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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - OS ANDRADAS - BIBLIOTECA
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Portugal e o Ocidente nos séculos XVIII e XIX

Esta é a transcrição da obra Os Andradas, publicada em 1922 por Alberto Sousa (Typographia Piratininga, São Paulo/SP) - acervo do historiador Waldir Rueda -, em sua Introdução fundamental, com ortografia atualizada, que aqui continua (páginas 52 a 63):
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Carta topográfica da Capitania de S. Paulo e seu sertão, no penúltimo quartel do século XVIII (existente no Museu Paulista). Clique na imagem para ampliá-la.
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II - Exame sintético da situação luso-brasileira, no transcurso do século dezoito para o décimo nono século

[...]
O Brasil perante Portugal

Não escassas razões sobravam, pois, aos paulistas, para ostentarem perante os portugueses, de cá ou de lá, o vivo orgulho que tinham de ser brasileiros - porquanto, para eles, o Brasil era a obra capital de seu esforço, da energia da nova raça que pelo cruzamento se formara aqui [45]; e a sua tarefa não estava ainda definitivamente terminada a esse respeito.

Não mais havia sertões ignotos para descobrir, índios rebeldes para combater, rios misteriosos a transpor, invasores audazes a expulsar. A terra estava finalmente e felizmente conquistada. Mas cumpria-lhes agora cuidar do homem que nela habitava, da sociedade que com ele progredia, do seu conforto, dos seus direitos e das suas aspirações.

O deprimente espetáculo que lhes oferecia a mãe-pátria, decaída de seu fastígio e crédito de outrora, aviltada por seus governos incapazes, escarnecida pelo mundo inteiro, dominada por tropas invasoras que tripudiavam sobre tantos séculos de glórias imarcessíveis e tradições imortais; reduzida, em suma, à triste condição de mera colônia inglesa [46] - levara-os, como ainda há pouco dizíamos, a estabelecer naturalmente uma justa confrontação entre esse estado crônico de invalidez comatosa e a superioridade do seu prolongamento americano que, apesar de todos os entraves opostos pela metrópole, prosperrimamente se desenvolvia - adolescente de robustas formas evoluindo para o másculo esplendor da idade adulta.

Está claro que não era só o frisante contraste entre aquela decadência e este vigor o único fator de vulto a influir na disposição de ânimo dos paulistas em particular e dos brasileiros em geral.

As nossas próprias condições coloniais, melhoradas eventual e passageiramente em épocas anteriores, iam-se tornando cada vez mais intoleráveis. Não eram somente as exorbitantes imposições de um fisco extorsor e ladravaz que sugava parasitariamente a maior e melhor porção de nossa vitalidade, provocando até sanguinolentos conflitos com os povos que reagiam contra essa pilhagem cruel e desabusada [47]; não era só o total aniquilamento de nossas promissoras indústrias agrícolas, extrativas e manufatureiras, em proveito das similares que no reino havia e cujos produtos tínhamos que adquirir forçadamente, pagando por eles muito mais do que custavam iguais gêneros de nossa produção ou fabrico; não era a dupla obrigação que nos impunham de exportarmos para lá, a preços irrisórios, para o abastecimento da metrópole e comércio dela com as outras nações da Europa, aquilo que lhes fosse necessário, e de importarmos de lá, a preços espoliativos, mercadorias inferiores, em Portugal produzidas, ou então enviadas aos nossos portos, mercê de seu oneroso intermédio, pela Inglaterra e mais povos comerciais e industriais; não era a escassez quase absoluta de meios regulares de comunicação das capitanias entre si, e entre elas e o velho reino; não era apenas esse conjunto, aliás formidável, de razões, que despertava nos colonos do Brasil, e sobretudo na forte raça paulista, a idéia, cada vez mais viva e mais generalizada, da nossa completa emancipação política.

