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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (13)

Um dos primeiros e mais conhecidos tatuadores que atuou em Santos, o dinamarquês Tattoo Lucky, como era conhecido, teve seu falecimento assim registrado em matéria do jornal santista A Tribuna em 11 de dezembro de 1983:


Marítimos de todo o mundo passaram pelas mãos hábeis de Tattoo
Foto publicada com a matéria

"Tattoo Lucky" morreu

Texto de Ricardo Marques
Fotos de Rafael Dias Herrera, Walter Albuquerque e arquivo

Knud Luckke Gregersen morreu. Essa informação pouco ou nada significa, já que ninguém deve conhecer esse tal Knud Gregersen. Mas quem não conheceu, ou pelo menos não ouviu falar, do famoso Tattoo Lucky, o dinamarquês que durante 20 anos tatuou braços, pernas, costas e peitos de marítimos e aventureiros, incorporando-se de forma definitiva às ricas histórias de nossa decadente Boca?

Pois Tattoo Lucky morreu. Foi em outubro, na Vila de Arraial do Cabo perto de Cabo Frio e longe de Santos, a cidade onde ele viveu mais tempo, sempre tatuando e alimentando os sonhos de muita gente, disposta a manter um desenho na pele pelo resto da vida.

O coração de Tattoo não resistiu a tanta inquietação; o corpo não acompanhou a liberdade de espírito desse homem que saiu de sua casa, em Copenhague, aos 15 anos, para correr o mundo. Depois de conhecer 42 países, sempre de navio e sempre tatuando, ele ancorou em Santos, para fazer parte definitiva da história marginal da Cidade.

Aqui, ele era um dos donos da Boca. Conseguiu o respeito das prostitutas, dos marinheiros, dos doqueiros, dos marginais, dos contrabandistas e de todos que procuram no sonho o tempero da vida. Primeiro, Tattoo trabalhava na Rua João Otávio, mudando depois para a General Câmara o seu pequeno e concorrido ateliê. Pincéis e agulhas sempre foram seu meio de vida: ou estava pintando paisagens e figuras do seu meio, ou estava tatuando o corpo de pessoas de todas as procedências possíveis, incluindo as melhores famílias santistas.

Foram 20 anos de Santos, até que um dia um marginal desavisado, talvez sem saber que Tattoo era um dos protegidos da Boca, resolveu assaltar o ateliê do artista. Um roubo tão comum para todos atualmente, mas não para Tattoo. Ele achou que era demais e ficou tão frustrado e revoltado que simplesmente sumiu de Santos.

Um simples e pequeno bandido fez o que nem os milhares de navios que passaram nestes 20 anos pelo porto conseguiram: afastar Tattoo de Santos. Ele foi para Itanhaém, onde ficou durante cinco anos, e há um ano mudou-se para Arraial do Cabo, uma cidadezinha tranqüila, agradável e muito bonita, no litoral fluminense. Arraial só não tinha navios. Em outubro, o coração de Tattoo parou de bater, aos 55 anos de idade.

Começa a 4ª geraçãoTattoo morreu, mas não a estranha vocação para a tatuagem da família Gregersen. Seus filhos brasileiros, Erna e Frederik Gregersen, herdaram o dom e formam a quarta geração de tatuadores da família.

Frederik tem apenas 15 anos, mas já empunha com segurança suas agulhas e tintas coloridas, sem medo de picar o corpo de um homem, com desenhos indeléveis.

Erna Gregersen tem 20 anos e já é uma profissional, assumindo a responsabilidade de dar seqüência ao trabalho do pai, em Santos. O nome é dinamarquês, mas o Erna transformou-se num brasileiríssimo Ana. Um dia, Ana encontrou Antônio Ubirajara Freira, que se transformou em Bira, e os dois companheiros decidiram que a tatuagem seria também o seu meio de vida.

No ateliê instalado nos fundos do Restaurante Energia (Avenida Washington Luís, 64), Ana e Bira contam histórias e recebem seus novos clientes, bem diferentes daqueles que procuravam Tattoo, na Boca.

