Habeas-corpus histórico
Texto do documento subscrito por Urbano Neves, Olímpio Lima e Alberto Veiga, de A Tribuna, em favor
da família imperial, no ano de 1903
Preâmbulo
Parecerá audácia que os signatários do documento que
abaixo damos, esquecendo a obscuridade de seus méritos e de suas posições, se abalancem a impetrar perante a mais alta representação da justiça do
País uma ordem de habeas-corpus a favor da família imperial banida, quando essa iniciativa devia partir de quem, pelo nome e pela posição,
representasse o próprio amparo da causa em defesa.
Mais estranho parecerá que sejam republicanos históricos os que intercedam pelos
representantes da dinastia deposta, sujeitando-se, assim, às inclemências da lei dos suspeitos, visto que, segundo a intolerância da época e as
conclusões da lógica política atual, ou são conspiradores, ou são falsos republicanos, os que por qualquer forma invocam ou superiorizam as pessoas
e coisas do regime extinto.
Não nos intimida a inferioridade da nossa posição e do nosso nome, porque o que se
exige é o cumprimento restrito e insofismável da lei, a aplicação de princípios decorrentes do regime instituído, o exercício sem peias das
liberdades individuais, a observância rigorosa dos deveres estabelecidos e codificados, a austera e elevada manifestação da justiça refletida e
calma. Para isso não é essencialmente preciso um nome prestigioso, como não é absolutamente indispensável uma posição superior; basta ter uma boa
qualidade moral: o caráter.
Quanto à nossa qualidade política, é exatamente porque vimos da propaganda
republicana, porque fomos e ainda somos dos sacrificados, dos que tudo deram e nada receberam, dos que aprenderam na escola do sofrimento e da luta
e fazem da liberdade democrática a pedra angular em que se firma o vasto direito moderno; é precisamente porque não sabemos mentir aos princípios
que professamos e à consciência dos deveres contraídos, que nos dirigimos ao mais elevado tribunal do País, não para pedir-lhe uma graça em favor de
direitos dinásticos, mas para solicitar-lhe justiça em favor de brasileiros oprimidos.
Para deprecar justiça, para exigir o cumprimento da lei, para reclamar o
restabelecimento das garantias, para pedir o respeito devido ao direito e à liberdade, não é imprescindivelmente necessário que se seja sábio como
Nestor, ou rico como Creso: basta que se tenha independência e brio.
Que queremos nós? Que a verdade constitucional seja uma realidade e não uma ficção;
que se traduza em fatos positivos e não em teorias espetaculosas; que se estenda a todos os membros da comunidade política, e não mantenha exceções
odiosas e ilegais. Que queremos nós? Que a República se eleve acima das vilezas da intolerância e das torpezas da injustiça, para se alcandorar aos
cimos iluminados da liberdade imácula e da verdade augusta; que ponha termo definitivo a prevenções injustificadas, e estenda sua ação protetora a
todos aqueles, grandes e pequenos, que tiveram o berço nesta pátria generosa, onde tudo é majestoso, só é mesquinho o egoísmo dos homens. Que
queremos nós? Que não seja mais digno, mais leal, mais humanitário o estrangeiro, que recebe e agasalha carinhosamente os nossos patrícios, do que a
própria terra do nascimento, a servir-lhes de madrasta perversa e rancorosa.
O que desejamos, o que queremos, o que exigimos, é a força do direito contra o direito
da força, é a República da verdade sobre a mentira da República. Queremos o que querem todos os povos honestos e civilizados: a garantia da
liberdade e o prestígio da lei. Cumprimos assim o nosso dever; saiba cada qual cumprir o seu.
A petição
Ilmos. Exmos. Srs. Presidente e Ministros do Supremo Tribunal Federal - Egrégio
Tribunal - Os abaixo assinados, cidadãos brasileiros no gozo de seus direitos civis e políticos, jornalistas, residentes na cidade de Santos, Estado
de S. Paulo, fundados no art. 340 do Código de Processo Criminal, art. 45 do Decreto n. 838, de 11 de outubro de 1890, e art. 72 § 22 da
Constituição Federal, vêm requerer a esse Egrégio Tribunal ordem de habeas-corpus em favor de Gastão de Orleans, conde D'Eu, e sua mulher, d.