O que nos afastava progressivamente de Portugal era, principalmente, a denegação de justiça aos brasileiros; o seu não aproveitamento nos cargos públicos da colônia, onde os naturais dela excediam em competência e moralidade aos funcionários despachados da metrópole, geralmente ignorantes e venais; era a imoralidade campeando impunemente em todos os departamentos de uma administração interna ao mesmo tempo retrógrada e anárquica; era a falta de liberdade pessoal e profissional, pois todas as iniciativas dependiam de licenças, provisões e regulamentos vindos do reino; era a falta de defesa eficiente de nosso território, de nossos lares, de nossas riquezas; era, numa palavra, o abandono em que vivíamos, à margem de uma nova civilização que repontava sob os auspícios das doutrinas livres que a Enciclopédia elaborara na França e derramara generosamente pelo mundo inteiro, idéias que, muito embora caídas em descrédito, em conseqüência da funesta reação bonapartista, constituíam ainda a esperança bendita e consoladora dos povos escravizados.

Alexandre de Gusmão

Não há dúvida que o nosso regime colonial tinha passado por favoráveis modificações, mais episódicas do que sistemáticas, durante o reinado de d. João V, de que era secretário privado e ministro do Ultramar, Alexandre de Gusmão, que às suas luzes científicas aliançava a argúcia diplomática, a competência administrativa e a sabedoria política.

Esse grande filho de Santos - um dos maiores varões de nossa história, no passado como no presente - prestou ao Brasil serviços inesquecíveis durante todo o período em que permaneceu com assento nos altos Conselhos da coroa lusa. Atendendo ao clamor unânime das populações aqui estabelecidas, melhorou a nossa vida singular ou coletiva, discriminando as atribuições das autoridades administrativas e das judiciárias, de modo a tornar mais acessível a Justiça e o governo civil menos despótico.

Essas alterações, a que se juntou pouco depois a divisão da Capitania de S. Paulo e Minas em duas, porque a sua exorbitante extensão não permitia um governo regular, deram causa a que, na esfera da administração eclesiástica, também importantes modificações se operassem, com a criação do Bispado do Pará, separado do do Maranhão e dos de S. Paulo e Mariana, desligados da obediência ao do Rio de Janeiro.

Ainda foi ele quem substituiu por um processo mais eqüitativo e menos bárbaro o sistema até então autorizado da percepção do quinto do ouro, sistema brutal de cobrança executiva por meio de busca de seqüestro, de vexações de toda a sorte que não raro explodiam em movimentos sediciosos [48].


Marquês de Pombal
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O marquês de Pombal e sua política

A ditadura do marquês de Pombal, inaugurada pouco depois, produziu excelentes resultados para o Brasil, se a encararmos debaixo de um ponto-de-vista genérico, sem descermos a pormenores desnecessários ao nosso objetivo principal.

A verdade, porém, é que alguns de seus atos foram de franca hostilidade à política de Alexandre de Gusmão; e outros se inspiraram menos no efetivo zelo pelos interesses da colônia do que nas hábeis manobras indispensáveis ao fortalecimento da política pombalina que girava essencialmente em torno deste problema capital: a restauração, dentro e fora do reino, da decaída autoridade real do soberano.

Essa política serviu, a um só tempo, para subtrair o país, durante a direta duração do reinado josefino, à direta dominação britânica que o deprimia aos olhos do povo e da Europa, e despertar novamente, no desiludido coração dos lusos, a veneração devida a seus monarcas; e, nas Cortes estrangeiras, o sentimento de respeito a que fazia jus a independência de uma pátria amiga.

Atos praticou Pombal em relação ao Brasil, que mereceram a categórica desaprovação dos brasileiros e que não foram de molde a atenuar as recrescentes antipatias que deste lado se avolumavam contra a metrópole. Outros, porém, imprimiram favorável impulso ao progresso da colônia. A incorporação, à Coroa, de todas as capitanias que ainda tinham donatários, e de cujo domínio os expropriou por meio de concessões de títulos, de pensões ou rendas, é um desses atos beneméritos.

