Pedras onde estariam as pegadas em São Vicente
foram demolidas e usadas na obra da Igreja Matriz
Foto publicada com a matéria
HISTÓRIAS E LENDAS
Caminho do Peabiru vinha até a praia
Estrada indígena era importante rota usada pelos viajantes do passado
Nos tempos em que o Brasil se chamava Pindorama e os
índios conheciam São Vicente como Guayaó, terminava na praia do Tararé (hoje Itararé), um dos mais importantes roteiros de viajantes do passado: o
misterioso caminho do Peabiru. Essa "estrada indígena", segundo as lendas, era tema recorrente nos sonhos e mapas de piratas e também de navegadores
lusitanos e espanhóis. Ligava o litoral brasileiro ao coração do império Inca. Era a rota do também famoso "Caminho do Eldorado".
A partir de São Vicente, subia a serra pelo Caminho dos Índios, varando o sertão de
São Paulo, entrando pelo território do Paraná, até atingir o que seria mais tarde conhecido por Assunção (no Paraguai), às margens do Rio da Prata.
Ali se juntava a outra estrada que subia os Andes, até atingir Cuzco e Quito, as duas grandes cidades incas que ficavam na região que mais tarde se
convencionou chamar de Peru.
Coincidência ou não, a partir da fundação de São Vicente, todo o comércio entre
portugueses e espanhóis se fazia por essa rota revelada pelos índios. As cargas vinham do interior através do Peabiru, até o porto de São Vicente.
Cobiça - O historiador Antônio Penteado Mendonça assinala que esse movimento no
porto de São Vicente era tão intenso que "Martim Afonso de Souza, ao chegar com sua expedição colonizadora, não hesitou
em elevar a currutela informal, criada ao longo das três primeiras décadas do século 16, à condição de primeira vila oficial do Brasil".
Fundou a vila porque ali se registrava o movimento comercial mais importante da época.
Acompanhado de João Ramalho, que já conhecia o planalto do outro lado da serra de
Paranapiacaba, Martim Afonso subiu os quase mil metros de pirambeira que protegiam os mistérios do sertão da cobiça portuguesa, com duas finalidades
claras. A primeira era verificar pessoalmente as reais condições do lugar, e a segunda, fundar um posto avançado, que controlasse os movimentos dos
espanhóis ao longo do Peabiru: a Vila de Piratininga, depois conhecida como São Paulo, a partir de 25 de janeiro de 1554.
|
Menores com idades entre 7 e 17 anos participam do projeto
|
|
Autoria do traçado é atribuída a Pai Sumé
O Caminho do Peabiru, conforme os relatos dos indígenas que foram coletados por padres
jesuítas, havia sido traçado muito tempo atrás pelo Pai Sumé. Todos os povos primitivos têm solene respeito por certos personagens que se impuseram
à sua crença como entes privilegiados por um poder sobrenatural. O Pai Sumé, segundo os índios tupis, era uma espécie de deus semelhante ao Deus
cristão citado pelos colonizadores lusitanos. Os portugueses se espantaram quando descobriram que os índios aceitavam a idéia de uma divindade
semelhante a Jesus. O Sumé era branco e teria vindo do oriente, ensinando-lhes as técnicas de agricultura, o plantio dos vegetais necessários para a
alimentação de seus descendentes, o milho e a mandioca.
Ao ouvir as histórias, os padres Manuel da Nóbrega e Simão de Vasconcelos, jesuítas
que viviam em São Vicente, viram em Sumé a figura de São Tomé, apóstolo de Cristo. Esse deus, que os indígenas denominavam também de "Zomé", teria
sido, em épocas remotas, um guia esclarecido.
Prometeu voltar - Há outras versões, colhidas na Bahia, que identificaram Sumé
com o apóstolo Tomé. Um frade baiano ouviu a lenda de que Sumé teria percorrido essa região ensinando aos índios o cultivo da mandioca e suas
múltiplas utilidades. Sumé também exerceu o papel de legislador, proibindo algumas tribos de poligamia e antropofagia. Em uma lenda, conta-se que
alguns índios, enraivecidos pela limitação de sua sexualidade, atearam fogo à casa de Sumé. Outros falam que foi alvo de flechadas ou ainda que o
amarraram a uma pesada pedra e o jogaram no rio. E há quem diga que foi submetido a uma prova de resistência e teve que caminhar sobre o fogo,
queimando os pés.
Os índios tupis acreditavam que Sumé partiu andando sobre as águas do Oceano Atlântico
e que prometeu voltar um dia para continuar sua obra.
Uma outra versão conta que Sumé, ao ser perseguido pelos tupinambás, foi para o
Paraguai e dali para o Peru. Para essa travessia, teria aberto uma estrada que ficou conhecida como Peabiru ou Caminho das Montanhas do Sol.
Sumé teria deixado as marcas dos pés gravadas nas rochas
Pesquisas feitas por arqueólogos brasileiros vêm permitindo a reconstituição de
trechos do Caminho do Peabiru, demonstrando que realmente existiu um intercâmbio entre os indígenas do Brasil e os do Peru.
O historiador vicentino frei Gaspar da Madre de Deus registra, em sua obra Notícia
dos anos em que se descobriu o Brasil e das entradas das religiões e suas fundações (manuscrito de 1784), a existência de vestígios de pés
humanos, gravados em pedras, que seriam as pegadas de Sumé.