Isabel de Orleans, condessa D'Eu e seus filhos Pedro de Alcântara, Luiz de Orleans e Bragança, e Antônio de Orleans e Bragança, do duque de Saxe,
viúvo de d. Leopoldina, e seus filhos Pedro de Saxe-Coburgo e Augusto Leopoldo, membros da família de D. Pedro II, ex-imperador do Brasil, para que
cesse o constrangimento ilegal de que são vítimas, por força do Decreto n. 78-A, de 21 de dezembro de 1889, que os baniu do território nacional, e
possam gozar dos direitos concernentes à liberdade e segurança individual assegurados a brasileiros e estrangeiros pela Constituição no art. 72.
Em outros termos: pedem a revogação do citado Decreto n. 78-A, de 21 de dezembro de
1889, visto sua inconstitucionalidade, porquanto:
I
Os Decretos n. 78-A, de 21 de dezembro de 1889 (banimento da família imperial) e de n.
847, de 11 de outubro de 1890 (Código Penal) são anteriores à Constituição Federal de 1891, e, portanto, não podem consagrar e manter em vigor
disposições contrárias à lei básica da República, que deve ser considerada o código dos direitos e deveres extensivos a todos os cidadãos que
habitam o território nacional.
O citado decreto de banimento, como a pena idêntica consagrada no art. 107 do Código
Criminal opõe-se ao Art. 72 § 20 da Constituição da República, que expressamente aboliu o banimento judicial, o que tanto importa dizer que tais
disposições, anteriores ao estatuto republicano, são insubsistentes, estão, implícita e explicitamente revogadas, e, portanto, nulas de pleno
direito.
O efeito cessa com a causa. Revogado o decreto de banimento, desaparecem com ele os
motivos que o determinaram, visto como seria absurdo admitir que a conseqüência de um ato subsistisse após a cessação da origem que o determinou. Se
assim não fosse, teríamos de admitir que as leis ordinárias gozavam de autoridade superior à lei constitucional, que é a lei das leis, e que uma
medida tomada em período ditatorial sobrepunha-se à medida tomada em pleno regime constitucional. Em termos simples: se o decreto de banimento ainda
pudesse ser invocado como ato governamental em pleno vigor, chegaríamos ao absurdo de confessar que o Governo provisório valia mais do que o Governo
normal da República e que um ato de caráter transitório, nem sequer sancionado pelo corpo legislativo da Nação, sobrelevava em força e autoridade à
disposição oposta, de caráter definitivo, aceita e votada pela Assembléia Constituinte do País.
Acresce que os atos do Governo provisório não foram aprovados, ou sancionados por
nenhuma decisão daquela Assembléia, e que o fossem, tal sanção não podia ferir os preceitos constitucionais sem inquinar-se imediatamente de
nulidade insanável.
Desde que a Constituição Federal, base de todas as leis, foco irradiador de todos os
direitos e de todas as garantias individuais e coletivas, expressamente revogou a pena de banimento judicial, nenhuma outra disposição, anterior ou
posterior, pode ser invocada para sortir efeitos contrários. Está, portanto, revogado de fato e de direito, o Decreto n. 78-A, do Governo
provisório, que baniu a família imperial do território brasileiro.
Não existindo o delito, a pena deixa de existir.
Efetivamente, ninguém poderá ser punido por fato que não tenha sido anteriormente
qualificado crime, nem com penas que não estejam previamente estabelecidas (art. 1º do Código Criminal); se a Constituição não consagra o banimento,
antes o abole, se ela não traduz um delito nessa medida de rigor, se não há crime, enfim, a punir, como pode ser permitida a pena, ou, antes, como
se pode conceber uma pena para um delito que não existe?
O delito de banimento só poderia existir se a lei constitucional, longe de abolir,
como fez, estatuísse a pena de banimento judicial; desde que expressamente extinguiu a pena, o delito de que ela é conseqüência não existe.
Manter, portanto, os efeitos do decreto de banimento, contra disposição terminante do
estatuto fundamental da República, é incorrer nas penas do art. 179 do Código Criminal, que pune a perseguição exercida contra alguém por motivo
político, e mais do que isso - é fazer prevalecer, pela força, uma disposição revogada, não reconhecida na lei primária, exercendo-se, assim, um ato
de plena ditadura, odioso por seus intuitos e por seus fundamentos.
