Constantino de Mesquita - crítico mordaz e tribuno de escol, independente e justo
Imagem: bico-de-pena do autor do livro, publicado com o texto
Em nossa faina de reconciliarmos a história de São
Vicente com vultos perdidos nas brumas do passado, desta feita vamo-nos referir a uma vida como muitas outras, cujo predicado residiu,
essencialmente, na simplicidade, na compreensão e, ao mesmo tempo, na fidelidade que manteve, através da existência, ao espírito de serena
independência para criticar e reprovar as ações e intentos inconfessáveis dos detentores do poder.
Para manter o direito à liberdade de expressão do pensamento, expunha-se ao risco de
comprometer o seu bem-estar, o seu futuro, mas, graças à tranqüilidade, ao saber e ao acentuado senso de humor como encarava a vida e procedida no
trato com seus semelhantes, não chegou a padecer, seriamente, as conseqüências de seu desassombro.
Batia-se pelo princípio de que o ser humano, uma vez privado da liberdade de
pensamento, não poderia ter senão uma aparência de fé, e nunca a verdadeira fé, fulcro das maiores virtudes e das inumeráveis belezas que o mundo
propicia ao homem.
O biografado de hoje, Constantino de Mesquita, vindo de origem modesta, chegou à
advocacia mercê de sua aplicação, sem percalços de maior; o estudo, a boa disposição de espírito, o apego ao trabalho e a delicada ironia que o
caracterizavam ajudaram-no a subir, tendo progredido na comarca de Santos, ali atingindo destacada posição, a de promotor público.
Ávido de saber, inteligente, acumulou esclarecimentos que lhe aperfeiçoaram o
espírito; fluente ao expressar-se, conseguiu reputação de bom orador. Sem ser retórico, usava em suas orações elegante roupagem de estilo e foi na
tribuna do Fórum que mais ampliou seu nome como dialético ágil e por vezes irretorquível.
Embora não sendo vicentino nato, Constantino de Mesquita conviveu estreitamente, por
longos anos, com o nosso povo, a quem foi útil e benfazejo, e cujos interesses postergados defendeu inumeráveis vezes, favorecendo gente humilde e
sem posses, nada cobrando de seus honorários.
A veia irônica, intrépida mas sadia, que lhe era inata, e a firmeza de caráter,
granjearam-lhe simpática notoriedade, e sua vida laboriosa era pontilhada pela feição humorística com que freqüentemente marcava suas atitudes e
mesmo certos atos públicos.
Fazia justiça ao talento alheio, mas era sinceramente modesto em relação ao seu.
Acusador de Justiça - Graças à sua versatilidade dialética, conciliava sem
custo sua posição contraditória de espírito voltado para um acendrado liberalismo, com a função de acusador de Justiça, cargo que aceitou, não sem
uma certa indecisão e reserva, levado pela necessidade, que as circunstâncias em geral impõem na esfera da magistratura, de percorrer, por partes, a
dificultosa carreira que o levaria à sua mais acalentada aspiração - a de juiz de Direito.
Debate importante - Em determinado julgamento de latrocínio, cinicamente
confessado e descrito, Alexandre Coelho, afamado causídico de sua época, apelando para todos os recursos de hábil e talentoso sofista que o
consagraram em seu meio, ao invocar circunstâncias atenuantes, com o propósito de amortecer a indefensável culpa do réu - quis atribuir o
premeditado e traiçoeiro assassínio, com requintes de sadismo e perversão, de abonada senhora, a "uma espécie de
alucinação, à atração irresistível que o abismo exerce sobre o indivíduo nervoso que padece de vertigens".
Era a arte sofística, na sua mais ampla aplicação. Alexandre Coelho, rematando,
dizia-se plenamente convencido da sua verdade, daí o ardor como a apregoava e esposava...
Constantino de Mesquita não perdeu um só instante na réplica, que explodiu irrefutável
e convincente: "Não é bastante que o nobre defensor esteja disso persuadido: é necessário que o Meritíssimo Juiz e o
respeitável Corpo de Jurados também o estejam. A prevalecer tão insólito critério, não mais imperioso se torna que a Justiça condene e segregue os
ladrões assassinos. Bastará alegar-se, em seu beneplácito, que foi da faca, que cortou a vida à infeliz senhora, que partiu a idéia, e a mão
limitou-se, inocentemente, a segui-la. Que um fratricida, a quem satânica inveja e ambição cegaram, e que cedeu à mesma fúria que desgraçou Caim, se
queixe de ter sido vítima inconsciente de uma vertigem. Basta que o salteador de estradas, que abate na tocaia, a horas mortas, o viajante
desprevenido, se escuse, afirmando que estava em estado de alucinação ao disparar-se-lhe, inopinadamente, o trabuco, e também se poderia invocar que
Deus Nosso Senhor, ainda na Sua incomensurável omnisciência, os induziu a praticar o mal, para depois purificá-los através do arrependimento,
irremediável embora. A intenção, a vontade própria, desse modo, estariam sempre ausentes, e o inesgotável caudal de álibis surgiria, providencial,
como circunstância atenuante, redentora".
Assim era, da tribuna do Júri, na defesa da sociedade, Constantino de Mesquita, em
soberbos espetáculos de oratória, em improvisos rápidos mas fulgurantes.
