Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0335b10.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/30/11 12:35:55
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (J)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

Leva para a página anterior

História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

Leva para a página seguinte da série

Capítulo 2 – A literatura de identidade portuária

2.3 Terras do Norte, Terras do Sul: representação nacional de um país de deslocamentos populacionais

Navios Iluminados retrata o homem do sertão que veio para a cidade. Embora possa ser um dos percursos mais comuns nos movimentos da população brasileira, é só em sua obra final, de um autor que chegava à maturidade, que essa trajetória se realiza completamente em mimese literária.

Seu primeiro romance, O Triunfo (1918), enquadra-se no que seria mais tarde chamado de regionalismo; Dentro da vida (1922) tem um protagonista que sai da cidade grande, o Rio de Janeiro, para clinicar no interior de Minas Gerais, assim como havia feito o próprio Ranulpho antes de se mudar para Mirassol.  O lírio na torrente (1925) reúne os espaços do Nordeste e do Sudeste em uma história que tem como cenários Lagarto (Sergipe), cidade natal do autor [133], o próprio Rio de Janeiro e Ribeirão Preto [134].

Vale notar que o próprio autor era um migrante, tendo passado ainda por Estância, também em Sergipe, onde havia estudado, e Salvador, onde concluiu o Secundário, além do Rio de Janeiro onde concluiu seus estudos de Medicina entre 1918 e 1919, Santo Tomás de Aquino, Minas Gerais, em 1920, e Mirassol entre 1921 e 1924. Em durante os dois anos seguintes, volta ao Rio, muda-se para Sergipe e retorna ao Rio, de onde, em 1927, mudaria para Santos, onde ficaria até sua morte.

Temos assim O Triunfo (1918), ainda que traga um personagem migrante, como sua obra do espaço natal – é um romance que Prata trouxe do Norte, como diria em entrevista a Silveira Peixoto [135].

Dentro da Vida (1922) como a representação literária de sua clínica em uma cidade do interior mineiro (no romance, o nome da cidade é Santa Clara), cujo cenário não permite ao enredo ter maior complexidade do que uma história de amor entre o médico e uma jovem da família mais rica da cidade. Já O lírio na torrente (1925), que trata das viagens do protagonista entre o Rio de Janeiro e o interior de São Paulo, acompanha também as mudanças do próprio autor.

Assim como a obra de 1922, O lírio na torrente traz um protagonista que se move do litoral para o interior, em busca de diploma e trabalho. O enredo do romance tem início no Rio de Janeiro, de onde Fortunato, o protagonista, nascido em Lagarto, Sergipe (assim como Ranulpho Prata), parte para Rio Preto, no interior de São Paulo, onde mora com um tio de sua esposa, o doutor Alexandre. Após algumas idas e voltas entre a então capital nacional e o interior de São Paulo, é lá mesmo que a história termina.

Enquanto Prata lamentava não se tornar um "discípulo" de Lima Barreto e escrever sobre as "gentes e os costumes" de um centro urbano "infernal e delicioso" (ver cap. 1), os personagens dos dois romances que publicaria em 1922 e 1925 traçavam o percurso oposto.

Outra mudança significativa entre a narrativa dos três primeiros romances e Navios Iluminados é a composição do protagonista. Enquanto nas três obras iniciais, o personagem principal detém ou busca um diploma (um bacharel em O Triunfo; um médico em Dentro da Vida; e um estudante em O lírio na torrente, os três com uma marca biográfica muito assentada), José Severino de Jesus é um ex-agricultor semi-alfabetizado que deixa a roça no sertão da Bahia para tentar a vida como estivador no porto de Santos.

Ranulpho Prata, migrante

Imagem: arte de Eduardo Morello, reprodução da página 86 do arquivo da dissertação

A migração e a imigração são dois assuntos que estão nas páginas do romance de Ranulpho Prata. Nenhum dos personagens principais é sequer santista. José Severino de Jesus e seu amigo Felício são baianos, de Patrocínio do Coité; Manuel Milagre e a esposa Sá Francisca, que alugam um quarto do chalé aos dois amigos, são portugueses. A filha de Manuel, Florinda, que se casa com Severino, é a única personagem do núcleo principal que nasceu em Santos.

Os tipos da narrativa são formados por migrantes nordestinos que buscam trabalho urbano e imigrantes, suas famílias e descendentes, secundados por trabalhadores das mais diversas origens na estiva e em outras funções do porto: marinheiros, funcionários da burocracia portuária, prostitutas [136].

No romance, o espaço nacional é formado por dois blocos de cidades. No Sudeste: Santos, São Vicente, Guarujá (Baixada Santista), São Paulo, São José dos Campos e Rio de Janeiro; e no Nordeste: Patrocínio do Coité e Cabrobó (além de menções a Pernambuco e Bahia). Essa oposição é explorada nos termos "terras do Sul" e "Norte" [137], regiões antagônicas postas em comunicação pelo porto de Santos. A passagem reproduzida a seguir mostra a chegada no cais de Santos de trabalhadores para as lavouras paulistas:

O Itaquatiá, numa manobra fácil e rápida, encostou no armazém 5. Vinha do Norte. Subiram para bordo alguns homens da (turma de estivadores) 65. Mas não foi possível abrir os porões antes de esvaziá-lo da carga humana que trazia.