II
Não colhe o argumento, capcioso, aliás, de que o banimento da família imperial não tem
o caráter judicial que se lhe quer dar, e sim caráter político, e, como tal, subsistente para todos os efeitos até que o Congresso resolva o
contrário.
Onde a lei não distingue não é lícito a ninguém distinguir, e a Constituição Federal,
abolindo a pena de banimento judicial, não consagrou a pena de banimento político.
Desde que não há existência para o delito, não há lugar para a pena.
A Constituição de 24 de fevereiro, dando atribuições ao Poder Executivo para declarar
em estado de sítio qualquer parte da União, quando esteja funcionando o Congresso, limitou-lhe a ação repressora, autorizando-o apenas a decretar a
detenção em lugar não destinado aos réus de crimes comuns e o desterro para outros sítios do território nacional (art. 80 § 2º, nºs 1 e 2);
mas, ainda assim, para que essas medidas tenham justa aplicação, é preciso que os cidadãos atingidos por elas sejam convencidos de se terem
envolvido em fatos que a lei qualificou de crimes políticos, para os quais há penas antecipadamente estabelecidas.
Ora, não consta que o senhor D. Pedro de Alcântara, ou qualquer dos membros de sua
família se tenha envolvido em crimes contra a existência da República, contra a Constituição e forma de seu Governo, contra o livre exercício dos
poderes públicos, contra a segurança interna da República, ou haja tomado parte em conspiração, sedição e ajuntamento ilícito. O decreto que baniu a
família imperial visou antes a segurança das instituições nascentes do que a punição dos representantes da dinastia destronada. Isso mesmo ressalta
das seguintes palavras da mensagem que o chefe do Governo provisório dirigiu ao Congresso Constituinte, em 15 de novembro de 1890:
"Grande vitória, saudada pela Nação inteira, que se associou ao Governo, nos seus
atos de respeitosa correção entre o ex-imperador, que agasalharíamos com o mais estranhado afeto nesta pátria, também sua, se fosse
possível ter-mo-lo como nosso simples concidadão."
Fazemos justiça ao Governo provisório. Foi a contragosto, e antes como medida de
segurança institucional, que notificou o ex-imperador do Brasil a sua retirada e de sua família do território nacional. Na verdade, a permanência do
monarca, naquela ocasião, constituía perigo contínuo à consolidação da nova forma de Governo. O próprio marechal Deodoro, segundo o testemunho de um
conhecido político que serviu como ministro do Interior do Governo provisório, declarou que "talvez fizesse bem triste figura a 15 de novembro, se
lhe surgisse pelo caminho o velho, já sem piquete". A segurança da República era, portanto, precária, e de um momento para o outro poderia
periclitar. A presença do velho era uma ameaça constante a essa segurança, e daí a notificação de retirada que lhe foi imposta e a que ele
obedeceu, cedendo ao império das circunstâncias.
O decreto de banimento, que se seguiu a essa medida de rigor, não é senão resposta
dada ao soberano deposto, que recusou a pensão estipulada pelo Governo provisório, fundado em melindres que, em boa justiça, não podem deixar de ser
reconhecidos como muito respeitáveis; e, portanto, está longe de ser um ato de caráter punitivo estabelecendo pena para crime político,
principalmente quando nenhum elemento concorreu para a existência de qualquer delito por parte da família imperial banida.
Ainda que se quisesse ver nas penas estabelecidas no Código Criminal da República a de
banimento (art. 43, letra b) como pena política, o próprio Código ficaria em divergência com a Constituição Federal, visto que o banimento não
somente inibe o condenado a habitar o território nacional, enquanto durarem os efeitos da pena, como o priva dos direitos de cidadão brasileiro
(art. 46). Ora, a Constituição terminantemente declara que só perdem os direitos de cidadão brasileiro: a) por naturalização em país estrangeiro; b)
por aceitação de emprego ou pensão do governo estrangeiro, sem licença do Poder Executivo Federal (art. 71 § 2º). Apenas por estes dois motivos. Os
antecedentes históricos destas disposições são igualmente frisantes. Tais disposições achavam-se também no projeto de Constituição decretada pelo
Governo Provisório. Apenas da letra b citada foram supressas as palavras condecorações, ou título estrangeiro, e bem assim outras -
por banimento judicial, que figuravam no citado projeto como um motivo a mais de perda dos direitos de cidadão. A primeira emenda foi feita sob
proposta do deputado Bulhões e outros, a segunda se deve à Comissão dos 21. (ARISTIDES A. MILTON: A Constituição do Brasil).
