma leve e cristalina, que merece a atenção dos poderes públicos.

"Em vez de torneira, existe uma bica, fechada com um batoque de madeira, e o que mais me indigna é ver que em razão da enorme procura, do meio dia em diante, vai-se manifestando bem sensível redução na água desse chafariz. Não se fez até hoje um reservatório, e estou vendo o momento em que ficaremos de todo sem este recurso".

Em 1883 o Governo Provincial promulgou várias leis sobre a canalização de água potável na vila de S. Vicente. Em 1887, foi encarregado de fazer estudos a esse respeito o engenheiro dr. José Luís Coelho.

A matéria, como se vê, poderá ministrar uma bela página à história da cidade; sem ficar no esquecimento que a história se repete e... de tais Barbosas se fazem também figuras simbólicas.

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