Dados biográficos - Constantino de Mesquita nasceu em Santos, no ano de 1845;
era filho de Luiz Mesquita e de d. Maria do Carmo Mesquita, pertencentes a tradicional família portuguesa, e que residiram à Rua do Porto (hoje Rua
Marquês de São Vicente), nesta cidade. Casou-se com d. Evangelina Oliveira Mesquita. Desse matrimônio advieram 6 filhos, 3 em São Vicente e 3 em
Santos. Seus descendentes: 24 netos, 41 bisnetos e 7 trinetos. Tinha um único irmão: Viriato Cava de Mesquita Bastos (Cadete Cava).
O nosso biografado faleceu aos 63 anos, a 11-10-1908, às 16 horas, à Rua Visconde
Tamandaré, 5, São Vicente (residência de sua mãe "Dona Mariquinha"). O único filho vivo, Custódio de Melo Mesquita (Tico), com 70 anos,
casado com a professora vicentina d. Edméa Lima Mesquita, residentes em Paranaguá; d. Branca Mesquita Fialho, falecida em Santos, foi casada com o
sr. José Garcia Fialho Filho; era a filha mais velha, ambos falecidos; d. Benedita Aracaci de Mesquita Duarte, casada com o sr. Dídimo Pimentel
Duarte, residentes em Niterói; d. Beatriz Mesquita Silveira, falecida, que foi casada com Benedito Silveira (Duduca); Viriato Mesquita, que foi
casado com d. Ana Rita Mesquita, ambos falecidos; prof. Luiz Mesquita, faleceu solteiro.
D. Mariquinha Mesquita, mãe do nosso biografado, exerceu a presidência do Apostolado
da Oração, no ano de 1916, tendo falecido com 93 anos, em Santos, à Rua Amador Bueno, 93, e sepultada no cemitério de São Vicente.
Termo de compromisso - O termo de compromisso como promotor público foi
assinado no dia 7 de janeiro de 1898, na sala de audiências, perante o M. Juiz de Direito da 1ª Vara, dr. Primitivo Rodrigues de Castro Sette.
Revolta da Armada: 1893 - Por ocasião da famosa revolta da Armada, encabeçada
pelo almirante Custódio José de Melo, Constantino de Mesquita, a ela aderindo, embarcou no cruzador República, rumo ao Rio Grande do Sul,
onde foi juntar-se aos adversários de Floriano Peixoto.
"Escola do Povo": doação de medalha - Constantino de Mesquita fazia parte da
comissão de prestantes cidadãos que mantinham a "Escola do Povo", hoje Grupo Escolar de São Vicente, à Praça Cel. Lopes, iniciativa das mais
louváveis da gente daquela época, e até hoje digna de admiração.
Com o meritório intuito de incentivar o estudo e ao mesmo tempo rendendo homenagem ao
corpo discente da Escola, que o prof. José Gonçalves Paim competentemente dirigia, Constantino de Mesquita instituiu vistosa medalha de prata, de
cuidadoso lavor, destinada a galardoar o aluno que, entre todos, mais se destacasse ao término do curso letivo.
Numa das ocasiões, foi o prêmio conferido ao aluno José Joaquim de Azevedo Júnior, que
através do tempo se tornou o nosso respeitado amigo e prestimoso cidadão Juca Azevedo, que há 70 anos ostenta, com justificado orgulho, a valiosa
distinção.
"O homem da sorte" - Acontecimento quase sem precedentes deu-lhe a denominação
de "o homem da sorte". No período de apenas um mês, sua estrela propícia o deslumbrou com "duas sortes grandes", valiosíssimas para a afastada
época, no fim do século passado (N.E.: século XIX), em que viveu Constantino de Mesquita.
A primeira, de 50 contos de réis, e a segunda, de 20; isto num só mês.
Evidentemente, bem lhe cabia aquele epíteto. Lembrado, então, por instituições de
caridade e assediado por uns e outros, aquela fortuna rapidamente se diluiu em doações e também em empréstimos, que a generosidade de seu espírito
liberal se constrangia em procurar reaver.
Rasgo de humor e originalidade - Entregamos à apreciação dos leitores o ofício,
modelo de originalidade, que Constantino de Mesquita, quando exercia o cargo de suplente de subdelegado de polícia de São Vicente, endereçou ao dr.
Cardoso de Melo Filho, chefe de polícia da província, em 18 de novembro de 1888.
Documento curioso por mais de um prisma, esse ofício torna evidente o seu pouco
entusiasmo pelo governo, pelo recrutamento e pelas notas falsas. Lê-lo e admirá-lo é obrigação das pessoas entristecidas; guardá-lo é dever dos
raros colecionadores que temos.
Ei-lo:
"Constantino de Mesquita, primeiro suplente de
subdelegado da Vila de São Vicente, tendo, no exercício desse cargo, prestado o relevantíssimo serviço de não fazer coisa nenhuma, vem comunicar a
v. Exa. que se considera demitido de tal suplência, e desiste da Vara que, por ficção, constata o exercício do cargo. Não concordando com as ordens
do governo para que haja recrutamento - com ou sem abusos a que se refere o último aviso do Ministro da Justiça - o abaixo assinado cederia de seus
intuitos e começaria a caçar gente se lhe fosse permitido recrutar as três pessoas mais competentes para preencher os claros do Exército: v. exa., o
sr. Presidente da Província e o duque de Saxe. Pretendendo consagrar ao vício do fumo os momentos de ócio que tem, o abaixo assinado aceita,
conjuntamente com a demissão que comunica a v. exa. e em compensação aos seus serviços, aliás valiosos - uma caixa de fósforos (falsificados). Deus
me guarde de v. exa., do cônego Manuel Vicente e das notas falsas".
Esse ofício foi publicado no Diário de Santos, ano XVII, n.
240, terça-feira, 20 de novembro de 1888.
26-3-1967.
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