Cenas e figuras do passado vicentino
(Palestra realizada a convite da Câmara Municipal de São Vicente, dia do 420º aniversário de fundação daquela cidade)
Costa e Silva Sobrinho
Quatrocentos e vinte vezes faz hoje
que esta data se reproduz na série do tempo, assinalando a fundação de S. Vicente pelo insigne guerreiro e navegador Martim Afonso de Sousa.
Quatrocentos e vinte anos que, trazidos nas asas brancas das velas de uma heróica e deslumbrante
armada, aqui desembarcavam cerca de 400 homens, da melhor gente lusitana, para colonizar e guardar as costas do Brasil.
Dia é este portanto, que simboliza para todos nós uma hora culminante, uma hora sublime da
história pátria - a da primeira alvorada da nação brasileira. E, no perscrutar o fundo desse passado distante, confessamos a peito aberto que
sentimos sempre uma sedução imensa.
Por esse motivo, aquiescendo à gentileza do convite que nos fez o digno presidente da Câmara,
nosso prezado amigo Edison Teles de Azevedo, concordamos em vir hoje aqui para convosco celebrar esta grande efeméride e reviver um pouco do
pretérito da cidade.
Para revivê-lo apenas um pouco, frisamos bem, porque nada mais faremos do que uma ligeira evocação
de quadros de que S. Vicente foi cenário e teatro e de algumas personagens que aqui ou nasceram, ou viveram, ou se finaram. Não precisamos recordar
o feito de Martim Afonso, que é assunto bastante conhecido.
Para quem tem a curiosidade das averiguações, são mais interessantes os pontos menos trilhados, as
veredas pouco iluminadas da nossa história. Até porque o povoado martim-afonsino, durante a sua primeira centúria, marasmou numa grande estagnação.
Saint-Hilaire, na Viagem à Província de S. Paulo, menciona a povoação de S. Vicente em 1630 apenas com 200 habitantes, excluídos os escravos.
Ela pouco se diferenciava da aldeiazinha de 1532.
Vejamo-la, por isso, no mesmo dia de hoje, neste mesmo mês, mas há 337 anos, quando defronte das
suas praias, à boca da barra, balouçava uma esquadra estrangeira.
Era Jorge de Spilbergen quem ali estava, isto é, um dos
melhores navegadores holandeses daquele tempo, que tinha recebido o comando de uma frota equipada pela Companhia das Índias Orientais, para
atravessar o estreito de Magalhães, percorrer a costa sul-americana do Pacífico e rumar para as Molucas, donde prosseguiria viagem a fim de
completar a circunavegação do globo.
Assim, haviam zarpado de Amsterdam a 8 de agosto de 1614 as seguintes naus: o Sol grande, a
Lua grande, o Caçador e a Gaivota; da Zeelândia: o Éolo; de Roterdam: a Estrela matutina. Eram ao todo seis naus.
A 3 de outubro vogava a esquadra nas costas da Ilha da Madeira. Avistava a 23 as ilhas do Fogo e
Brava, no arquipélago de Cabo Verde, e a 9 de dezembro os navios cruzavam os Abrolhos, a 30 milhas da costa da Bahia. Comemoraram essa passagem com
um serviço religioso em ação de graças. E, ao jantar, cada marinheiro teve em sua mesa uma bilha de vinho espanhol.
Em 12 de dezembro avistaram a costa do Brasil, muito alta e montanhosa. E daí em diante navegaram
sempre à vista da terra. À barra do Rio de Janeiro chegaram no dia 19. Com a Gaivota sempre na dianteira, atingia enfim a frota a Ilha
Grande, no dia 20, fazendo-se ali aguada e grande pescaria.
A 15 de janeiro de 1615 a esquadra desaferrava da Ilha Grande, zarpando para S. Vicente, com o fim
de pedir refresco aos portugueses. A costa paulista era vista a 17. Enxergava-se em terra grande fumarada. No dia 18 a Gaivota chegava a
pouca distância da praia, em S. Vicente, onde havia muita gente.
