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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O sabor especial do queijo santista...

Descoberta dos fiscais deu origem a muitas piadas... em 1948

Mesmo tendo melhorado consideravelmente as suas condições sanitárias, após a série de epidemias registrada no final do século XIX e início do século XX, Santos continuava tendo problemas graves nessa área depois da Segunda Guerra Mundial, como demonstra Raul Ribeiro Flórido neste artigo, publicado no jornal santista A Tribuna em 4 de maio de 1995:

Os comandos sanitários de 1948

Raul Ribeiro Flórido (*)
Colaborador

Em princípios de 1948, o Centro de Saúde de Santos, subordinado à Divisão do Serviço do Interior, do Departamento de Saúde, possuía pessoas em número bem deficiente para poder cumprir sua finalidade de zelar pela defesa e manutenção da saúde da comunidade.

Cumpria-lhe a prevenção das moléstias transmissíveis, a guerra sem tréguas contra endemias, parasitoses, verminoses, malária etc.

Febre amarela, peste bubônica não existiam mais, graças à competência e dedicação de Saturnino de Brito e de Emílio Ribas, além de médicos santistas cuja memória jamais deveria ser relegada ao esquecimento.

A tuberculose, no entanto, permanecia em ascensão no obituário, ano após ano.

As medidas de saneamento - abastecimento de água, rede de esgoto e remoção de lixo - eram satisfatórias naquela época.

A população de cerca de 215.000 ultrapassara o ideal para a atuação de um centro de Saúde com boa organização, bem equipado e munido do pessoal necessário.

Santos em 1948 não possuía favelas; seus morros, bem habitados, só eram superados em população por 39 cidades do interior do Estado. O morro de São Bento, o mais populoso, superava em número de habitantes 166 sedes de municípios paulistas.

Muito interessado em estudar os aspectos médico-sociais dos morros, tive oportunidade de visitar lares asseados, em casas modestas mas limpas, muitas sem foro, com cobertura de telhas e divisões de madeira.

No morro de São Bento residiam, naquela época, 638 famílias. Chalés, chalés de madeira, no total de 327 predominavam sobre 37 domicílios de alvenaria.

Nas quelhas, nas vielas, nos caminhos, nas congostas, o casario se destacava pela cobertura de telhas, distinguindo-se apenas, aqui e ali, o zinco que cobria 33 das casas daquele morro.

Os alpendres e os telheiros ocorriam nos prédios de um só pavimento. Nas edificações de dois pavimentos, no total de 107, existiam varandas e balcões.

Nos estudos que realizei, tornados públicos, pela imprensa santista, verifiquei que, naquele tempo, não existiam barracos, nem choças, cafuas ou casebres. Não havia favelados nos morros de Santos. A paga ao trabalhador era satisfatória, embora já existisse a deficiência da produção inferior, porque mal remunerada.

Quitandas, bares, mercearias, sorveterias, açougue, barbearias, moendas de cana e alambiques constituíam a fonte local de aquisição de mercadorias. Ao todo, 17 estabelecimentos comerciais e 4 pequenas indústrias.

 

"A tuberculose, no entanto, permanecia em ascensão no obituário"

 

Naquela época, Santos, com suas praias belíssimas, seus hotéis, suas pensões e suas facilidades comerciais, atraía como hoje, nos fins de semana, dezenas de milhares de habitantes de outros municípios.

Para um médico sanitarista, era indisfarçável a preocupação com essa movimentação de massa humana que buscava alegre ócio em local aprazível, mas onde existiam numerosos focos de infecção tuberculosa, sem controle.

Ao Dispensário de Tuberculose de Santos cabia a pesquisa, a identificação de doentes, a verificação dos contagiados, o exame dos contatos, o tratamento dos doentes e o encaminhamento ao nosocômio daqueles que exigiam tratamento hospitalar.

Três devotados médicos serviam no dispensário: dr. Alderico Monteiro Soares, o chefe; dr. Oriam Nogueira e dr. Edson Ruivo de Souza. Todos notáveis especialistas a trabalharem em local acanhado, junto ao Centro de Saúde, com insuficiente aparelhagem e poucos funcionários. Eram necessários mais difusores dos ensinamentos imprescindíveis à prevenção da enfermidade.

O obituário geral da cidade indicava altos índices de mortes por moléstias do aparelho respiratório, por tuberculose e por causas mal definidas.

Em 1948, os falecimentos pelo mal de Koch, com declaração específica da causa, aproximavam-se a 300 por 200.000 habitantes. Quantos seriam os casos letais entre os mal definidos?

Com grande interesse em combater o insidioso mal, o Centro de Saúde procurou dirigir seu ataque contra uma das concausas da aquisição da doença, a deficiência alimentar, a medíocre vigilância exercida para evitar as possibilidades de contágio nos locais públicos destinados à produção e ao comércio de leite, bebidas, pão, carne, hortaliças e outros produtos alimentícios.

