Procedendo ao esboço histórico das fortificações santistas, pós-afonsinas, desde a
primeira, de Bertioga, até a última, do Monduba ou dos Andradas, justo é que relembremos, como em homenagem à
efêmera colonização irregular, pré-afonsina, de S. Vicente, o primeiro forte construído (na região do Goiao ou Goiaó ou ainda de S. Vicente), por
iniciativa do Bacharel Mestre Cosme Fernandes e seu genro Gonçalo da Costa, que protegeu, durante alguns anos, a povoação de São Vicente, origem da
cidade atual, como marco e broquel da nossa primeira civilização.
Pela descrição de Alonso de Santa Cruz, primeiro oficial de Sebastião Caboto, que abrange um período de quatro anos - 1526 a 1530 - o primeiro ano
marcando a passagem pelo porto de S. Vicente dos navios daquele notável comandante veneziano (vêneto), a rumo do "rio da prata", e o segundo
marcando a volta dos mesmos navios daquela região, vimos que esse forte, Casa da Torre, ou "Casa de Pedra" com uma torre para defesa contra os
índios em caso de necessidade, existiu junto ao primitivo povoado, próximo ao atual morro dos Barbosas, numa saliência fronteira a esse morro, do
outro lado do "rio do Sapateiro", e devia ser suficiente para os fins a que se destinava, porque não cogitou Martim Afonso de Souza, à sua chegada
em 1532, de criar outro forte que lhe fosse superior, ou que denotasse a sua incapacidade; pelo contrário, fez uso dele, como base de sua
permanência de pouco mais de um ano, em São Vicente, ali morando e ali assinando a primeira sesmaria concedida a fidalgos que trazia.
Isso se deduz da revelação constante da Carta de Sesmaria por ele passada em favor de
Pero de Góis, no mesmo ano de sua chegada, a 10 de outubro de 1532, onde se lê, no Auto de Posse respectivo, lavrado por Pero Capico, escrivão de
Armada Colonizadora, a 15 do mesmo mês, na Vila de S. Vicente, a seguinte declaração:
"Saibam quantos este público instrumento de posse virem, em como, no ano do nascimento
de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e trinta e dois anos, aos quinze dias do mês de outubro, e em a Ilha
de São Vicente, dentro da Fortaleza, por Pero de Góis, fidalgo da casa de El-Rei nosso Senhor, etc."
declaração esta que confirma a existência do primeiro forte vicentino, que
é o mesmo descrito por Alonso de Santa Cruz, em seu famoso Yslário [1]:
"Na ilha ocidental têm os portugueses um povoado chamado São Vicente, de dez ou doze
casas, uma feita de pedra com seus telhados e uma torre para defesa contra os índios em tempo de necessidade".
Propositadamente silenciaram tantos historiadores e cronistas, sobre essa passagem do
Auto de Posse de 15 de outubro de 1532, para não reconhecerem a anterior existência e fundação de São Vicente, realizada pelo tão discutido
"bacharel" que acima citamos, com sua fortaleza, com seu arsenal e seu estaleiro, suas dez ou doze casas européias, afora os ranchos indígenas, em
grande número, que Santa Cruz decerto desdenhou citar, e, o que é mais, com seu capitão, governador, regularmente nomeado pelo Rei.
Esse estranho modo de fazer História não conseguiu, entretanto, apagar a
verdade dos documentos, e, assim, pôde ela agora surgir livre de nuvens e outros estorvos, apontando o forte do "Bacharel" como um monumento da
primeira época vicentina e como primeira fortificação que existiu em terras do atual Estado de São Paulo e talvez do Brasil, a uma distância de mais
de quatrocentos e cinqüenta anos [2].
NOTAS:
[1] Os autores em geral, e
os próprios encarregados dos registros militares, esqueceram a existência desta primeira fortificação brasileira, acusada desde 1526, mas que vinha
de muito atrás; assim como esqueceram, aqueles autores, os sociólogos e economistas, da primeira indústria aparecida no Brasil, que não foi a do
açúcar, mas a indústria naval, representada pelos estaleiros da primeira São Vicente, que, também em 1526/1527 (documentadamente) e decerto muito
antes, já fabricavam e vendiam bergantins e outras embarcações, para a navegação da costa.
[2] Essa Casa de Pedra e
Torre, para defesa contra os índios, ficava na atual Rua Martim Afonso (em S. Vicente), bem em frente à ruazinha Dona Ana Pimentel, e no lugar de um
sobrado ocupado pela Foto Astral. Atrás, na caída do terreno que dá para a atual Rua Anchieta, ficava a Torre.
Numa planta (levantamento) realizada em 1878 por Jules Martim, muito bem desenhada,
vê-se, em seu último aspecto primitivo, a Casa de Pedra chamada "de Martim Afonso", assinalada como: "Fortificação antiquíssima".
Ali assinou o primeiro Donatário aquela escritura de 15 de outubro de 1532, em favor
de Pero de Góis.
Há muitos anos, antes da construção do prédio atual, havia umas pinturas vivas por
toda a sua fachada, assinalando que ali fora a "Casa de Martim Afonso". Hoje, quase ninguém sabe disso e pouquíssimos se importam com o fato
tradicional e relevante, na "Cellula Mater" da nacionalidade... |