É evidente, portanto, que o pensamento do legislador constituinte foi abolir a pena de
banimento, e por isso não a admitiu como um terceiro motivo de perda dos direitos de cidadão.
Por outro lado, a pena de banimento, como está consagrada no Código Criminal, seria
aplicada ao condenado por ela atingido. Mas quem condena? Evidentemente, o Tribunal Judiciário, por denúncia do Ministério Público. Se estes
dois órgãos da justiça pública intervêm para condenar alguém à pena de banimento, como admitir que haja banimento político? Grosseiro
sofisma! Não há penas políticas; toda a pena deriva de sentença imposta por magistrado, ou Tribunal Judiciário (não são incluídos os crimes
militares e os de responsabilidade do presidente da República). Em política há medidas de repressão e estas estão indicadas ao Poder Executivo nos
casos de suspensão de garantias constitucionais, em virtude do estado de sítio.
Para que existisse banimento político, seria preciso que a lei constitucional
cogitasse da espécie; de outro modo, repetimos, não pode ser inventada uma pena para delito que não existe.
III
Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente (art. 72, § 19 da Constituição); a
responsabilidade penal é exclusivamente pessoal; não há penas infamantes. As penas restritas da liberdade individual são temporárias e não excederão
de 30 anos (arts. 25 e 44 do Código Penal).
Que se verifica, entretanto? A pena de banimento, inconstitucionalmente imposta ao
chefe da dinastia outrora reinante no Brasil, revogada desde que o estatuto republicano entrou em vigor, subsiste ainda como que interditando o
território nacional ao cadáver do ex-imperador. Dir-se-ia que os governos brasileiros temem-se da permanência, aqui, das cinzas do homem que imperou
no País durante cinqüenta anos! Por uma estranha hereditariedade imposta pelos poderes políticos, o banimento que excluiu da Pátria de nascimento o
velho monarca transmite-se à sua família, como se esta devesse também suportar o peso das maldições da intolerância republicana. As penas são
pessoais, não passam da pessoa do delinqüente; entretanto, a expulsão decretada no ato do Governo provisório, e que visava de preferência a pessoa
do soberano decaído, passou para os outros membros da sua família, que se vêem privados de voltar ao seu País, entrar e sair em plena liberdade,
como qualquer cidadão no gozo dos direitos outorgados pelo art. 72, § 10 da Constituição Federal.
Compreender-se-ia esse estranho fato se o autorizasse - admitindo mesmo por absurdo -
uma lei de exceção; mas, revogada a pena de banimento judicial e, conseqüentemente, revogado o Decreto n. 78-A, de 21 de dezembro de 1880, como
explicá-lo em face do art. 72, § 2º da Constituição de 24 de fevereiro, que declara a igualdade de todos perante a lei, visto que a República não
admite privilégio de nascimento e desconhece foros de nobreza? Como explicar esse constrangimento à liberdade individual de um punhado de
brasileiros, em face do art. 78 da mesma Constituição, que declara que a especificação das garantias e direitos nela expressos não exclui outras
garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna? Singular poder, este,
que, sobrepujando a lei suprema da República, prolonga nos membros de uma família destronada o banimento imposto ao chefe, ora morto, dessa família!
IV
Coteje-se esse procedimento com a disposição terminando do art. 72 e § 1º da
Constituição, e ainda se terá a contradição manifesta entre o fato e a lei, entre o constrangimento mantido e a liberdade assegurada. A Constituição
garante a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, e estatui que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.
A lei não permite o banimento judicial, e ele subsiste; não permite que a pena passe
da pessoa do delinqüente, e ela transmite-se deixando de ser - caso o fosse - um ato de justiça para se converter numa vingança covarde; não quer
que se tolha o direito de locomoção, a liberdade de entrar no território nacional, ou dele sair, e uma família brasileira vive exilada, sem poder
voltar à Pátria, que foi constrangida a deixar obedecendo às injunções de uma revolução triunfante; estabelece a igualdade de direitos, de vantagens
e prerrogativas, e uma exceção odiosa se abre e mantém para um pugilo de brasileiros que se vêem segregados, há mais de treze anos, da comunhão
nacional.
Inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual! Mas
como se entende essa liberdade? Como se asseguram esses direitos? A liberdade não consiste apenas em deixar que alguém tenha direito à vida, e,
ainda assim, fora do território de seu país como no caso ocorrente; a liberdade está com o indivíduo ir e vir, sem peias nem exceções, gozar das
vantagens asseguradas a todos os cidadãos, partilhar das obrigações que lhes cabem, tomar parte nos negócios públicos, eleger, ser eleito, concorrer
com o seu esforço e o seu patriotismo para o progresso da Nação e para a felicidade do povo; não somente a liberdade física, mas também a liberdade
psíquica - a liberdade de pensamento e de afeto, a liberdade de consciência, de culto, de palavra, de imprensa, de ensino, de associação, de
reunião, de petição, de profissão - moral, intelectual, industrial - a liberdade em toda a sua plenitude, sem restrições capciosas, sem sofismas
banais, que eleve no indivíduo a consciência da sua dignidade e o torne apto a entrar no convívio dos povos cultos.
A segurança não se estabelece pela falta do apoio legal, pela ausência da justiça,
pela inaplicação dos direitos outorgados a um indivíduo, a uma família, a um grupo, a um partido; não é desconhecendo à família imperial banida os
direitos constitucionais expressos e insofismáveis que lhe dá a segurança de que precisa para entrar, em esfera igual, na comunhão brasileira. A
segurança se estabelece e se considera como a garantia real e efetiva, quer da liberdade quer dos outros direitos naturais.
Dela pode dizer-se que é o primeiro sentimento do homem, tanto quanto um dos instintos
mais aguçados de todos os animais, pois que se resolve na defesa de si mesmo, na conservação da existência individual, no direito supremo de viver e
não sofrer.
Quimper ensina que a segurança consiste no gozo legal e não interrompido da vida e de
tudo que a ela se refere, inclusive a reputação. Conseguintemente, no estado social, é o direito que o homem tem de ser protegido pelas leis em sua
vida - propriedade, saúde e honra, assim como em todos os outros bens; o de não ficar sujeito à ação benfazeja da lei, mas de seus executores
legítimos; de estar ao abrigo de todo o arbítrio e superior a qualquer violência, também. (A. Milton: op. cit.)
Vê-se que em relação aos membros da família imperial, em favor dos quais se impetra a
presente ordem de habeas-corpus, a doutrina interpretativa e elucidativa do texto constitucional não tem aproveitado, nem aproveita, visto
que para esse punhado de brasileiros o Governo republicano mantém rigorosamente uma lei de exceção, que aliás não existe. Se não está aqui
amplamente caracterizada a perseguição política, aliás punida pelo Código Criminal, não sabemos que elementos mais apropriados possam frisá-la.
V
Por último: a prova irrecusável, positiva, esmagadora, de que não existe na legislação
brasileira a pena de banimento, político ou judicial, como queiram os sofistas ou os obstinados, foi dada recentemente por esse Egrégio
Tribunal no julgamento definitivo do crime de conspiração imputado a membros do partido monárquico em São Paulo, julgamento que não só elevou os
intuitos e fins da justiça pública, como firmou a verdadeira interpretação da lei, mascarada e burlada pela chicana ao serviço da intolerância
partidária.
São igualmente valiosos e concludentes os motivos expressos no Decreto n. 1.037, de 19
de novembro de 1890, que revogou o banimento dos cidadãos Afonso Celso de Assis Figueiredo e Carlos Afonso de Assis Figueiredo e o desterro do
cidadão Gaspar da Silveira Martins.
Essas medidas de rigor, confessa-o o próprio Governo provisório, foram adotadas no
"intuito de acabar quaisquer causas que, durante a obra de consolidação das nascentes instituições republicanas, pudessem perturbar a ordem e a paz
internas, que saíram inalteradas dos gloriosos acontecimentos de 15 de novembro; como, porém, estavam à época do decreto, dissipados todos os
receios que determinaram aqueles atos de exceção, entendia o Governo que não deviam "cidadãos brasileiros continuar a sofrer em sua liberdade um
constrangimento, que muitos políticos exigiam e justificavam", porém não mais tinham razão de ser.