Embora classificado em 1ª classe, o Martins Fontes não podia exercer ação eficaz, pois a rotina da vigilância, entregue a guardas e médicos por setores em que a cidade fora dividida, impedia sua prática eficiente.

Como dez seres humanos poderiam fiscalizar cidade tão extensa com morros bem povoados?

No Rio de Janeiro, o professor da Faculdade de Medicina e diretor de Saúde Pública, Capriglione, efetuara um tipo de fiscalização mais rápida e eficiente. Os cariocas aprovaram e denominaram de Comandos por atuarem os fiscais a qualquer momento e até fora das horas de serviço regulamentar.

No estudo desse tipo de ação cautelar e fiscalizadora, verifiquei que seus excelentes resultados eram condicionados à publicidade. Naquele tempo, a difusão de notícias, os comunicados, os ensinamentos, as determinações legais eram transmitidas pelo rádio e pela imprensa. A TV ainda praticava os primeiros passos. Em Santos não existia a ótima comunicação televisiva dos nossos dias.

 

"Como dez seres humanos poderiam fiscalizar cidade tão extensa,
com morros bem povoados?"

 

O planejamento, e o futuro modo de agir dos Comandos Santistas, foi apresentado aos médicos em exercício no Martins Fontes.

A aprovação foi geral. No entanto, reconheceram que resultava em risco de arrostar com o sentimento e a ira dos que seriam flagrados pelas infrações cometidas. Também era indisfarçável a antipatia que iria despertar em colegas de outros serviços do Departamento de Saúde. Ao corrigir e punir transgressões ao velho Código Sanitário que haviam escapado à fiscalização rotineira, os comandos, por sua ação sumária e enérgica, acompanhada de vasta publicidade, iriam causar mágoas e melindres.

Diante dessas ponderações, resolvi assumir sozinho a responsabilidade pela atuação dos Comandos.

O grupo era constituído de um representante da Polícia Civil. O delegado regional designou o guarda Mussi, muito conhecido pela alcunha de Bigode. De físico forte, era estimado por sua índole calma e pela maneira afável, delicada, de resolver problemas sérios. Ernani Franco, a quem Santos deve notáveis serviços à frente da Rádio Atlântica, indicou o locutor Ibraim do Carmo Mauá, de voz sonora e dicção perfeita, possuidor de numerosos apreciadores. Giusfredo Santini, o nobre diretor de A Tribuna, creditou o fotógrafo José Dias Herrera. Pedro Peressin, o Barbado e Justo Peres, também fotógrafos, e o repórter Nunes foram os designados pelo jornal O Diário.

No Centro de Saúde selecionei os guardas: Amálio Luiz Mauri, pela afabilidade no trato com o público; José Humberto Miguel de Rosato, por seu conhecimento profundo do código e pela facilidade em encontrar as infrações; Antonio Martins, por ter realizado estágio no Laboratório Regional do Instituto Adolfo Lutz, especializando-se em exames de leite e derivados; Armando Duarte do Pateo, por sua experiência em visitas a estabelecimentos comerciais; Manouri Isidro de Oliveira por sua perícia em lavratura de autos, intimações, multas etc. Wenceslau Costa, por já desempenhar fiscalização da alimentação.

Com essa equipe foram realizadas as ações de investigar e punir.

Foi total a aprovação popular. Quando algumas confeitarias e padarias eram examinadas, dias depois, todas as congêneres da cidade se tornavam modelos e higiene e limpeza.

Grande repercussão tiveram os exames de leite e dos derivados laticínios. Pobres crianças de 1948!


O leite que Santos consumia

Em 1948, Santos recebia leite de dois estábulos existentes na Cidade e de algumas centenas de latões de ferro estanhado, provenientes do Interior, que chegaram à Cidade às 4 horas da madrugada pelo chamado trem leiteiro.

Os Comandos iniciaram a fiscalização do leite pelos latões para o engarrafamento e posterior distribuição ao povo.

O Laboratório Regional do Instituto Adolfo Lutz era a instituição melhor aparelhada para os exames químicos e biológicos, além de possuir técnicos altamente especializados e capacitados.

A ação fiscalizadora iria aumentar muito o número de pesquisas e, portanto, acrescer à faina já intensa executada pelo órgão dirigido pelo grande ser humano, Leão de Moura.

Grande admirador de Leão de Moura, autor do melhor trabalho e estudo até então escrito sobre a tuberculose em Santos, fui muito bem recebido, quando o procurei para solicitar a colaboração que submeteria o seu Adolfo Lutz a um grande acúmulo de trabalho.

O chefe da estação da estrada de ferro, consultado para permitir a ação dos Comandos à chegada do trem leiteiro, aplaudiu a fiscalização a ser realizada. Relatou que havia na gare um posto para exame de leite dotado de centrifugador, lactodensímetros e outros aparelhos. Havia mais de dois anos esse posto não funcionava, os funcionários não compareceriam.

