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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
Uma escala na Ilha da Madeira - 3

O texto a seguir estava disponível, em 1998, em páginas Web do Centro de Estudos de História do Atlântico (Ceha), na Ilha da Madeira. Essas páginas não mais existem na Internet, mas foram arquivadas por Novo Milênio, que resgata assim para o meio digital o estudo Cinco séculos de Açúcar na Madeira, de Alberto Vieira:

O engenho

A moenda e o conseqüente processo de transformação da garapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projetaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal são a matéria-prima que dá forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos.


Trapiche vertical e trapiche hidráulico horizontal, usados nas Antilhas francesas no séc. XVIII,
conforme descritos por Jean Baptiste Labat em Nouveau Voyage aus iles de l'Amerique (1722)

O ENGENHO NA ÉPOCA PRÉ-INDUSTRIAL. Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o primeiro que temos conhecimento foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Este processo resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água; fez-se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos deste engenho. Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: "Os lugares onde com enorme atividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o suco".

Uma das questões que mais tem gerado polêmica prende-se com a evolução da tecnologia do fabrico do açúcar, concretamente a passagem do trapiche ao engenho de cilindros. O primitivo Trapettum era já usado na Roma antiga para triturar azeitonas e sumagre, sendo, segundo Plínio, inventado por Aristreu, Deus dos Pastores. Mas este tornou-se um meio pouco eficaz nas grandes plantações, tendo-lhe sucedido o engenho de eixo e cilindros.

É aqui que as opiniões divergem. Existe uma versão que aponta esta evolução como uma descoberta mediterrânica: Noel Derr e F. O. Von Lippmann atribuíram a descoberta a Pietro Speciale, prefeito da Sicília; a Historiografia castelhana encara isso como um invento de Gonzalo de Veloza, vizinho da ilha de La Palma, que teria apresentado o seu invento em 1515 na ilha de S. Domingos; David Ferreira Gouveia apresenta esta evolução como resultado do invento do madeirense Diogo de Teive, patenteado em 1452. Outros apontam para a sua origem chinesa. O engenho de três eixos surge mais tarde no Brasil, sendo considerado também uma invenção portuguesa, inegavelmente ligada aos madeirenses aí radicados.

Note-se que a primeira referência aos eixos para o engenho datam já do último quartel do século XV. Note-se que em 1477 Alvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal para que "faça hum enjenho de fazer açúcar que seja de moo ou d'alçapremas, ou doutra arte...o qual enjenho será d'augoa com sua casa e casa de caldeiras...". Depois, em 1485, D. Manuel isentava da dizima "quaesquer teyxos que forem necesarios para eyxos esteos cassas latadas dos enjenhos e tapumes...". Em 1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de "eixos e prafusos pera os enjenhos de açúcar". A isto associa-se o inventário do engenho de António Teixeira, no Porto da Cruz, em que são referidos como aprestos: rodas eixos, prensas, fornalhas, espeques (...).

A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal, como em Arucas, existe uma localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Para São Tomé, o Piloto Anónimo refere o uso dos "braços dos negros e ainda mesmo cavalos". Deste último sistema temos notícia da sua utilização apenas nos primórdios da cultura da cana-de-açúcar na Madeira, sendo pouco provável a sua continuação após a experiência do engenho de água de Diogo de Teive, tendo em conta a disponibilidade de cursos de água e do possível aproveitamento por meio da sua canalização através das levadas.

Já o mesmo não sucede nas Canárias, onde as datas diferenciam os engenhos de água dos de besta. As condições geo-hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás, nesta ilha estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho.

Toda a animação socioeconômica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais fosse sempre sinônimo da presença próxima de um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais. Por outro lado temos casos de alienação destes complexos a outrem, sem qualquer relação com os canaviais. Assim sucedeu em 1546 o convento de Santa Clara arrendou o engenho dos Socorridos, que fora de Rui Dias Aguiar, a Manuel Damil.

Não é fácil estabelecer o número exato de engenhos que laboraram nas ilhas. As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Edmund von Lippermann refere existirem no Funchal 150 engenhos no início do século XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal. A sua localização geográfica permite aferir das áreas de maior incidência da cultura no século XVI.


Trapiches hidráulicos horizontal e vertical, usados nas Antilhas francesas no séc. XVIII,
conforme descritos por Jean Baptiste Labat em Nouveau Voyage aus iles de l'Amerique (1722)

No século dezessete, o número de engenhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração. Esta aposta na cultura levou ao necessário o estabelecimento de alguns incentivos à sua reparação, como sucedeu em 1649. Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos; destes, dois foram construídos em 1650. Daí derivaram, enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava. Ademais, do abandono dos engenhos registrava-se o das levadas, como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada.

