Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 13 — Da
herpetogratia e dos batráquios e vários outros
Capítulo
CIX
Em que se declara a qualidade das cobras, lagartos e
outros bichos.
Agora cabe aqui dizermos que cobras são estas do Brasil, de que tanto se fala em Portugal e com razão, porque tantas e tão estranhas, não se sabe
onde as haja.
Comecemos logo a dizer das cobras a que os índios chamam jibóia, das quais há muitas de cinqüenta e sessenta palmos de comprido, e daqui
para baixo. Estas andam nos rios e lagoas, onde tomam muitos porcos da água, que comem; e dormem em terra, onde tomam muitos porcos, veados e outra
muita caça, o que engolem sem mastigar, nem espedaçar; e não há dúvida senão que engolem uma anta inteira, e um índio; o que fazem porque não têm
dentes, e entre os queixos lhes moem os ossos para os poderem engolir.
E para matar uma anta ou um índio, ou qualquer caça, cingem-se com ela muito bem, e como têm segura a presa, buscam-lhe o sesso
[ânus] com a ponta do rabo, por onde o metem até que matam o que têm abarcado; e como têm morta a caça, moem-na entre os queixos para a poder melhor
engolir.
E como têm a anta, ou outra coisa grande que não podem digerir, empanturram de maneira que não podem andar. E como se sentem pesadas lançam-se ao
sol como mortas, até que lhes apodrece a barriga, e o que têm nela; do que dá o faro logo a uns pássaros que se chamam urubus, e dão sobre
elas comendo-lhes a barriga com o que têm dentro, e tudo o mais, por estar podre; e não lhes deixam senão o espinhaço, que está pegado na cabeça e
na ponta do rabo, e é muito duro; e como isto fica limpo da carne toda, vão-se os pássaros; e torna-lhes a crescer a carne nova, até ficar a cobra
em sua perfeição; e assim como lhes vai crescendo a carne, começam a bulir com o rabo, e tornam a reviver, ficando como dantes; o que se tem por
verdade, por se ter tomado disto muitas informações dos índios e dos línguas que andam por entre eles no sertão, os quais afirmam assim.
E um Jorge Lopes, almoxarife da capitania de S. Vicente, grande língua, e homem de verdade, afirmava que indo para uma aldeia do gentio no sertão,
achara uma cobra destas no caminho, que tinha liado três índios para os matar, os quais livrara deste perigo ferindo a cobra com a espada por junto
da cabeça e do rabo, com o que ficou sem força para os apertar, e que os largara; e que acabando de matar esta cobra, ele lhe achara dentro quatro
porcos, a qual tinha mais de sessenta palmos de comprido; e junto do curral de Garcia de Ávila, na Bahia, andavam duas cobras que lhe matavam e
comiam as vacas, o qual afirmou que adiante dele lhe saíra um dia uma, que remeteu a um touro, e que lho levou para dentro de uma lagoa; a que
acudiu um grande lebréu [cão-de-fila], ao qual a cobra arremeteu e engoliu logo; e não pôde levar o touro para baixo pelo impedimento que lhe tinha feito o lebréu; o qual touro saiu
acima da água depois de afogado; e afirmou que neste mesmo lugar mataram seus vaqueiros outra cobra que tinha noventa e três palmos, e pesava mais
de oito arrobas; e eu vi uma pele de uma cobra destas que tinha quatro palmos de largo.
Estas cobras têm as peles cheias de escamas verdes, amarelas e azuis, das quais tiram logo uma arroba de banha da barriga, cuja carne os índios
têm em muita estima, e os mamelucos, por acharem-na muito saborosa. |