De pura benemerência também seria o que mandou preferir, para a navegação entre o reino e o Brasil, os navios construídos aqui, se de tantas e tão vexativas formalidades e exigências se não revestissem as concessões a respeito, a ponto de se levantar um coro de reclamações e protestos de todos os lugares de nossa costa marítima onde a indústria das construções navais se estabelecera.

A instrução primária também recebeu dele carinhosas atenções; entretanto, os impostos cobrados, mas não totalmente aplicados para tal fim, mais aumentavam as dificuldades com que os colonos, de longa data, vinham vivendo, obrigados a contribuir com certas cotas, irrisoriamente chamadas voluntárias, que o reino criava, determinando previamente o quantum mínimo de cada uma (a voluntariedade consistia, por certo, ao espontâneo aumento desse quantum mínimo...) para despesas luxuárias com enxovais de príncipes que se casavam e para aplicação arbitrária em obras públicas que não nos aproveitavam em coisa alguma, como a gigantesca reconstrução de Lisboa, após o terremoto que quase totalmente a destruiu.

Argumentou Pombal o efetivo das tropas lusitanas estacionadas aqui, dest'arte garantindo a estabilidade da ordem interna, e provendo à segurança, não só de nossas linhas fronteiriças, abertas a possíveis incursões de vizinhos contumazes em tais façanhas, como também de nossa extensa faixa litorânea, desguarnecida de qualquer defesa militar capaz de ampará-la realmente contra as perigosas surpresas vindas dos lados do mar, freqüentes numa quadra em que as nações européias se entre-guerreavam encarniçadamente, estendendo suas bélicas operações até os territórios coloniais.

A criação do Vice-Reinado do Brasil, com sede na cidade do Rio de Janeiro, foi um dos atos que mais agradaram aos naturais do país pelos evidentes benefícios de toda a sorte que decorreriam, e de fato decorreram, da instituição desse elevado cargo administrativo que tanto concorreu para a formação de nossa futura homogeneidade política.

Ainda nos deu outras demonstrações positivas de sua cordialidade para com a colônia, chamando, para ocuparem cargos de não pequena responsabilidade na alta administração, brasileiros que por seus méritos se distinguiam entre os filhos da metrópole. José Basílio da Gama foi seu oficial de gabinete e consagrou-lhe, até depois de sua queda política, a mesma afetuosa amizade e profunda admiração que dantes lhe tributava.

A fundação das Companhias de Comércio e Navegação teve na época, e tem até hoje, apologistas e adversários. Não há dúvida que as concessões decretadas em favor dessas companhias propunham-se a concorrer para o fomento, não só da indústria construtora de navios, como do plantio, em larga escala, do algodão e do arroz, culturas muito rendosas e que tão bem se adaptavam ás terras férteis do Maranhão.

Mas é indubitável também que semelhantes concessões não passavam de monopólios odiosíssimos, que nos obrigavam a comprar das companhias concessionárias, a preços excessivos, as mercadorias que do reino traziam os seus navios, e a vender-lhes pelos preços ínfimos que elas nos ofertavam, os produtos de que o povo de lá precisava para seu consumo e para a revenda comercial, bastante lucrosa, a outros países; e ainda por cima os pagamentos ao produtor não eram efetuados em moeda corrente e sim em apólices que era forçado a receber como dinheiro, e que sofriam constantes depreciações no movimento geral das transações efetivadas [49].

Esse ato de Pombal obedeceu, portanto, ao que nos parece, não ao desejo de ser útil à metrópole e seu anexo americano, sob o ponto de vista meramente comercial, mas ao firme e aliás justificável propósito de subtrair gradativamente Portugal à suserania que sobre ele a Inglaterra vinha exercendo desde muito tempo.

As Companhias de Navegação visavam transferir para os portugueses o comércio que estava, quase totalmente, enfeixado nas mãos dos súditos britânicos, estabelecidos no reino [50]. E a prova cabal de que elas não corresponderam aos aparentes fins, para que foram criadas, é que o mesmo Pombal cassou-lhes as concessões, diante das reclamações e protestos de todos os prejudicados.

