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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PORTO & LITERATURA - BIBLIOTECA NM
Os navios iluminados de Ranulpho Prata (B)

Nacionais e de todo o mundo, como os navios que aqui aportam...

 

Clique na imagem para ir ao índice do livroCom o título "História e literatura no porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados", o jornalista Alessandro Alberto Atanes Pereira desenvolveu esse tema em sua coluna no site PortoGente. Essa dissertação foi defendida como tese de mestrado em 7 de abril de 2008 na Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de História, tendo como orientadora Inez Garbuio Peralta e a banca examinadora integrada também por Wilma Therezinha Fernandes de Andrade e Maria Luiza Tucci Carneiro. O autor enviou o material para publicação em Novo Milênio, em 27/1/2011. Clique aqui<< para obter o arquivo final em formato PDF (2,80 MB), ou veja nestas páginas a versão original, mais completa:

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História e Literatura no Porto de Santos:

O romance de identidade portuária Navios Iluminados

 Alessandro Alberto Atanes Pereira

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Capítulo 1 – A história do romance: a realização de Navios Iluminados, edições e recepção crítica

1.1 A carta

Em carta datada de 14 de janeiro de 1921 endereçada a Lima Barreto, Ranulpho Prata – que escrevia de Mirassol, interior de São Paulo, onde clinicava – lamentava não ter como escrever uma obra literária de cunho urbano como eram os contos de Histórias e Sonhos (1920), do autor carioca. Aos 24 anos, romancista e médico em início de carreira, tendo publicado apenas O Triunfo em 1918, Prata diz que gostaria de escrever da forma como Barreto representa "a gente e os costumes desse Rio infernal e delicioso". Mas o autor admitia que lhe faltava um ambiente urbano que lhe fornecesse matéria-prima de observação como não era possível no interior.

A carta em que faz o lamento é uma das seis trocadas entre os dois (cinco escritas por Ranulpho Prata, uma por Lima Barreto) reunidas em um volume de correspondências do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma [11]. O material revela um pouco da amizade entre os dois, que haviam se conhecido entre 1918 e 1919, período em que o sergipano nascido em 1896 em Lagarto, Sergipe, foi interno no Hospital do Exército, no qual o escritor carioca havia passado alguns períodos em recuperação (Ranulpho Hora Prata se formaria na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro em 30 de dezembro de 1919) [12].

As seis cartas recuperadas pela coletânea estão transcritas em seis páginas ao final do Tomo II da Correspondência de Lima Barreto, reunida em dois volumes da editora Brasiliense com cartas trocadas entre o autor e diversas personalidades do mundo intelectual. Das seis cartas trocadas entre 3 de janeiro e 29 de julho de 1921, cinco foram escritas por Prata [13].

O fato de só haver uma tendo Lima Barreto como remetente é lamentado pelo autor do prefácio da coletânea, Antônio Noronha Santos, já que Prata, então um jovem entre 24 e 25 anos, era um grande amigo na última fase da vida de Lima Barreto, morto em novembro de 1922.

Em seu perfil traçado na coletânea de cartas de Lima Barreto, lê-se que Prata "formou entre os melhores amigos do romancista, na última fase da sua vida" [14]. Em setembro de 1918 Lima Barreto registraria como haviam se conhecido. Prata o procurara com um exemplar de seu primeiro romance, O triunfo, livro lançado naquele mesmo ano.

Lima Barreto se referiu ao episódio na primeira frase da crítica ao livro publicada em 28 de setembro no periódico A.B.C.: "O senhor Ranulfo [sic] [15] Prata teve a bondade e a gentileza de me oferecer um exemplar de seu livro de estréia – O Triunfo" [16]. Em 1940, dois anos antes de morrer em 24 de dezembro de 1942, em depoimento a Silveira Peixoto, Prata lembraria do início da amizade:

Lima Barreto elogiou o livrinho e foi visitar-me no Hospital do Exército, onde eu era interno. A visita desse mulato genial deu-me grande alegria. Sentados num dos bancos do jardim, o Lima, meio tocado, como sempre, mas perfeitamente lúcido, claro, brilhante mesmo, queria saber com segurança se a Angelina do romance era realmente bonita como eu a pintara. Todos os ficcionistas, dizia-me ele, com ironia, têm a mania de fazer belas as raparigas das cidades pequenas. Nos lugarejos por onde eu andara nunca vira nenhuma... Eram todas feias, grosseiras, desalinhadas... E eu garanti que a minha Angelina era, positivamente, encantadora, capaz de virar cabeças sólidas de gente de grandes cidades [17].

Entre o final do curso e 1920, Prata pratica a clínica médica em São Tomás de Aquino, no interior de Minas Gerais [18] e, no ano seguinte já assina suas cartas de Mirassol, no interior de São Paulo, quando voltam a ter contato (em sua carta, Lima Barreto admite desconhecer o destino do amigo: "Não sei onde estás, mas o Jackson [de Figueiredo] me disse, anteontem, que andavas por São Paulo, nos cafundós" [19]).