Folheando um velho livro dinamarquês, Ana vai relacionando os nomes de pessoas famosas e tatuadas: John Kennedy (que já foi marítimo), Sean Connery, Mônica Vitti, Shirley MacLaine, Charles Chaplin, capitão Cook e até o rei Frederik III, da Dinamarca. O livro diz ainda que o rei dinamarquês foi tatuado por Jens Gregersen, pai de Tattoo, avô de Ana e filho do homem que iniciou a família nessa antiga e estranha arte.

Como seu pai e seu avô, Ana aprendeu apenas observando, desde criança, o picar das agulhas fixando as tintas coloridas na pele. Se a arte é a mesma, mudaram o estilo e, principalmente, os temas dos desenhos. Antes, até a época de Tattoo, as escolhas revelavam o gosto pelas figuras mais agressivas; dragões assustadores, cobras, monstros variados e até mesmo nomes de mulheres e declarações de amor. Muitas vezes, o amor não era tão duradouro quanto a tatuagem e surgiam situações difíceis, provocando algumas das feias cicatrizes que cobrem parcialmente alguns desenhos, numa tentativa desesperada de apagar o indelével.

Hoje, Ana e Bira já não desenham cobras e dragões. Eles foram substituídos por pássaros, flores, figuras mitológicas, o sol, a lua, estrelas, planetas, borboletas, símbolos de paz e harmonia. Mudou a tatuagem ou mudaram as pessoas?

Provavelmente, as pessoas. Afinal, como lembra Bira, a tatuagem é uma das mais antigas artes conhecidas pelo homem. Na pré-história, eles se tatuavam com lascas de pedras. Também nas mais antigas civilizações, em todos os continentes e em qualquer cultura, existem registros de tatuagens, muitas vezes utilizadas com um sentido de ritual, como em antigas tribos indígenas.

Ana e Bira já escolheram a frase que usarão como síntese do seu trabalho em Santos: a mais antiga arte, no mais novo estilo. Eles não têm muitos planos definidos, mas garantem que passarão a temporada de verão em Santos, atendendo no Energia, e depois pretendem dividir o tempo com períodos em Arraial do Cabo e Belo Horizonte. São planos a curto prazo, bem de acordo com o espírito de aventura que ainda hoje envolve uma tatuagem.

O companheiro da filha de Tattoo mantém a imagem de aventura, embora de uma maneira mais moderna. Há três meses ele chegou de Nova Iorque, onde permaneceu mais de um ano, nas mais diversas atividades. Bira pintou camisetas, vendidas nas ruas; realizou desenhos murais em residências e, no final, comprou uma perua, com a qual passeava em Nova Iorque com grupos de turistas brasileiros, mostrando a eles os lugares que não constavam dos roteiros tradicionais.

Na Big Apple, a Babilônia moderna, Bira aprendeu que nada é proibido ou impossível, muito menos ganhar a vida em qualquer tipo de profissão. Foi em Nova Iorque que ele viu jovens fazendo de tudo, até mesmo teatro rebolado, para se sustentar sem recorrer ao crime.

Essa visão eliminou seus últimos preconceitos e repressões, deixando claro que na arte estava sua sobrevivência. Isso, mais um sonho em que sua mão ficou dormente e estranha, fez com que Bira tivesse, finalmente, a coragem de picar com agulhas a pele de uma pessoa, para um desenho que nunca mais seria apagado.

A técnica e o gosto ele já havia adquirido de Ana. Ambos têm, no braço direito, uma tatuagem feita por Knud Luckke Gregersen, o Tattoo Lucky, que morreu, mas deixou herdeiros para sua arte, assimilada atualmente pela juventude das praias, tentando vencer os últimos preconceitos.

Hoje, Bira não lembra em nada que, um dia, ele já foi um engenheiro mecânico, formado em faculdade. Com Ana, eles parecem mesmo o que são: artistas, cujas telas são braços, costas, pernas, seios ou qualquer outra parte do corpo humano, onde há espaço para um sonho.


No ateliê do Canal 3...
Foto publicada com a matéria

De que cor eram seus olhos?