Assim, pois, não obstante a índole, a certos aspectos francamente progressista e liberal da ditadura pombalina, os brasileiros continuaram, como nos governos anteriores, a suportar a contragosto um regime que, mesmo quando dirigido por um estadista de gênio, de pulso e de capacidade, era impotente para impedir que explodisse a revolta que em cada coração lavrava, propagando-se aos outros corações.

***

D. José I
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Dona Maria Primeira. Política de reação

Com a morte de d. José 1º e a queda do seu grande ministro, as condições da pátria portuguesa pioraram consideravelmente, e, por conseqüência, as coisas brasileiras mudaram radicalmente de feição. O governo que se lhe seguiu, de d. Maria 1ª, inaugurou uma política de ostensível reação contra a política liberal do governo de seu pai; e o Brasil foi perdendo, aos poucos, as minguadas regalias que com tamanho esforço havia alcançado nos dois reinados anteriores.

A nova rainha era dotada de coração magnânimo, de alma piedosa e de aguda inteligência, realçada pelos preciosos ornatos de uma educação primorosa. Gostava de praticar o bem, de proteger a miséria e de atenuar aos réus penalidades impostas pelos magistrados; cultivava a música e a pintura e dava o devido apreço à Poesia [51].

Pela docilidade de sua natureza e pela variedade de seus talentos, poderia ter aumentado as glórias de sua dinastia se prosseguisse nas normas governamentais iniciadas e mantidas por d. José.

Infelizmente, porém, entregou-se de corpo e alma à direção dos espíritos mais retrógrados de sua Corte, os quais, dando arras de suas prevenções e de seu ódio retrincado ao marquês de Pombal, que tão ilustremente servira à causa do povo e à dignidade da Casa de Bragança, promoveram toda a sorte de hostilidades aos atos de maior benemerência daquele insigne estadista, a ponto de conseguirem, quase ao alvorecer do século XIX, aos prelúdios sintomáticos da Revolução Francesa, o restabelecimento da Inquisição que, no reinado anterior, fora, como excrescência perigosa, energicamente extirpada da sociedade.


Dona Maria Primeira
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Prelúdios separatistas. A Inconfidência

A concentração monocrática do poder nas mãos da autoridade real - um dos maiores triunfos da ação de Pombal - desfazia-se de novo; as atribuições majestáticas outra vez se enfraqueciam, dispersas entre os conluios palacianos que disputavam as posições de comando junto à rainha, mais propensa às meditações religiosas do que às cogitações políticas, mais afeita a repassar entre os dedos patrícios as leves contas do seu rosário do que a manejar as rédeas da governação.

A anarquia voltou, pois, à metrópole; e na colônia americana o espírito de independência reanimou-se. A Inconfidência Mineira, afogada no sangue de Tiradentes, é o movimento prenunciador de que a emancipação está prestes a passar das abstrações doutrinárias, puramente idealísticas, para o terreno concreto das realidades positivas.

Entrementes, acossado por terra pelos até então invencíveis exércitos franceses, bloqueado por mar pela armada britânica, achava-se Portugal num verdadeiro beco sem saída. Se se aliasse à França, obedecendo às duras imposições do usurpador imperial, teria que ajustar severamente contas imediatas com a Inglaterra; se se conservasse fiel à aliança que com esta nação mantinha, teria que se avir com as tropas napoleônicas em marcha rápida sobre Lisboa.

O príncipe regente

O príncipe regente d. João, que assumira as funções governamentais, em substituição da rainha dona Maria, cujo espírito, na polida expressão de José Bonifácio, perdera sua elasticidade mental [52], sentindo-se incapaz de agir por si mesmo em tão críticas circunstâncias, e não tendo a seu lado um homem que, por seus talentos, experiências e valor patriótico, pudesse aconselhá-lo - tratou de contemporizar com uma e outra nação, ora parecendo ceder à formidável pressão exercida pela França, ora querendo submeter-se incondicionalmente às injunções ditadas pela Grã-Bretanha, sem contudo iludir nenhuma delas, antes pelo contrário, inspirando a ambas um sentimento misto de compaixão e desprezo, pela sua ignóbil covardia e vergonhosa incompetência.