Gritavam os portugueses que só descesse em terra um homem e que os escaleres não tentassem
ancorar. João Hendriksz, segundo piloto da Lua Grande, despiu-se, e rápido nadou para a terra Apareceu então uma porção de homens brancos
seguidos de numerosos índios armados de arco e flechas. Dentre os brancos sobressaiu um que perguntou ao piloto de que nação eram os seus, donde
vinham, para onde iam e que pretendiam ali. Que eram flamengos, respondeu-lhe o outro, que queriam comprar refrescos ou provisões para a guarnição,
e que iam para o Rio da Prata.
Desconfiado daqueles flamengos que não eram súditos de Portugal, respondeu-lhes o luso
interpelante, que no Brasil estavam todos proibidos de traficar com os de Holanda.
No dia seguinte, fundeou Spilbergen com quatro dos seus navios, na baía de Santos, deixando o
Caçador de sentinela na frente da praia de Parnapoan, onde tinham aparecido os portugueses e os índios.
De 20 a 22 levaram os flamengos a parlamentar com os portugueses, tendo o almirante mandado de
presente a Pero Cubas, capitão-mor interino de S. Vicente, dois queijos, duas garrafas de vinho velho espanhol, um pacote de facas e várias
quinquilharias para o povo.
Não foi possível, entretanto, nenhuma avença entre eles. Pelo que, a 23, o próprio Spilbergen
assumiu a iniciativa de uma ação enérgica. Investida de todos os lados, S. Vicente tinha de pagar bem caro a audácia das suas recusas.
Parte da esquadra avançou para a entrada da barra de Santos e parte para o porto de S. Vicente.
Ocuparam o grande engenho de S. Jorge, com as suas várias dependências e uma igreja, perto da nascente do rio S. Jorge, também chamado, por isso
mesmo, rio da Igreja. Era ela dedicada a N. Senhora das Neves, nome que João Cornelissen de Mays, cronista daquela viagem, grafou Seignora de
Nives, por conhecer o latim "nix, nivis", e no plural "nives, nivium", e ignorar completamente o português "neves". Desse
lugar aprazível, onde havia pomares e extensos canaviais, trouxeram os escaleres muita fruta para bordo.
A 24 entrou Spilbergen pelo canal, em direção à vila de Santos, e mandou que quatro chalupas
subissem o rio da Bertioga em busca de refresco.
No dia 29 voltaram as chalupas holandesas à praia de S. Vicente, dirigiram-se os soldados ao lugar
de um velho baluarte, colheram nos pomares mais de 8.000 laranjas, limões e abateram vários suínos.
Incendiaram ao mesmo tempo um engenho, um depósito de açúcar e a igreja de Santa Maria de Nague,
palavra esta que o cronista erradamente grafou, devendo ser N. S. dos Navegantes, por dizer-se em latim "navigans". Tudo isso tinha
pertencido a Jerónimo Leitão, conforme licença que obtivera da Câmara vicentina em 14 de agosto de 1580 para construir um engenho, um trapiche com
casa de purgar e uma capela ao lado fronteiro a Tumiaru, ou fronteiro à vila (Cfr. Gaspar, Memórias, n. 35).
E, afinal, o "velho baluarte", era o fortim mais tarde conhecido pelo nome de Fortalezinha,
a qual se acha mencionada na planta hidrográfica da barra e do porto de Santos, levantada pelo barão de Tefé, em 1876; no mapa da Comissão
Geográfica e Geológica do Estado de S. Paulo, edição preliminar de 1911; e nos trabalhos de Calixto. Ela ficava precisamente no sítio chamado mais
tarde Fortalezinha, ou Casa de Pedra.
Numa escritura pública de venda do sítio Parnapuan, passada em 12 de fevereiro de 1891,
entre Joaquim Manuel das Neves e outros e Antonio de Lima Machado e outro, pudemos verificar que aquele sítio dividia de um lado "com
a Prainha, em frente à boca da barra de S. Vicente, e Pasto Grande, e partia da Fortalezinha ou Simirinduba ao cume do morro etc.".
