A casa dos Gusmões na Vila de Santos
Hoje, dificilmente conseguiremos verificar o parentesco da Cidade de nossos dias
com a pequenina vila de outrora. Aquilo que tantas vezes vimos há sessenta anos está diluído no compacto casario da Cidade, sobretudo o do centro da
Cidade. Não mais existe aquele correr de casas velhas que ainda chegamos a conhecer no antigo largo denominado agora Senador Vergueiro.
Os santistas de nossos dias, embora usando os processos mágicos da sua inventiva, não
poderão saber com precisão como teria sido interiormente a casa dos Gusmões.
Faltam testemunhas abonadoras de episódios e coisas do nosso passado. Desapareceram
todos os irmãos do Mestrinho que aqui viveram intensamente. Os membros da família Vieira de Carvalho aos poucos foram rareando. Podemos dizer quase
o mesmo acerca dos Carvalhais, apesar de ainda subsistirem alguns representantes de gente tão distinta.
Diligenciamos, no entanto, conhecer o velho comendador Barnabé Francisco Vaz de
Carvalhais.
Nasceu o comendador Barnabé em 1790, na Vila de Barcelos, no arcebispado de Braga, em
Portugal. Foram seus pais Manuel Francisco Vaz de Carvalhais e d. Maria Joana Rodrigues. Orçava ele pelos seus 22 anos de idade quando veio para
Santos, em 1812. Era bem moço, moço na plena energia da mocidade, favorecido na atividade, econômico e cheio de aspirações a um folgado futuro.
Trazia ademais algum numerário para o seu começo de vida. Enfim, dois anos depois já se encontrava estabelecido na Rua da Praia, 1, bem na esquina
dessa rua com o Largo da Praia ou dos Gusmões.
Tudo naquele homem parecia concorrer para o mesmo fim. Ao ver que já podia montar casa
e constituir família, começou a cortejar uma prendada e rica vizinha, filha do coronel José Antônio Vieira de Carvalho. Demonstrava o jovem, pouco
tempo depois, estar perdido de amores pela gentil jovem. O enlace matrimonial, por isso, não se fez esperar.
No dia 4 de março de 1822, à meia-noite, em casa dos pais da nubente, que ficava na
Travessa da Alfândega Velha, esquina do Pátio dos Gusmões, atualmente Rua Frei Gaspar n. 2, esquina do Largo Senador Vergueiro,
onde está a firma Hard Rand & Cia., houve uma festa de arromba! (Santos Noutros Tempos, pág. 324).
O novo casal, admirado sobretudo pela consonância dos caracteres, passou a residir nos
altos do prédio n. 1 da Rua da Praia - diríamos hoje Rua Tuiuti, 90. No andar térreo ficava o estabelecimento comercial do comendador Barnabé, com
três portas para a R. Tuiuti e três para o Largo dos Gusmões. A prosperidade, como uma sentinela, sentara-se em cada uma daquelas portas!
Eles ali moraram durante longos anos. Sua progênie se constituía de sete mulheres e
três homens. Damo-la em seguida pela ordem de nascimento: Carolina, nascida em 1823; José, em 1824; Gabriela, em 1825; Constantino, em 1826;
Barnabé, em 1829; Josefina, em 1931 (N.E.: SIC: correto é 1831); Elisa, em 1832; Flora, em
1833; Júlia, em 1834; e finalmente Carlota, em 1835.
Dessas pessoas, as que casaram constituíram famílias da mais elevada distinção. Elisa
Barnabé Carvalhais, por exemplo, está no Silva Leme Genealogia Paulista, vol. III, pág. 413.
Os Carvalhais do Brasil procedem dos de Portugal; e estes vão encontrar sua origem no
fidalgo espanhol d. Álvaro Gil de "Carvajal". Os apelidos Carvalhal e Carvalhais são de gente nobre, honrada e merecedora de geral estima. As armas
de ambos são as mesmas. O comendador Barnabé representava em Santos a tradição da família, legada pelos seus maiores. Veio este a falecer em 1867,
contando então 77 anos de idade. Sua viúva, d. Ana Zeferina Vieira de Carvalhais, envelheceu docemente entre os carinhos e as amizades. Finou-se em
1872, contando então 76 anos. Ambos os consortes envelheceram ao mesmo tempo.