Napoleão não podia adiar por mais tempo o golpe audaz que planejara contra a Inglaterra - único povo que resistia impávido às suas perigosas veleidades imperialistas, e que se tornara o centro e a alma das coligações contra a França.


Napoleão Bonaparte
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Invasão de Portugal

E, para acabar de vez, e prontamente, com as hesitações de Portugal, que se não decidia a aderir ao bloqueio decretado contra o poderoso reino insulano, resolveu conquistar e dividir a velha pátria de nossos maiores. Por um tratado secreto, celebrado em Fontainebleau com a Espanha, Portugal seria retalhado em três partes, cabendo cada uma delas, respectivamente, à rainha da Etrúria, ao príncipe da Paz e à França. O Brasil e as outras colônias seriam eqüitativamente repartidos entre as duas nações signatárias do tratado.

Foi só quando, por intermédio do  comandantes das forças navais inglesas fundeadas no Tejo, teve notícia desse documento, publicado no Monitor, órgão oficial do governo francês; foi só quando soube que os soldados de Junot estavam quase às portas de Lisboa - que o regente, atarantado, planturoso e perplexo, em meio de tantas calamidades acumuladas, aceitou finalmente o alvitre que havia muito lhe tinha sugerido o Gabinete de Londres e que ele teimosamente recusara - o de transferir-se com toda a família para o Brasil, aqui estabelecendo a sede da monarquia e aqui permanecendo até que os acontecimentos europeus mudassem de rumo.


D. João VI
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Mudança da Corte para o Brasil; causas e resultados

Assim se fez para bem da Humanidade em geral e felicidade do Brasil em particular, porquanto a trasladação da monarquia portuguesa para a América produziu dois admiráveis resultados que transmudaram rapidamente a face do mundo.

O primeiro, imediato, foi o declínio da força de Napoleão, pelo completo malogro do bloqueio continental intentado contra a Inglaterra e pela tremenda e heróica reação oposta por todas as classes sociais da altiva Castela às tropas invasoras, até expulsá-las definitivamente da península; o segundo, de efeitos mais remotos, foi a independência do Brasil, para cuja obra poderosamente concorreu d. João VI, praticando atos que prepararam e adaptaram melhor o meio colonial à vitória prática dos sentimentos e idéias que de há muito empolgavam todos os corações patrióticos e dominavam todas as inteligências livres.

Esses atos que, de moto próprio, ou a conselho dos principais varões de sua Corte, praticou o príncipe regente, mais tarde rei, não visavam, sem dúvida, beneficiar especialmente nosso país, como a alguns escritores se afigura, mas fornecer à nova sede da monarquia os recursos de que ela carecia para viver, se não com a pompa e majestade próprias do sistema, ao menos com a folgaçada decência compatível com as atribulações do momento.

Como poderia o regime funcionar com a precisa regularidade, e prover às suas necessidades fundamentais, se não transplantasse para aqui as instituições existentes na metrópole? Se não abrisse às nações amigas os seus portos, dantes só acessíveis aos navios portugueses? Se não instituísse tribunais? Se não fundasse a imprensa régia para a divulgação do que deliberasse o governo? Se não estabelecesse a Repartição do Tesouro, para arrecadar e aplicar os dinheiros públicos? Se não suspendesse a proibição concernente ao funcionamento das fábricas? Se não criasse, finalmente, numerosos empregos para dar ocupação rendosa e certa à turba de palatinos vorazes que com a Casa Real tinham emigrado a contragosto?

A Corte cercou-se do maior conforto que lhe foi possível obter na ocasião, aceitando as ofertas voluntárias que de móveis e prédios lhe faziam as pessoas mais abastadas e forçando as que nada lhe ofertavam, a cederem-lhe, pela força, a uma simples notificação sem forma processual, tudo quanto fosse necessário às necessidades do monarca, de sua família, dos seus insolentes cortesãos e de toda a numerosa famulagem que os tinha acompanhado.