Logo na primeira madrugada em que os latões foram examinados e recolhidas amostras de acordo com as recomendações do Adolfo Lutz, a cor e o cheiro de um deles determinaram a sua apreensão. O destinatário protestou e alegava que não havia permissão legal para tal fato.

Várias foram as madrugadas destinadas à coleta do leite vindo por ferrovia. Os resultados obtidos pelo Adolfo Lutz e em sua maioria revelavam leite bom para o consumo. Em alguns casos, encontrou-se contaminação por bacilos coliformes fecais, presença de bacilos de tuberculose bovina e resíduos de agrotóxicos. A pesquisa realizada no latão apreendido no primeiro dia revelou que a alteração do aroma e da cor era causada pela presença de sangue e pus, oriundos da ordenha de vaca com mamite.

Os relatos de Ibraim Mauá, pela Rádio Atlântica, as fotografias e narrações da imprensa, causaram grande feito na opinião pública.

 

"Em Santos não existia a ótima comunicação televisiva dos nossos dias"

 

Nas investidas realizadas na estação ferroviária à chegada dos latões de leite, os nomes e os endereços dos engarrafadores eram cuidadosamente anotados.

Na manhã escolhida para a ação junto aos engarrafadores, Antônio Martins muniu-se do lactodensímetro e de outros apetrechos para exame rápido.

O leite, naquele tempo, era distribuído em litros de vidro de boca larga, fechados com uma rodela de cartão parafinizado. Nas brancas carrocinhas de tração animal, caixas de madeira, com pequenos compartimentos, acomodavam os litros levados às casas dos consumidores.

Às 4 horas da madrugada, os Comandos chegaram a um casarão, com vasto terreno. Quando ingressaram, foram surpreendidos com o que viram. Dezenas de caixas alinhadas no chão com os litros já colocados. Em cada litro quase dois centímetros de água. Mangueira fina de borracha, ligada a uma torneira, um funil e uma canequinha medida foram apreendidas. Várias fotografias foram tomadas para a imprensa, que as publicou, no dia seguinte, com grande destaque.

Quando os latões chegaram, instantes após, os autos de infração já estavam lavrados. A água dos litros já havia sido derrubada. O leite foi examinado na presença do destinatário e os litros foram cheios na presença dos "comandos". Naquele dia, alguns santistas ingeriram leite não batizado.

A repercussão junto ao povo pelos relatos do rádio e pelas notícias dos jornais foi intensa.

Os Comandos aguardaram algum tempo para que amainasse a repulsa popular.

No dia escolhido para os distribuidores a domicílio, os fiscais foram divididos em dois grupos. O Grupo A agia do começo para o fim da rua determinada e o Grupo B do final para o começo da via pública.

O Grupo A era composto por mim e os fiscais Amálio Luís Mauri e Armando Duarte do Páteo. O Grupo B era constituído pelo guarda Mussi, o queridíssimo Bigode, e os fiscais Humberto de Rosato e Antônio Martins.

Fazíamos parar as carrocinhas de distribuição para realizar os exames do leite, no local onde estacionavam.

Uma dessas batidas, que revelou o batismo do leite pelos próprios distribuidores, proporcionou uma agressão a chicote pelo chefe dos Comandos quando deu ordem ao leiteiro para parar o seu veículo. No outro extremo da rua, o guarda Mussi e o fiscal Humberto de Rosato conseguiram deter o agressor que disparara sua carroça para fugir.

O resultado da pesquisa revelou que, dos 34 fornecedores ambulantes de leite, apenas 7 vendiam produto natural, próprio para o consumo. A adição de água muitas vezes era feita com água poluída.

A manteiga era vendida, em grande maioria, em latas de vários tamanhos. Também foi verificada a adulteração, com sebo ou outro tipo de gordura animal hidrogenada e tratada com sulfito de sódio e ácido butírico. Grande quantidade foi apreendida e inutilizada.

Os queijos também foram sujeitos à fiscalização. O caso mais rumoroso foi a descoberta, em depósito fora do centro, de pilhas de queijos meia cura em um local junto a uma latrina e um pequeno tanque. Além das moscas em raids entre a latrina e os queijos, foram encontradas pequenas tiras de tecido atoalhado (absorvente higiênico), a secar sobre o monte do laticínio. As fotografias tomadas e publicadas deram origem a várias piadas. Falava-se em novo sistema de cura para sabor especial.

A primeira alimentação do santista, a matinal, era em maioria constituída de leite, café e pão com manteiga.

Como seria o pão, esse alimento essencial, consumido pelos santistas e especialmente por crianças em desenvolvimento e idade escolar?

(*) Raul Ribeiro Flórido, ex-médico chefe do Martins Fontes. Diretor dos Comandos.


O Centro de Saúde Martins Fontes, na Rua Luiza Macuco, 40, esquina de Rua Silva Jardim
Foto: Carlos Pimentel Mendes, em 3 de agosto de 2007

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