Esse nome tupi - Simirinduba - afigura-se-nos corruptela de Itamirindyba, que
significa lugar onde existem em abundância pedras pequenas. A denominação de sítio Casa de Pedra, vamos encontrá-la por sua vez no aviso régio de
1817, época em que tal imóvel pertencia a d. Josefa Ferreira Bueno, e media 100 braças de testada por 50 de fundos.
Estas coisas remotas, que nos levam o pensamento para os longes do passado, é pena que hoje só
existam em velhos e relegados papéis. Seriam preciosas relíquias documentárias, seriam, se ainda aí estivessem, as raízes vivas desta nacionalidade
que os nossos antepassados com tanto esforço, com tão entranhável carinho e tanto amor edificaram!
Mencionaremos ainda outro iconoclasta das nossas coisas antigas.
Na segunda metade do mesmo século XVII, havia em S. Vicente um homem de gênio arrebatado,
grosseirão e violento, que se chamava Manuel Vieira Calassa. Era capitão de infantaria.
Residiam também ali, na mesma época, o capitão Rafael Carvalho, lisbonense, e sua mulher d.
Catarina de Siqueira de Mendonça. Tinha este casal uma filha, filha única, de 16 anos, cuja beleza se expandia com a graça e o perfume de uma flor.
Achavam-na mesmo a figura feminina mais sedutora do vilarejo.
Vendo-a constantemente, enamorou-se dela aquele Manuel Vieira Calassa. E começou ele a sentir
então que o amor lhe serenava os estouvamentos impulsivos, aperfeiçoava-lhe a alma dura e brutal, comunicava-lhe lucidez aos pensamentos e doçura ao
coração. Sentindo-se por isso possuído da maior paixão que ainda palpitou e fremiu e ardeu em coração de homem, deliberou casar-se com ela.
Foi à casa de Rafael Carvalho. Acolhido com fidalga cortesia, pediu em casamento a encantadora
Margarida. Após um ligeiro intervalo de meditação, respondeu-lhe Rafael Carvalho:
- Pois sim, sr. capitão, vou consultar minha filha a esse respeito.
- Segundo nossas usanças, ponderou Calassa,
em tais casos compete aos pais dispor da vontade e da sorte dos filhos.
- Não, redargüiu o pai,
quero que minha filha encontre no casamento a realidade das suas aspirações. Eu preciso ouvir-lhe a voz do coração.
- Visto isso, tornou o pretendente, que
conhecia muito bem a firmeza das resoluções de Rafael Carvalho, aguardarei a resposta.
E saiu ruminando o seu resplandecente sonho.
Margarida, consultada, rejeitou desde logo o pedido.
- Conheço-lhe o gênio despótico, impulsivo e estouvado
- disse ela. Não porei o meu destino aos pés desse homem.
Sabedor da recusa, teve Calassa uma explosão de cólera. Já concitava capangas e valentões para um
ataque à residência de Rafael Carvalho, quando, informado disso, mandou este a mulher e a filha para a casa de Cipriano Tavares, seu cunhado e
capitão-mor governador da Capitania, e dispôs-se a pelejar com os acometedores. Essa desavença, porém, deu apenas muito que falar. Não desfechou em
luta.
Algum tempo tinha rodado sobre esse fato. Um dia, novo casamento aparecia para a linda vicentina.
Pedia-lhe a mão desta feita Domingos da Silva Monteiro, filho de outro Domingos da Silva Monteiro, sargento-mor da
fortaleza do Itapema.
Mas o tempo, grande desgastador de tenções, não havia cambiado ainda em desenganos as esperanças
de Calassa. Pretendeu este procurar no pó desinteressante do arquivo da Câmara Municipal, certos documentos relativos à família do pretendente.
Pedindo licença para isso ao capitão-mor, este não lha deu.