Não tardou muito que, como simples medida indispensável à dignidade, ao decoro, à autoridade do soberano, a colônia fosse guindada, entre exaltações populares, à categoria de reino, em perpétua união com a abandonada metrópole. Os reinóis não ocultavam o seu asco por um povo onde os negros e os mestiços enxameavam, como se não lhes coubesse a inteira culpa da existência desses elementos humanos no país, a cuja história estavam, aliás, incorporados pela parte que tomaram desinteressadamente nas lutas memoráveis em defesa do solo, que o estrangeiro por mais de uma vez invadira.

O rei, e as classes dirigentes que o rodeavam suplicando graças, pensavam, na opacidade de sua inteligência ou na insensatez de seu arbítrio, que estavam construindo voluntariamente uma sólida obra de consolidação indissolúvel com a prática desses atos governamentais, mas, na verdade, eles nada mais eram senão fatores inconscientes de leis naturais que não conheciam e que atuavam para o desmembramento das duas porções do reino, em virtude da tendência moderna para a decomposição das grandes nacionalidades em pequenas pátrias, fenômeno sociológico observado invariavelmente na marcha ininterrupta da civilização ocidental, embora contrariado inúmeras vezes pela intervenção caprichosa da ambição humana que formava a seu bel-prazer arbitrárias aglomerações territoriais e monstruosas unidades políticas que o tempo se incumbiria de desfazer.


General Junot
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Acentua-se o espírito separatista: a Revolução de Pernambuco

A importância a que o Brasil atingiu com sua elevação a Reino Unido, longe de amortecer, excitou ainda mais na alma dos nossos bravos antepassados o sentimento que os levava a desejar a pátria inteiramente autonômica, libertada por completo de quaisquer laços de dependência em relação à metrópole desorganizada.

A Revolução de 1817, que Domingos José Martins chefiou heroicamente em Pernambuco, veio provar que tal sentimento permanecia latente em todos os corações brasileiros e que estes só aguardavam que a oportunidade surgisse para agirem, com ânimo resoluto e indômita braveza, em prol dos ardentes ideais que os fascinavam.

A Revolução Pernambucana foi, pela sua organização metodizada, deveras superior à Inconfidência Mineira, que não passou do terreno abstrato das aspirações, por falta de tempo talvez para sua completa elaboração; e a Inconfidência, por sua vez, embora não travasse lutas materiais, foi um movimento patriótico mais decisivo do que o anterior levante de Felipe dos Santos - simples ato de insubordinação à mão armada contra o governador português de Vila Rica, por mera questão de impostos extorsivos.

Vê-se bem que em cada revolta que sobrevinha o cunho separatista mais acentuadamente se manifestava. A nação entrava na sua última fase cósmica [53], e Napoleão 1º e o príncipe regente foram os dois involuntários obreiros de sua formação.


Tiradentes
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NOTAS:

[45] ROBERTO SOUTHEY - História do Brasil, V. VI, páginas 467-468.

[46] M. MIGNET - Histoire de la Révolution Française, 15e. édition, Ch. XV, p. 317; PEREIRA DA SILVA - História da Fundação do Império do Brasil, Tomo 1, página 32.

[47] FERNANDO LUÍS OSÓRIO - Obr. cit. página 93.

[48] VISCONDE DE S. LEOPOLDO - Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão (na Revista do Inst. Hist. do Brasil, Tomo LXV, pág. 393, ano de 1841).

[49] PADRE GALANTI - Obr. cit. V. III, p. 332.

[50] MATTOSO MAIA - Obr. cit. pág. 207.

[51] JOSÉ BONIFÁCIO - Elogio Acadêmico da Senhora Dona Maria 1ª, na Academia Real de Ciências de Lisboa, em 20 de março de 1817.

[52] Discurso citado.

[53] GONZAGA DUQUE - Revoluções brasileiras, página 76.

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