Não conheci homem com olhos mais honestos do que Tattoo. O interessante é que não recordo se eram verdes, azuis ou castanhos, mas isso pouco importa. Ele conseguia transmitir uma paz indescritível falando de sua vida aventureira e que em determinado dia encontrou um porto seguro nesta cidade; primeiro na João Otávio e depois na General Câmara. Infelizmente, essa paz foi quebrada depois de 20 anos e ele, homem que sempre soube respeitar o código de ética da Boca, preferiu retirar-se a passar por mais um desses bandidos pés-de-chinelo que hoje infestam aquela região.

No fundo de seu ateliê, Tattoo materializou milhares e milhares de sonhos e fantasias, como se suas mãos tivessem a capacidade de manipular a realidade, deixando marcas indeléveis, perfeitas, satisfazendo a paixão desvairada de uns e a vaidade de outros. Seu amor por esta cidade era enorme, tanto que mais de uma vez afirmou bem claro que já se considerava santista, talvez acreditando que a recíproca era verdadeira. Acabou desapontado e foi embora, levando consigo a saudade de muitos marinheiros que, depois de tatuados, voltavam à sua casa humilde para conversar, pois ele não era apenas o artista maior, era gente, extremamente humano.

No dia de sua partida, a Boca deixou de ser aquela região folclórica, diferente, especial, quase irreal. Era a chegada dos novos tempos, bem mais agressivos e onde a ética passou a ser apenas uma palavra colocada nos milhares de dicionários que estão espalhados por aí. Enquanto esteve desenhando dragões e serpentes mitológicos em marinheiros, Tattoo foi respeitado por todos que faziam da Boca o seu mundo, convivendo com um código de ética extremamente diferente daquele que se costuma apregoar, provando que a violência não é essa tragédia que a televisão e os jornais mostram: ela pode ser controlada e combatida com dignidade, desde que se saiba conviver com ela.

Tattoo era assim. Respeitava as pessoas, fossem elas prostitutas, contrabandistas, autoridades policiais, traficantes, deputados, marginais, vereadores ou o simples cidadão comum. Sim, Tattoo tinha a grande qualidade de reconhecer nas pessoas os seres humanos que estão colocados aqui para conviver entre si e que sua atividade, marginal ou não, pouco importa. Mesmo no bandido, existe um ser humano que precisa ser respeitado. Essa foi a maior lição que Tattoo deixou para aqueles que conviveram com ele e que conseguiram compreendê-lo.

E ficou sua obra. Sobre ela, nada a falar. Ela está no mundo.

Álvaro de Carvalho Júnior.


...Ana e Bira dão seqüência à vocação da família Gregersen,...
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Tatuadores de quarta geração

O pequeno ateliê, na garagem de um restaurante natural do Canal 3, é todo pintado de branco. Hoje é o dia de Bira tatuar e Ana só observa. No gravador, uma fita com músicas de Bach e Vivaldi. Num sofá, um jovem de 15 anos, com os amigos, espera o final da preparação de agulhas elétricas e tintas coloridas, querendo saber se vai doer muito. O desenho que será fixado para sempre em seu ombro direito foi escolhido por ele, antecipadamente, e mostra um pégaso, o mitológico cavalo alado, que de imediato lembra uma imagem de liberdade e ausência de limites.

Não há como deixar de comparar o ateliê branco e as músicas de Vivaldi e Bach com o hoje sórdido ambiente da Boca. As coisas nunca são as mesmas, muito menos a cabeça das pessoas.

Talvez, com este novo estilo, Ana Gregersen e Bira estejam tentando eliminar os últimos preconceitos que ainda cercam a tatuagem, vista até hoje, por muita gente, como "coisa de marinheiro e presidiário".

Uma coisa é certa: dificilmente um marinheiro ou marginal procuraria aquela garagem do Canal 3. Se procurar, ele será tatuado, desde que não queira um dragão ou uma cobra, pois não é este o estilo da quarta geração da família Gregersen.

O garoto que espera representa perfeitamente este novo estilo. É Murilo Ferreira Lima, 15 anos, sócio do Tênis Clube, membro de conceituada família santista. Com ele, os amigos, também sócios do Tênis e de situação financeira estável. Quase todos querem uma tatuagem, mas alguns não podem, porque são menores de idade e os pais não deixam.