Ele, então, a coberto das trevas da noite, conseguiu entrar naquele arquivo. A sala estava às
escuras. Alumiou-a com um candeeiro de latão amarelo de dois bicos. Revolveu com mão audaz todos os livros e escritos que encontrou, deixando-os em
desordem.
De repente, a chama do candeeiro acendeu uma viva labareda num monte de papéis e um incêndio
abrasou todos os livros, todos os documentos, todos os móveis do primeiro, do mais precioso arquivo do Brasil. Por esse motivo, escreveu Afonso de
Taunay: "Atas seiscentistas da Câmara de S. Vicente, é coisa de que desde séculos não existem
vestígios". (Na era das bandeiras, 86).
Margarida Carvalho da Silva veio a casar-se com o aludido Domingos da Silva Monteiro, que pouco
depois partia com ela para a remota Cuiabá, como provedor dos reais quintos, e lá enfim faleceu.
O capitão Manuel Vieira Calassa, que alguns chegaram a dizer que havia enlouquecido, viveu ainda
longos anos bem rijo e são. Disso aliás nos certifica este fato curioso:
Em 26 de junho de 1701, servindo como padrinho de batismo de uma filha do capitão João Dias
Mendes, pôs-lhe o nome Margarida. Demonstrava assim que permanecia na sua alma a lembrança recolhida e intensa daquela que loucamente amara.
Ao lado desses inimigos das tradições da cidade, citemos agora alguns amigos, amigos mais chegados
aos nossos dias.
Inda no século XVII, e já no seu derradeiro quartel, chegava a S. Vicente um homem que depois veio
a ser tronco de numerosas e preclaras vergônteas. Referimo-nos ao sargento-mor José Gonçalves de Aguiar, natural de S. Martinho de Lordelo, no
bispado do Porto. Desposou-se com a vicentina Josefa Rodrigues de Lara e desse casamento surdiram sete filhos.
O sétimo, de nome Gaspar Gonçalves de Aguiar, nascido em 1727, casou por sua vez com Beatriz
Corrêa de Oliveira, de Conceição de Itanhaém. Figura ele na lista da Ordenança de S. Vicente, em 1765. Lavrador, punha no trabalho a força criadora
de todas as suas energias; e por isso, em 1798, aos 71 anos de idade, colhia 150 alqueires de arroz, 90 de farinha e 100 medidas de aguardente.
Possuía a seu serviço duas agregadas e 15 escravos. Ademais, tinha rede de arrastar, com a qual ganhava por ano 25$600. Tudo vendia para a vila de
Santos. E gastava anualmente em sua casa em vestuário 100$000.
Seis filhos teve ele, sendo que o quarto nasceu a 10 de setembro de 1765 e na pia batismal recebeu
o nome de José, em 21 do mesmo mês e ano. Chegou este a capitão-mor. É o capitão-mor José Gonçalves de Aguiar, ou simplesmente capitão-mor Aguiar, o
último capitão-mor de S. Vicente.
De seu matrimônio com Vitoriana Ferreira Ribas, natural da vila de Curitiba, filha de Manuel José
Ferreira e Antonia Maria Ribas, nasceram:
1) Gertrudes Gonçalves Ribas, em 1803, que foi casada com o sargento-mor João Pereira Sodré;
2) José Manuel Gonçalves Ribas, 1804, que casou com Rosa Maria da Assunção, filha de Manuel
Antonio Machado e Domingas da Conceição;
3) Manuel Gonçalves Ribas, 1806, falecido na infância;
4) Manuel Gonçalves Ribas (2º), 1810, também falecido criança;
5) Maria da Luz Gonçalves Ribas, 1812, casada com João de Azevedo Cunha; e, finalmente,
6) Carolina de Oliveira Ribas, 1817, casada com João Pereira Machado, filho do citado Manuel
Antonio Machado e sua mulher Domingas da Conceição.
Quisemos fazer esta referência a esses vários nomes porque a quase todos eles, como a raízes
profundas de uma tradição doméstica, estão ligadas importantes famílias vicentinas e santistas. Constituem o liame entre o tempo que foi e o tempo
de agora.