Cai a propósito aqui, aquilo que Diogo de Paiva de Andrade escreveu no curioso e
instrutivo trabalho intitulado Casamento Perfeito. Assim se enunciou ele: - "É uma felicidade para o casal quando marido e mulher envelhecem
juntos".
Faz ainda Diogo de Paiva, no mencionado livro, esta advertência: - "Que não haja entre
os casados desconfiança". A essa opinião aditou ele este tópico: - "A confiança que convém que tenham de parte a parte é para conservar a união e
conformidade, porque o dar das mãos antigamente era sinal de firmeza e lealdade, como afirma Marco Tullio e Sebastião Stocamero e ainda entre nós é
hoje vulgar costume", pág. 75.
Anda corrente na tradição que a confiança entre Barnabé Francisco e Anna Zeferina
formava o melhor exemplar de dois corações unidos para sempre. Foi o fiel esposo, por isso mesmo, comparado certa vez a Santo Efrem.
- Qual seria o motivo de tal comparação? - indagará o leitor curioso.
Um trecho do oratoriano Bernardes responderá por nós. Ei-lo aqui: - "Solicitou uma
ruim mulher a Santo Efrem: ele piedosamente astuto, deu-lhe a entender que consentiria, se escolhesse por lugar o meio da praça". (Nova Floresta,
v. 4, pág. 283).
Cumpre-nos explicar o sentido incisivo e preciso do verbo "solicitar"; o clássico
seiscentista usou-o no sentido de requestar, cortejar, procurar coabitar com uma pessoa. A fidelidade do nosso primeiro Carvalhais fez com que
alguém o comparasse a Santo Efrem. Tal procedimento é, sem dúvida, da mais insigne raridade em nossos dias. Certos maridos de hoje, sobretudo quando
casados com mulheres mais velhas do que eles, são via de regra perigosos calaceiros de patroas e criadas. Como estão mudados os tempos e os
costumes!
Revertamos ao ponto principal. Barnabé Francisco Vaz de Carvalhais pelo lado materno
pertencia à família Rodrigues, de Portugal, pois o nome de sua genitora era Maria Joana Rodrigues.
O apelido Rodrigues designa grande número de famílias Rodrigues, de Portugal. Gusmões
pelo lado paterno eram também Rodrigues. Logo, deveriam ser até parentes. A existência de alguns bens do espólio de Francisco Lourenço no patrimônio
do comendador Barnabé constitui presunção de tal fato. A própria casa dos Gusmões, situada no Largo dos Gusmões, aparece no inventário de bens de
Barnabé, cuja sucessão foi aberta no dia 3 de abril de 1867. Caso curioso nos anais forenses de Santos: o inventário do comendador Barnabé só foi
requerido trinta anos após o seu falecimento, vale dizer, no dia 20 de agosto de 1897, sendo distribuído ao Cartório do 3º Ofício.
Assim foi descrita e avaliada nesse inventário a referida casa:
"Uma casa de sobrado na Rua da Praia, 18, com três portas de frente para a Rua da
Praia e três par o Largo dos Gusmões, partindo de um lado com a casa de José Joaquim Moreira Guimarães e do outro com casas dos herdeiros de d. Ana
de Jesus Vieira, avaliada em 8 contos".
Duas entradas tinha portanto a casa dos Gusmões, uma pelo Largo dos Gusmões e a outra
pela Rua da Praia, 18 (hoje Rua Tuiuti). Apresentava a forma de um "L" maiúsculo com três portas em cada extremidade. As portas do Largo dos Gusmões
eram divididas em duas partes. Transformavam-se as portas em janelas quando aberta a parte superior. Isso naquele tempo era bastante comum.
Eis aí a casa dos Gusmões tal qual a encontramos em documentos dos séculos XVIII e
XIX. Se ela ainda existisse hoje, daria, sem dúvida, para um belo museu: o "Museu dos Gusmões". |