A proa estava apinhada de gente que entupia os poucos alojamentos da terceira, esparramava-se pela escotilha e convés e, subindo como uma onda, derramava-se por todo o castelo. Cerca de seiscentas pessoas ocupavam lugares que mal dariam para duzentas. Severino estacou, surpreso, diante do que via.

Era uma legião de seres que confrangiam. Homens definhados, os ossos da face pulando, a barba e a roupa carregando na impressão de miséria; mulheres envelhecidas antes do tempo, esgrouvinhadas, macilentas; crianças de todos os tamanhos, de peito, de braço, de barra de saia, imundas, pernas de cambito e barrigas de sapo.

Duas morreram na travessia, indo para o mar, para o acalento das ondas. Mas a carga, em lugar de desfalcada, chegou acrescida, porque nasceram três: a Natureza na teima cruel de botar viventes no mundo para que o sofrimento, como uma traça, tenha sempre o que roer.

O sol era forte e a azáfama do cais aumentava o calor. De bordo, saía um mau cheiro ardido de detritos, suor e urina.

Severino, com dificuldade, penetrou naquele bolo de gente, a sua gente. Abeirou-se de um velho barbudo que apertava nos peitos, como um saco de ouro, um pequeno baú de folha.

- De onde é, meu irmão?

- De Cabrobó, em Pernambuco.

- Pra onde se bota?

- Vamos pras fazendas de São Paulo, limpar café.

- Não tem chovido lá no Norte?

- Está com sessenta dias que nem respinga.

- Todo o plantio torrado?

- Todo perdido, sim, senhor.

- E os ganhos?

- Nenhum, meu irmão, nenhum. O vintém é um despotismo custoso. E não chega pras urgências. Se o céu não tiver dó mandando chuva, ou o governo não der passagem, morre tudo lá embolado que nem bicho em bicheira. Quer tirar uma fumaça?

O velho sertanejo lhe ofereceu um cigarro. Severino aceitou, deu uma chupada forte, encostou-se na amurada e deixou os olhos caírem no espelho das águas, numa cisma repentina. "Norte sem coração, enjeita tudo quanto é filho", pensou. (NI, 137-8)


Migrantes embarcam no trem no cais de Santos

Foto de José Marques Pereira publicada em janeiro de 1902 numa edição especial da Revista da Semana/Jornal do Brasil, com a legenda "Docas - trem de imigrantes". Foto cedida pelo Museu do Porto de Santos, no arquivo de Novo Milênio. Incluída na pág. 88 do arquivo da dissertação

A terra que tudo quanto é filho enjeita é onde a família de Severino mal sobrevive no aperto da seca. Em Patrocínio do Coité, sertão da Bahia, ele deixou mãe e os irmãos mais novos; o pai estava preso por desacato e não mais sustentava a família.

Coube então a Severino migrar para as terras do sul como antes fizera seu amigo, Felício, que, cheio de histórias da cidade grande durante visita à terra natal, incentivava o conterrâneo a acompanhá-lo.

Eles migram em busca de trabalho na Companhia Docas de Santos, a concessionária que administraria o porto até a década de 1980. De Patrocínio se dirigem a Salvador, onde tomam o navio para o porto do Sul.

O ESPAÇO NACIONAL EM NAVIOS ILUMINADOS: Felício, amigo que traz Severino para Santos, aproveita a escala no Rio de Janeiro para conhecer a cidade, enquanto o outro fica no navio, com receio de se perder na cidade e não conseguir retomar a viagem para Santos. Já em Santos, quando ganha dinheiro no jogo do bicho, Felício usa todo o dinheiro em uma viagem de primeira classe até Buenos Aires, onde gasta tudo em cassinos, aluguel de carros e prostitutas

Imagem: arte de Eduardo Morello, reprodução da página 89 do arquivo da dissertação

A importação maciça de mão-de-obra de outras regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, começa ainda em 1892, quando um agente da Companhia Docas vai a Alagoas para contratar quatrocentos trabalhadores para atuarem na reforma e ampliação do porto (LANNA, 1996).

O procedimento causava conflitos entre as elites do Centro-Sul e do Nordeste. As primeiras buscavam mão-de-obra mais barata, enquanto as segundas queriam evitar a elevação dos valores dos salários em suas regiões devido à diminuição do número de trabalhadores.

O trecho acima ilustra o que Francisco Foot Hardman chama de "drama da modernidade", que se constitui "precisamente do choque que interrompe o fluxo da experiência tradicional, na destruição sistemática desses espaço-tempos insulados, no esquecimento produzido pelo desencontro de linguagens [...]" [138], uma avaliação que complementa a apresentação de Benjamín de Garay para a versão em espanhol do romance.

A passagem revela o espaço do cais como uma fronteira entre duas terras, e o navio que trouxe os migrantes do Norte e o trem que os levará para as fazendas de São Paulo são eles mesmos também símbolos dessa modernidade a toque de máquinas.

A ambientação do romance em cidade portuária impede, como exposto acima, que seu autor seja classificado como "regionalista" ou "sertanista". No porto, o que há é uma comunicação não só entre as terras do norte e do sul, mas também de suas respectivas identidades.

O espaço híbrido do porto permite ao romance de Prata atingir em seu próprio meio aquilo que Nicolau Sevcenko detectou ao analisar a arte literária de Lima Barreto e Euclides da Cunha: "a dimensão histórica e espacial da nação, do Estado, do território, da ordem econômica internacional, do cosmopolitismo, etc." [139].