O sargento-mor Aguiar faleceu em 22 de dezembro de 1843, assaz entrado em anos, tendo transposto a
casa dos 78, e foi inumado na igreja Matriz, defronte do altar de N. S. da Assunção.
Habituado a medir-se com toda a sorte de trabalhos, foi grande lavrador; foi edil e juiz vereador
em 1806; fez o recenseamento de S. Vicente em 1813; foi procurador da Irmandade do Santíssimo Sacramento; foi presidente do senado da Câmara em
1822; e, em 1835, exerceu o cargo de juiz municipal, com grande opinião de competência e inteireza.
Como juiz vereador, assinalou-se em 1817 Sebastião Lopes de Azevedo. E distinguiram-se também pelo
merecimento seus dois filhos: Tomaz Antonio de Azevedo, como juiz de paz, em 1841, 1888; e João Marcelino de Azevedo, como presidente da Câmara de
1871 a 1873.
Não pode, por conseguinte, ser mais fagueira a fortuna da presidência atual da Câmara de S.
Vicente, quando a vemos ocupada por uma pessoa do porte de Edison Teles de Azevedo, digno descendente desses homens que foram valorosos romeiros do
progresso da cidade.
Não cabe nas proporções da nossa palestra desenvolvermos aqui os diferentes capítulos da história
desta terra.
Conteriam eles, sem dúvida, substanciosas notícias sobre temas como estes: o Colégio dos Meninos
de Jesus; o engenho dos Erasmos; o Pelourinho; o Senado da Câmara e os antigos camaristas; os capitães-mores; os
vigários antigos; a Fazenda de Santa Ana (onde nasceu frei Gaspar); a agricultura; o comércio; as estatísticas; a cadeia
antiga; o cemitério; as vias públicas e as suas denominações; a ponte pênsil; a instrução; a Empresa Carris de Ferro; S.
Vicente na Abolição e na República; a imprensa; o marquês de S. Vicente e a razão do seu título; e vicentinos olvidados como, pondo um exemplo, o
padre Manuel Gomes Loureiro, que era tão conhecedor da história de S. Vicente e de Santos que Machado de Oliveira, seu sobrinho, para escrever o
Quadro histórico da Província de S. Paulo, dele colheu preciosos subsídios.
Dois pontos, por isso, vão servir-nos de fecho e remate. São eles: o
recrutamento em S. Vicente, e o problema da água.
No período colonial, e até mesmo no Império, o recrutamento para as tropas foi o maior espantalho
do nosso povo. Quem estivesse em condições e servir ns fileiras, era logo agarrado e conduzido aos respectivos postos. Para o recrutamento não
existia critério algum. Dependia tudo das exigências do momento e sobretudo do arbítrio das autoridades.
Atibaia, por exemplo, tornou-se quase erma em 1797, quando ali apareceram alguns agentes
recrutadores. A população evadiu-se. Meteram-se os moços por entre a espessura das matas, donde cada um saía, pouco tempo depois, de cabeleira
intonsa, barba copiosa e dispersa e o bigode a chover-lhe sobre os lábios. São Vicente foi uma das grandes vítimas desse flagelo. Contra o excessivo
e constante recrutamento de jovens vicentinos a própria Câmara Municipal chegou certa vez a reclamar.
Por isso mesmo, Rodrigo César de Menezes, quatro dias após haver tomado posse do cargo de
governador da Capitania de São Paulo, já comunicava a d. João V que havia ordenado ao governador da praça de Santos que não continuasse a arrolar na
milícia os moços de São Vicente "pela grande vexação
(são palavras do governador) que experimentava aquele povo",
e para que a vila não se despovoasse.
Sem embargo disso, o recrutamento de quando em quando reaparecia. Caso interessante foi até o que
se deu no segundo império.