Essas marcas nas pedras foram mostradas pelos índios aos primeiros portugueses que
chegaram ao Brasil, como prova da passagem do deus.
Itararé - Em São Vicente, as pegadas teriam existido na Pedra dos Ladrões (e
nos restos da Pedra da Feiticeira), ambas na Praia do Itararé (antigo Tararé) e, também, no trecho hoje santista de uma antiga fonte no Embaré.
Gaspar não se convenceu, entretanto, que esses vestígios humanos "que
se mostram impressos em lousas" (N.R.: formações rochosas) fossem de São Tomé. "Eu os
julgo tão naturais como as pegadas de galinhas, cães e outros animais domésticos que vemos estampadas em ladrilhos, se bem examinarem as célebres
pegadas de S. Tomé, tão decantadas no Brasil e outras partes da América, há de conhecer que todas se vêm gravadas em certa casta de pedras, a que
alguns filósofos chamam vegetativas".
Frei considera a história fantasiosa
Para frei Gaspar da Madre de Deus, as marcas dos pés de Sumé teriam ficado impressas
há séculos, quando as rochas estavam em formação e foram pisadas por índios. No século XVIII, quando ele fez essas anotações, já não se viam tantas
marcas.
"Na praia do Embaré,
entre as vilas de Santos e São Vicente, está a fonte de São Tomé, assim chamada por causa de alguma pegada que, dizem, se vê em uma pedra, ainda
hoje existente perto da mesma fonte" (N.E.: antigamente, o nome Embaré era dado a toda a
extensão da praia até a divisa com São Vicente).
Já as pegadas vistas em São Vicente "estavam junto à
fonte da praia (há suspeitas de que existiriam também na famosa Biquinha de Anchieta, embora Gaspar não faça
referências ao fato), em uma pedra vizinha a outra, e pelo meio de ambas passava, em outro tempo, qualquer homem muito
à vontade".
Essa passagem tornou-se depois tão apertada que não dava trânsito a pessoa alguma.
Voando - Frei Gaspar tentou descobrir as pedras mas soube que a passagem foi
demolida e as lascas aproveitadas para as obras da Matriz de São Vicente.
O historiador, que era um frade dominicano e tem nome respeitado, recusava-se a aceitar a
lenda da passagem de São Tomé pelo Brasil. Irônico, achava que para chegar ao continente o santo teria sido obrigado a "voar" sobre o oceano, desde
a Palestina.
Mas, segundo a pesquisadora Rosane Volpatto, nas costas da Bahia, gente simples do
povo ainda se diverte a percorrer as escarpas marinhas, onde se supõe terem ficado os indícios da fuga de Sumé. Inscrições no mesmo estilo são
encontradas na Bolívia e Peru, atestando a presença do herói mítico, que talvez partiu do Brasil em direção aos Andes.
Registros históricos confirmam a lenda
A lenda esteve presente em documentos históricos durante muitos anos. Conforme
levantamento de Carlos Pimentel Mendes (www.novomilenio.inf.br), o mapa-mundi de Waldseemüller (de
1507), registrava o topônimo "Serra S. Tomé", no alto, e a citação de S. Vicente na parte inferior do mapa, logo acima do Rio Cananéia.
Quando mais tarde o Brasil foi dividido em 15 capitanias hereditárias, uma delas foi a
de Paraíba do Sul, dada em 28/8/1536 a Pero Góis da Silveira, sendo também conhecida como Capitania de São Tomé.
Em 1516 já se falava na estada de S. Tomé na costa do Brasil. Na publicação Nova
Gazeta Alemã, referente à viagem de um dos navios armados por Dom Nuno Manuel, Cristóvão de Haro e outros (que, a 12 de outubro de 1514,
aportava, já de retorno de viagem à Ilha da Madeira), o autor da publicação recolheu a bordo a notícia de que na costa brasileira os indígenas
tinham recordação de São Tomé.
Os índios quiseram, inclusive, "mostrar aos portugueses
as pegadas de São Tomé no interior do país. Indicam também que têm cruzes pela terra adentro. E quando falam de São Tomé, chamam-lhe o Deus pequeno,
mas que havia outro Deus maior (...). No país chamam freqüentemente a seus filhos Tomé".
Bem crível - Acreditava-se então, assinala Pimentel, que as terras americanas
tivessem ligação direta com a Ásia. E na própria Gazeta lê-se que o piloto da nau portadora daquelas notícias - presumivelmente o célebre
João de Lisboa, já acostumado à navegação para a Índia - não acreditava achar-se o cabo e a terra do Brasil a mais de seiscentas milhas de Málaca,
acreditando que a terra do Brasil continua, dobrando, até aquela localidade. Assim, seria "bem crível" que os indígenas tenham lembrança de São
Tomé, pois o santo teria vivido na Índia, onde é cultuado no santuário de Meliapor.
Reforçando a idéia, há existência das pegadas do santo impressas nas rochas em pelo
menos cinco lugares da costa brasileira, como citado por Simão de Vasconcelos: para o Norte de São Vicente; em Itapoã, fora da barra da Baía de
Todos os Santos; na praia do Toque-Toque, dentro da mesma barra; em Itajuru, perto de Cabo Frio; e na altura da cidade de Paraíba, a sete graus da
parte do Sul, para o sertão. |