Além de literatura, acompanhamos cartas de Prata datadas de 16 e 29 de março de 1921 nas quais combinava com o amigo uma viagem a Mirassol que, posteriormente, daria assunto a três crônicas de Lima Barreto: Até Mirassol (Notas de viagem), Dias da Roça e Generosidade, reunidas em Marginalia [20], e uma conferência, O Destino da Literatura, que teria sido pronunciada em Rio Preto durante o período da visita.

A primeira das crônicas conta o primeiro dia de viagem: "A convite de meu amigo e confrade dr. Ranulfo Prata, clínico nessa localidade de Mirassol, que fica nos confins de São Paulo, atraído também por seu nome pitoresco, embarquei para ela, na Central, em 1 de abril". Paulo Dantas, em crítica à obra de Ranulpho Prata publicada em 1953, falaria sobre os motivos do convite:

O objetivo de Ranulfo era tentar a cura do alcoolismo do genial criador de Policarpo Quaresma, pondo-o no "regime do copo de leite". E o grande e humilde Lima Barreto foi para Mirassol, onde no início, até começou a engordar, enchendo assim o coração do jovem médico de esperanças. Mas, aconteceu que certo dia, justamente quando foi marcada uma conferência literária de Lima Barreto em Rio Preto, o escritor entrou num boteco e voltou a beber. Ranulfo Prata, que o procurava pela cidade, aflito, deu com Lima em estado lamentável. Era a volta ao álcool.

– Prata – foi dizendo Lima Barreto, humilde e em tom de justificação –, que você em sua vida nunca tenha os motivos que me fazem beber assim.

E irremediavelmente perdido, Lima Barreto voltou ao Rio [21].

Em 16 de junho, Prata responde uma carta de Lima Barreto em que se diz aliviado por ter recebido notícias do Rio de Janeiro: "Até que, afinal, depois de um prazo que minha amizade e interesse já achavam longo, chegou-me sua carta". Prata avisa que mandará a conferência a um tal de Cardoso, em Rio Preto, e pede uma cópia de qualquer jornal onde sair publicada.

Na carta seguinte de Prata, de 29 de julho, sabemos que a anterior havia sido respondida: "Deu-me a sua carta um grande e íntimo prazer. As suas notícias gozam deste prestígio aqui nesta minha vida de insulamento e trabalho". Nessa carta, Prata anuncia esperar abraçar o amigo em novembro, no Rio de Janeiro, enquanto estivesse "de passagem para o Norte". Lima Barreto morreria em 1º de novembro de 1922 e não há qualquer indício no material pesquisado de novos contatos entre os dois.

A Lima Barreto, Prata acaba revelando um pouco de sua técnica literária: dedicar-se à percepção do espaço a sua volta pela apreensão direta do ambiente narrado. Voltemos à carta de 14 de janeiro de 1921:

Pudesse eu tornar-me um seu discípulo e fazer o mesmo aqui! Infelizmente, porém, nada posso fazer no interior, num ambiente que asfixia e mata.

A "vida de insulamento e trabalho" da carta de 29 de setembro renovaria a expressão de insatisfação por seu isolamento literário, ainda que Mirassol seja o lugar onde Prata conheceu a esposa, Maria da Glória. Com ela casa-se em 1923 e, no ano seguinte, tiveram seu único filho, Paulo Prata (que seguiria a carreira de Medicina). Em 1925, Prata mantém por quatro meses um consultório no Rio de Janeiro, depois volta a Sergipe para atuar como professor no Ateneu Sergipano e, em Aracajú, organiza um "gabinete radiológico" [22].

De volta ao Rio, conta Primo Vieira, recebe o aviso de uma vaga de médico radiologista na Santa Casa de Santos [23], para onde se candidata e onde começa a trabalhar em 29 de maio de 1927 [24].

Para Santos, Prata levaria sua família, e ali trabalharia até o fim da vida. Prata morreria em 24 de dezembro de 1942, internado no hospital Santa Cruz, em São Paulo [25].

A clínica de Prata, como veremos adiante, propiciou o material humano com que forjou seu protagonista, e a cidade lhe garantiu um ambiente em que Prata pudesse testemunhar o mundo urbano e os costumes da cidade como queria na carta de 1921 [26].