Era chefe de polícia o dr. Cardoso de Melo Filho. A Constantino de Mesquita, então primeiro
suplente do subdelegado de polícia de São Vicente, oficiava ele solicitando que auxiliasse com o seu destacamento policial o serviço de recrutamento
que ia ser realizado naquele município. A resposta da referida autoridade policial vicentina foi esta:
"Ilmo. Exmo. Sr.
"Constantino de Mesquita, primeiro suplente do subdelegado da Vila de S. Vicente, tendo, no
exercício desse cargo, prestado o relevantíssimo serviço de não fazer coisa nenhuma, vem comunicar a V. Excia. que se considera demitido da tal
suplência, e desiste da vara que, por ficção, constata o exercício do cargo.
"Não concordando com as ordens do governo para que haja recrutamento - com ou sem os abusos a que
se refere o último aviso do ministro da Justiça, o abaixo assinado cederia de seus intentos e começaria por caçar gente se lhe fosse permitido
recrutar as três pessoas mais competentes para preencher os claros do exército: 1º) V. Excia.; 2º) o sr. presidente da Província, e 3º) o duque de
Saxe".
Seguem-se na mesma linguagem de troça outros desrespeitos, e remata deste teor: "Deus
me guarde de V. Excia., do cônego Manuel Vicente, e das notas falsas. Santos, 16 de novembro de 1888. - Constantino de Mesquita".
Agora o problema da água.
O problema da água é mais do que secular nesta cidade; pois surgiu ele em 1822, quando a Câmara
tratou de adquirir metade do morro dos Barbosas. Pertencia este a diversos pardos forros, como Caetano Barbosa, Raimundo Barbosa, Domingos Barbosa,
José Mariano Barbosa, Maria Barbosa, Inácia Barbosa e Mariana Barbosa.
Intimados todos eles pelo senado da Câmara para exibir o seu título de domínio e assinar um termo
pelo qual se comprometessem a não fazer novas plantações, e nem derrubar pau algum nas redondezas da fonte ali existente, recusaram-se a apresentar
o referido documento e não quiseram assinar termo algum.
O juiz presidente e os vereadores estranharam esse tamanho "arrojo", com que se atreveram eles a
faltar às ordens do senado e, por isso, mandaram que os recolhessem à enxovia.
No mesmo instante, um deles principiou a dizer que padecia de um reumatismo teimoso, outro que
sofria de asma, outro que tinha uma lesão no coração; uma das mulatas, caipira esquiva como uma onça nova, pôs-se a chorar; e, em conclusão,
acabaram acrescentando que não tinham dúvida em assinar o termo que o senado da Câmara determinasse e daquela hora em diante jamais plantariam nem
cortariam árvore alguma na dita metade do morro.
O morro inteiro lhes tinha custado 12$800. Para que não fossem prejudicados, pagou-lhes a Câmara
pela metade dele 6$400. E assim conservou S. Vicente, sob um dossel verde de ramarias, a frescura das águas cantantes da fonte chamada outrora "dos
Jesuítas".
Um correspondente do Diário de Santos, proclamando em 25 de dezembro de 1872 a excelência
dessa água, escrevia: "Muito me tem descontentado o estado em que se acha o nosso chafariz.
Ali se encontra a melhor água conhecida, e não houve quem não ficasse surpreendido, ao prová-la. É de tal forma leve e cristalina, que merece a
atenção dos poderes públicos.
"Em vez de torneira, existe uma bica, fechada com um batoque de madeira, e o que mais me indigna é
ver que em razão da enorme procura, do meio dia em diante, vai-se manifestando bem sensível redução na água desse chafariz. Não se fez até hoje um
reservatório, e estou vendo o momento em que ficaremos de todo sem este recurso".
Em 1883 o Governo Provincial promulgou várias leis sobre a canalização de água potável na vila de
S. Vicente. Em 1887, foi encarregado de fazer estudos a esse respeito o engenheiro dr. José Luís Coelho.
A matéria, como se vê, poderá ministrar uma bela página à história da cidade; sem ficar no
esquecimento que a história se repete e... de tais Barbosas se fazem também figuras simbólicas. |