Por isso, eles apenas acompanham o amigo, frustrados com a intransigência dos pais, que ainda torcem o nariz para uma tatuagem. Murilo está feliz e conta que teve que pedir autorização ao seu pai, por ser menor, conforme orientação de Ana e Bira.

Não houve problemas: o pai de Murilo tem uma andorinha tatuada no braço e seu irmão tem uma flor colorida. Elas foram feitas há um ano, em Parati, e Murilo só não se animou naquela ocasião porque não conseguiu decidir qual desenho escolheria. Na dúvida, preferiu esperar uma oportunidade melhor.

Ele conta: "Na primeira vez, queria fazer só por empolgação. Depois vi que era um negócio bonito. O pégaso, para mim, é como um símbolo na minha vida". Murilo está feliz, não se importando nem em ficar 15 dias sem sol ou banho de mar, até que a tatuagem perca a casca e esteja fixada.


...para um novo público
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Começa o trabalho de Bira. Na mesa, várias agulhas elétricas, que lembram aquelas terríveis brocas de dentistas, e uma série de vidros de tintas coloridas. Ele explica que cada aparelho pode conter até 12 agulhas, ligadas por um acelerador de pé, que picam a pele e fixam a tinta numa espessura de dois milímetros.

Um catálogo mostra centenas de desenhos feitos por Tattoo Lucky, grandes e pequenos, todos coloridos. As tatuagens menores, como uma joaninha ou uma pequena flor, custam Cr$ 15 mil (N.E.: um dólar americano, na época, valia Cr$ 940,00, de forma que a joaninha custaria cerca de US$ 16). As maiores, como uma grande águia de olhar ameaçador, podem custar até Cr$ 250.000,00 (N.E.: uns US$ 267). As mais comuns, porém, ficam entre Cr$ 20 e Cr$ 40 mil.

Os aparelhos vieram da Dinamarca e as tintas são importadas do Japão, único fornecedor dos pigmentos naturais, assimilados pela pele. Bira e Ana lembram que algumas pessoas estão fazendo tatuagens até com tinta suvinil, provocando feridas. Segundo afirmaram, em nenhuma hipótese pode-se utilizar tintas químicas nas tatuagens.

Bira fala muito dos novos desenhos que estão sendo escolhidos pelos jovens. Em sua opinião, a tatuagem é uma manifestação do interior da pessoa: "Tem gente que chega querendo uma gaivota, mas não tem cara nenhuma de gaivota. Aí, depois de ver os motivos, acaba escolhendo um peixe, e logo sabemos que é o desenho certo".

Quem faz uma tatuagem sente que, de certa forma, passa a pertencer a um clube fechado. Bira reconhece que ainda há muito preconceito, embora em menor escala, "principalmente depois que a tatuagem começou a aparecer nas novelas da Globo".

Ele conta que, no Rio de Janeiro, um promotor se tatuou, apenas para tentar se aproximar do filho rebelde. Se conseguiu, não se sabe.

Enquanto Bira conta esses casos, o pégaso vai tomando forma no braço de Murilo e logo começa a ganhar umas penas vermelhas aqui, outra amarela ali. Sai um pouco de sangue, mas Murilo garante que está doendo menos do que esperava. É uma questão de relaxar o braço.

"Murilo, e se depois você se arrepender, quando já não der mais para tirar?" Ele responde: "Agora, eu já considero como se fosse uma parte do meu corpo mesmo, como se tivesse nascido assim. É como uma pinta na pele".

Bira não pára, alternando o trabalho com a agulha com constantes limpezas no local, usando um tubo spray de sabão medicinal e vaselina. No final, ele ainda passa uma pomada na pele, para evitar possíveis inflamações, e faz um curativo sobre a tatuagem, que somente estará definida em um mês.

Duas horas depois, o trabalho está concluído. Murilo está orgulhoso, principalmente porque os amigos admiram o pégaso e reclamam que o pai não deixa mesmo.

Logo depois, chega a mãe de Murilo, que confessa: "O pai e o irmão já têm tatuagens, mas eu não consigo gostar. Quando eu penso que é pra toda a vida..."


Concentração total: se errar, não dá mais para apagar
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