Ranulpho Prata em sua ficha funcional da Santa Casa de Santos

Imagem: acervo de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade,

reprodução da página 23 do arquivo da dissertação

O tema do espaço como aspecto determinante da narrativa surge alguns dias antes, na carta de 3 de janeiro, em que Lima Barreto já havia indicado ao jovem romancista que o espaço da ação do romance restringe as opções narrativas do autor. É o que diz ao comentar um conto de Prata sobre Fagundes, um médico que deixa a cidade para clinicar no interior:

Li teu conto no Jornal, o qual tiveste a bondade de me dedicar. Muito obrigado. Está bom e próprio para "jornal". Podias, porém, detalhar um pouco mais, entrar nas causas da transformação do doutor Fagundes, chic, elegante, um pouco pedante, no simplório "Seu" Fagundes da botica e do gamão. Tente fazer um romance daí que terás feito obra curiosa. Estudarás bem a influência da roça, a adaptação à vida dela, com seus encantos e defeitos (...).

Na resposta de Ranulpho Prata, ainda na carta de 14 de janeiro, ele avisa o amigo que vem esboçando um novo livro, cujo nome provisório era Esculápio de província. Prata demonstra não saber se iria publicá-lo, possivelmente apenas se voltasse ao Rio: "em caso contrário é tudo esquecer e tornar-me um 'Fagundes'". O livro acaba saindo em 1922, rebatizado como Dentro da Vida, segundo romance de Prata. A história mostra um médico que deixa o Rio de Janeiro para clinicar em Santa Clara, no interior de Minas Gerais.

Nos romances do interior, aponta Franco Moretti, poucos são personagens horizontais, isto é, com a mesma idade [27](no caso de Dentro da Vida, por exemplo, são apenas dois, que formam um casal). Nessas obras, as relações são familiares, verticais, marcadas pelas relações de hierarquia entre o protagonista e os demais personagens (pais, padre local, poder político local).

O romance O lírio na torrente e o volume de contos A longa estrada, ambos de 1925, são os últimos livros publicados por Prata antes de se mudar para Santos em 1927 [28]. Embora O lírio na torrente inclua a cidade grande, o Rio de Janeiro, em sua trama, rural é ainda tanto o cenário em que a trama se conclui quanto as relações familiares do protagonista (ver capítulo 2). São nove anos até a obra seguinte, Lampião (1934), obra de não-ficção (ou "estudos") em que Prata mergulha na denúncia social. Na primeira linha da introdução, ele identifica a obra como um "documentário fiel dos crimes de Virgolino Ferreira da Silva", um "eco do clamor e do apelo lançados pelas populações desditosas".

A intenção de denúncia se mistura à esperança de ser percebido pelas autoridades: "Clamor que deseja ser ouvido pela consciência pública brasileira e apelo dirigido aos responsáveis pelos destinos do país" [29].

Capa do livro Lampião, de Ranulpho Prata (lançado em 1934), na edição Piratininga

Imagem: reprodução da página 25 do arquivo da dissertação

Ainda na introdução, Prata elege Os sertões (1902), obra da geração anterior, como precursor de Lampião. Para ele, a obra de Euclides da Cunha foi a responsável por apresentar o drama do sertanejo à nação. Euclides da Cunha é, por sinal, o patrono da cadeira número 41 do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, ocupada anos depois pelo autor de Navios Iluminados [30].

Mas, ao contrário do intelectual paulista de formação positivista, que vai a Canudos acreditando encontrar uma "sub-categoria étnica", Prata, nascido no sertão, apresenta-se como porta-voz da "angústia de milhares de seres humildes" e por todo o texto inicial se refere aos sertanejos na primeira pessoa do plural: "a mão que tracejou este livro é a de um filho dos sertões".

Prata só viria a publicar novamente ficção em 1937, justamente com Navios Iluminados, com seus tipos urbanos de uma cidade portuária – um dos principais eixos da movimentação de bens e capital e da circulação populacional do país. Ainda que não se possa estabelecer uma relação automática entre as intenções da carta e a realização do romance 16 anos depois, Navios Iluminados apresenta um cenário mais adequado ao tipo de obra que queria escrever o "discípulo" de Lima Barreto em 1921.

No romance urbano (Moretti cita os romances de formação em que o protagonista deixa a província em direção à capital), por sua vez, as relações são horizontais, entre amigos e antagonistas. Nesse segundo cenário a literatura consegue apreender a complexidade da modernização das cidades brasileiras e suas relações com os movimentos populacionais, transformações que revelam, se adotarmos a expressão de Néstor García Canclini, um processo de modernização sem modernidade [31], típico da América Latina, cujo porto de Santos, centro exportador e importador, é um dos pontos de articulação [32]. É na cidade que se desenvolve o romance moderno (a Paris de Balzac, a Londres de Dickens), onde "acontecimentos e experiências pessoais se entrelaçam com forças históricas impessoais" [33].

É em Santos, principal ponto de comércio exterior nacional, com seus quilômetros de cais e toneladas de carga, que ele pode dar vazão à escritura no modelo que tinha em Histórias e sonhos, um romance com a complexidade do ambiente urbano de uma cidade portuária.