Idênticos motivos militam em favor dos pacientes.
O decreto que os baniu representa uma medida de ocasião, embora inspirada no pretexto
da recusa, por parte do ex-imperador, do subsídio de 5.000:000$000 estipulado pelo Decreto n. 2, de 16 de novembro de 1889, para estabelecimento de
sua família no estrangeiro. Ainda aí, como no Decreto n. 78, de 21 de dezembro daquele ano, o Governo provisório confessou que "por mais
constrangedora que fosse a necessidade de recorrer a medidas rigorosas, das quais resultassem limitações ao princípio da liberdade individual, não
se podia, contudo, subordinar o interesse superior da Pátria aos interesses individuais" ou dinásticos dos presumidos inimigos dela.
Os termos corteses da notificação de retirada ao ex-imperador, revelando o próprio
constrangimento de quem impunha essa medida determinada pelas circunstâncias, prova ainda que se não tratava de uma pena infligida à família
destronada, mas de uma ação de momento, revogável mais tarde, quando desaparecessem os receios, então existentes, sobre a consolidação das novas
instituições.
Se esses receios já não existiam quando foi revogado o banimento dos cidadãos Afonso
Celso de Assis Figueiredo e Carlos Afonso de Assis Figueiredo e o desterro do cidadão Gaspar da Silveira Martins, com maioria de razão não existem
hoje, após doze anos de regime constitucional e absoluta confirmação das instituições triunfantes.
Não serão, pois, os cadáveres dos monarcas depostos, nem os membros sobreviventes da
família imperial, que farão periclitar a atual forma de Governo, para que ainda continuem banidos da Pátria e estigmatizados no próprio túmulo os
que a fatalidade do nascimento elevou ao trono da dinastia de Bragança.
Que ao menos a Pátria republicana não seja ainda mais inclemente do que as nações
estrangeiras, que acolheram e confortaram na desventura a família imperial.
VI
Por conseguinte:
Se a Constituição Brasileira assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e à segurança individual (art. 72); se ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 72, § 1º); se o direito de locomoção é assegurado por lei (art. 72, § 10º); se a pena de banimento
está abolida (art. 72, § 20); se a lei é igual para todos (art. 72, § 2º); se nenhuma pena vai além da pessoa do delinqüente (art. 72, § 19); se
ninguém pode ser perseguido por motivo religioso ou politico (Código Penal, art. 179); se ninguém pode ser punido por fato que não tenha sido antes
qualificado crime nem com penas que não estejam previamente estabelecidas (art. 1º); se não há lei que qualifique crime o fato de ser alguém filho,
neto ou sobrinho do sr. D. Pedro de Alcântara - é evidente que o Decreto n. 78-A, de 21 de dezembro de 1889, constitui, hoje, um constrangimento
ilegal de que são vítimas os membros da família destronada.
Dar-se-á o habeas-corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente
perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder (Const. Federal, art. 72 § 22).
No caso ocorrente há manifesta coação à liberdade individual por excesso de
autoridade, por abuso de poder, visto como os pacientes, ainda sob a pressão ilegal do decreto que os baniu, estão impedidos de entrar no território
nacional, de participar dos direitos e deveres estabelecidos e assegurados a nacionais e estrangeiros.
Nestes termos, os suplicantes, afirmando sob sua palavra de honra a verdade de quanto
alegam e que consta dos decretos e leis acima citados; afirmando, ainda, que o presente pedido tem por fim o restabelecimento dos direitos que se
prendem à liberdade individual e que estão plenamente assegurados pela lei fundamental da República; afirmando, enfim, que o intuito dos suplicantes
é ver elevadas as instituições vigentes sobre o pedestal da verdade e da lei - base suprema de todos os benefícios que podem gozar os povos cultos -
pedem, confiantes, a esse Egrégio Instituto, em nome da própria dignidade nacional, faça completa e merecida justiça.
Santos, 3 de janeiro de 1903.
(aa) Urbano Sampaio Neves
Olympio Lima
Alberto Veiga
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