Para repor a cultura, a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto por cinco anos. Estes concentravam-se no Funchal e Camara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava.

O aumento da cana para a moenda e a inexistência nos engenhos tradicionais levou a uma situação de ruptura na sua laboração. Perante isto, colocou-se a necessidade de modernização do parque industrial, uma custosa que, por isso mesmo, teve algumas dificuldades em ser concretizada. As iniciativas de modernização, como sucedeu com a Companhia Fabril do Açúcar (1868), foram o principal empenho dos industriais madeirenses.


Engenho a vapor usado na Jamaica no início do século XIX

O engenho na época da revolução industrial

Os séculos XIX e XX marcam o momento da grande inovação tecnológica dos engenhos e da forma de fabrico do açúcar. A revolução industrial foi provocada pela abolição da escravatura e pela crise que atingiu o mercado internacional do açúcar a partir de 1880.

O uso de máquina a vapor teve lugar em Jamaica em 1768, mas foi só a partir de meados do século XIX que a mesma se generalizou. Esta inovação técnica é favorecida pela concentração destas estruturas industriais, resultado de uma política governamental que tem na década de vinte da presente centúria a sua máxima expressão. No Brasil deu origem aos chamados engenhos centrais, enquanto na Madeira foi o princípio da total afirmação do engenho Hinton.

Durante o século XVIII e até princípios da centúria seguinte existiu apenas um engenho em funcionamento à Ribeira dos Socorridos. A partir da década de cinqüenta o panorama é distinto e a cana volta de novo a ocupar um lugar de destaque, ocupando 1/2 da superfície cultivada em 1850. Deste modo aumenta o número de engenhos, sendo referenciadas em 1851 quatro fábricas de refinação de açúcar, quatro engenhos de moer cana e três fábricas de aguardente. Em Câmara de Lobos a cultura teve grande incremento, uma vez que são referenciados três novos engenhos em 1854.

Esta situação alastrou a toda a ilha e levou a promoção de novos engenhos ou à reativação de antigos, uma vez que em 1856 temos já 80 e 10 fábricas de destilar aguardente. Aqui há que distinguir as fábricas de moer cana e os engenhos para fabrico de açúcar e destilação de aguardente. Os engenhos de moer apresentavam duas rodas na disposição horizontal, enquanto os movidos por bois tinham estas na posição vertical.

De acordo com D. João da Câmara Leme o avanço da cultura na ilha só será possível com "a fundação de fábricas com os aparelhos modernos e aperfeiçoados". Enquadrava-se neste espírito a Companhia Fabril de Açúcar Madeirense criada em 1866 e inaugurada em 1873, que se saldou num verdadeiro fracasso e motivo de acesa polêmica.

Por outro lado, é de salientar as iniciativas tecnológicas do próprio D. João da Câmara Leme que, em 1875, apresentou o seu novo invento de aproveitamento do açúcar que fica no bagaço nomeadamente usado por W. Hinton. As inovações introduzidas por este último ocorreram após a licença de 1872 para a construção de uma fábrica de extração e cristalização de açúcar.

A política de protecionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais desta indústria, levando a sua maioria ao encerramento. Em 1934, um decreto estabelece claramente essa situação: proíbe-se a construção de mais engenhos até 1953 e os demais existentes não podiam laborar açúcar, atividade exclusiva do engenho do Torreão, apenas são autorizados os melhoramentos. Pior foi o que sucedeu em 1954 com o decreto que determina a concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três fábricas. Os engenhos do Norte ficaram reunidos na Companhia dos Engenhos do Norte, com sede no Porto da Cruz.


Usina para produção de açúcar de beterraba, em ilustração de 1901

O preço do engenho

O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. De acordo com a avaliação, para inventário, do engenho de António Teixeira no Porto da Cruz, em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em duzentos mil reais. Noutro documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000 reais. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos Socorridos foi avaliado em 500.000 rs e no ano imediato o engenho de Baltasar Varela de Lira foi vendido por 422.000 rs. O primeiro deverá ser o mesmo que em 1780 pertencia a D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena, que o arrendou ao capitão Francisco Esmeraldo Betencourt por 10.000 réis/ano.

Para os séculos XIX e XX, a construção de um engenho para fabrico de açúcar, de acordo com as inovações tecnológicas, era uma aposta impossível para qualquer industrial, caso não fossem garantidos os financiamentos e apoios governamentais. Está neste caso o favorecimento dado ao engenho do Torreão, que levou ao quase monopólio da sua laboração. Daqui resultou que a maioria apostou em manter a tecnologia tradicional, servindo-se da tração animal e da força motriz da água.

A situação arcaica das fábricas de moer cana era intolerável perante o incessante aumento da produção, por isso foi necessária a aposta num estabelecimento moderno, capaz de minorar os custos de laboração e de corresponder à oferta de cana. Enquadra-se neste objetivo a novel Companhia de Açúcar Madeirense, criada em 1868.

Por outro lado, tendo em conta a grande dificuldade do fabrico do açúcar e os elevados custos do investimento, denota-se nesta época dois tipos de complexos: para produção de açúcar e destilação de aguardente. Em meados do século, a distinção entre a moenda da cana, o fabrico de açúcar e aguardente é clara. A partir de então, a tendência foi para a aposta nas fábricas de destilação de aguardente, tendo em conta o atrás referido e o fato da sua procura para o consumo corrente e no processo de vinificação. Destas, temos indicações dos custos da sua instalação. Em 1857 Diogo de Ornelas Frazão gastou 14.300.000 réis na construção de uma fábrica de aguardente no estreito da Calheta e no ano imediato o Conde Carvalhal montou engenho semelhante no Paúl do Mar por 8.800.000 réis.

De acordo com inventário industrial feito em 1863 é possível fazer uma idéia das infra-estruturas existentes e do seu valor:

Data Local Proprietário
Valor do e-quipamento
e edifícios
1856 Ponte Nova (Funchal) Severiano Alberto Ferraz
2.500$000
1856 Torreão (Funchal) W. Hinton
30.000$000
1856 Pico do Funcho (Funchal) Vitorino Ferreira Nogueira
18.000$000
1859  Ponte Deão (Funchal) Joaquim da Silva
5.760$000
1858 Santa Cruz Romero Ornelas Frazão
22.400$000
1858 Machico Manuel Antonio Jardim
3.500$000
1858 Machico João Escorcio da Câmara
3.500$000
1858 Porto da Cruz Candido Velosa de Castello Branco
7.000$000
1859 Arco de S. Jorge Mauricio Castelo Branco & Cº
850$000
1858 S. Jorge Manuel Fernandes Nóbrega
1.000$000
1858 Ponta Delgada Conde de Carvalhal
3.000$00
1861 Ponta Delgada Candido Lusitano de França Andrade e António Fernandes Teles
3.000$000
1860 S. Vicente Caetano António de Freitas
1.200$000
1867 Arco da Calheta Diogo de Ornellas Frazão
14.300$000
1858 Paúl do Mar Conde de Carvalhal
8.800$000
1853 Ponta de Sol Nuno Freitas Pestana
920$000
1855 Canhas Luiz de Bettencourt Esmeraldo
1.000$000
1858 Madalena Freitas Abreu & Cº
11.000$000
1853 Ribeira Brava José Maria Barreto
7.200$000
1854 Câmara de Lobos Tiburcio Justino Henriques
4.500$000
1857 Câmara de Lobos João Figueiredo Quintal
1.900$000
1858 Câmara de Lobos Joaquim Figueira & Cº
2.900$000
1847 Câmara de Lobos Manuel Martins e João da Silva
1.800$000

O ENGENHO E A PRODUÇÃO. Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233 proprietários de canaviais. Estes situam-se todos nas partes do Fundo, não havendo qualquer referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos.

Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de notar que estes proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1.600 arrobas, havendo caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Note-se, ainda, que Fernão Lopes apresentava mais 2.000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI, estes valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1.478 arrobas.

Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o defasamento entre ambos os grupos. Deste modo a distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. Note-se que neste grupo surgem seis com valores superiores a 1.000 arrobas.

Por outro lado, é de salientar que grandes proprietários de canaviais não são sinônimo de engenho. No caso do século dezesseis, alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas, que em 1530 declara apenas 70 arrobas de açúcar no Funchal. Deste modo podemos afirmar que estamos perante duas realidades distintas, que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana-de-açúcar.

No decurso do século dezenove é cada vez mais evidente esta dissociação do engenho dos canaviais: em 1863 temos indicação dos preços de pagamento da moenda da cana e destilação da garapa: por 30 kg de cana pagava-se entre 70 a 90 réis e na destilação de 17 litros de garapa de 100 a 110 réis. Aqui, a média de laboração dos engenhos nos quatro meses da safra era em média de 7.917.241 kg de cana, produzindo-se 117.600 kg.