MONTE CABRÃO, UM PITORESCO RECANTO ENTRE O RIO E O MAR - Com casas simples e apenas 1.200
moradores, bairro que completará 100 anos em julho fica na área continental, a menos de 50 minutos da Cidade, próximo à Rodovia Rio-Santos. O
cenário não poderia ser mais aprazível. Cercado de verde e água por todos os lados, o local é ideal para um passeio de um dia ou durante o final
de semana
Imagem: reprodução parcial da primeira página de A
Tribuna de 24/5/2010
Um recanto cercado de natureza
Ocupado por casas simples e gente receptiva, o bairro que fica às margens do
Canal de Bertioga oferece o sossego da Mata Atlântica
César Miranda
Da Redação
De um lado, rio. De outro, mato. No caminho
de terra, o silêncio preenche o intervalo entre o som do vento ou da chuva e a cantoria dos pássaros pendurados nos galhos das árvores.
Essa sensação acompanha sempre quem mora ou percorre pela primeira vez aquela picada estreita e
acidentada, às margens do Canal de Bertioga. Ali vive parte considerável da população do Monte Cabrão, bairro da área continental, que completa
100 anos de existência em julho.
Localizado a menos de 50 minutos de Santos e a 15 de Vicente de Carvalho, o lugarejo tem quase
1.200 moradores e é a tradução do sossego. A exceção fica por conta dos finais de semana, quando turistas da Capital e do Interior chegam ao lugar
e pegam seus barcos para pescar.
De segunda a sexta-feira, a calmaria reina absoluta. Só é quebrada quando se espera o prestador
de serviço. "Você é o montador de móveis?", pergunta Lucinda Mesquita da Silva, debruçada na janela. "Não, sou repórter".
Orgulhosa do
chão onde nasceu há 43 anos, a simpática mulher dá uma boa risada e conta que nunca morou em outro lugar. "Pensar em sair daqui dá vontade até de
chorar". No bairro, onde escolheu para viver com o marido, ela está ainda cercada da família e de uma árvore carregada de mexerica no quintal de
casa.
Dona Eufrosina, de 74 anos, mãe de Lucinda, diz que se sente no paraíso. Só reclama mesmo em
tempo de lua cheia. O motivo é o mosquito-pólvora, que ela chama de polvinha. O danado é miudinho, preto e atrevido. Sua picada provoca uma
incômoda coceira.
Reencontro - No pitoresco bairro, que possui luz e água, mas ainda depende de muitas
melhorias, Benedito Firmino dos Santos, de 66 anos, morou dos 3 aos 18. Depois, foi ganhar a vida em Santos e Vicente de Carvalho, distrito de
Guarujá. Voltou faz três anos para montar um bar. Nesse retorno, o destino o fez encontrar Lucilene Mesquita, de 41 anos, e assim ter duas
alegrias.
"Quando a conheci, ela era uma menina. Hoje, estamos casados". Ele diz que é mais um motivo para
não sair dali. "O sossego aqui é um preço que não se paga. Notícia de roubo ouvi faz mais de dois anos. Foi alguma coisa sobre peça de barco, nem
lembro mais".
O Monte Cabrão começou a ser ocupado na época da construção da
Usina de Itatinga, em Bertioga. O complexo hidrelétrico completa 100
anos em outubro.
Muitos funcionários da usina, criada para ser responsável pela geração de energia do Porto de
Santos, foram morar no Monte Cabrão para fazer a manutenção das linhas de transmissão que passam ali.
A infra-estrutura do local é melhor do que antigamente, quando não havia escola, posto de saúde,
transporte urbano, energia elétrica e água. Sem muitas áreas de lazer, a diversão é a pescaria ou o campo de futebol, na Rua Principal. Todo
sábado e domingo, acontecem várias partidas.
Moradores mais antigos contam que o nome Monte Cabrão se deve a um homem conhecido como Zé das
Cabras. Figura popular que circulava diariamente pelo morro, o apelido do criador de caprinos foi adaptado.
LOCALIZAÇÃO - Para se chegar ao Monte Cabrão, basta pegar a Rodovia Cônego Domênico Rangoni. O
acesso ao bairro fica próximo da Rodovia Rio-Santos. Quem pretende passar o fim de semana pode se hospedar na Pousada Cantinho da Helena, situada
em frente ao Canal de Bertioga. São 15 quartos simples, mas aconchegantes. A diária custa R$ 50,00 (casal). Outras informações: 3341-5386. Para
fugir da rotina dos centros urbanos, turistas de vários locais costumam procurar o Monte Cabrão, à margem do Canal de Bertioga, para pescar ou
descansar
Foto: Walter Melo, publicada com a
matéria
Creche, um presente esperado
No aniversário de 100 anos do Monte Cabrão, se tem um presente que a comunidade gostaria que a
Prefeitura de Santos anunciasse é a construção de uma creche.
As mães dizem que a creche daria tranqüilidade para que elas buscassem trabalho e ajudassem na
renda familiar.
"Eu, por exemplo, não tenho onde deixar minha criança (Gustavo, de 4 anos) porque moro apenas
com meu marido. E ele ainda trabalha. Se ao menos tivesse família aqui,não me preocuparia", contou Geane Ferreira dos Santos, de 25 anos.
A criação da creche está na pauta de reivindicações da nova presidente da Sociedade de
Melhoramento, Francineide de Souza Santana Silva.
Centro e lanchas - Além do espaço para as crianças, a jovem, de 33 anos, pretende também
pedir ao Poder Público a construção de um centro comunitário e a regularização fundiária.
"Tivemos várias conquistas, graças à intervenção da Prefeitura, como a escola municipal, linha
de ônibus... Esperamos mais uma vez que nos ajude. E quem sabe começando com a creche?".
Ela pede ainda que a Capitania dos Portos fiscalize com mais rigor as lanchas que passam em alta
velocidade no Canal de Bertioga, produzindo marolas que causam erosão nas margens dos mangues.
O ex-presidente da Sociedade de Melhoramentos, Nívio Gonçalves Carvalho, de 58 anos, diz que
esse é um problema antigo.
"E não é difícil flagrar as lanchas em alta velocidade. Basta estar aqui em fins de semana ou
temporada. Se nada for feito, a tendência é diminuir a profundidade do canal em alguns trechos", alerta.
Após retornar ao bairro, Benedito casou-se com Lucilene Mesquita
Foto: Walter Melo, publicada com a
matéria
Caranguejos, garantia de renda
Antigamente, o lugarejo abrigou um número maior de moradores que viviam exclusivamente de pesca,
mariscos e caranguejos. Devido à diminuição de peixes e à facilidade em se chegar até Guarujá e Santos, muitos jovens não quiseram seguir os
passos dos mais antigos. Foram buscar outras áreas de trabalho.
Restaram os mais antigos. Os dois caranguejeiros mais conhecidos do Monte Cabrão são Luiz
Ribeiro e Francisco Balbino da Silva, ambos de 47 anos. Eles nem pensam em largar a profissão, apesar da rotina dura. Diariamente, os dois vão
buscar o sustento da família em alguma parte do mangue no Canal de Bertioga.
A jornada começa às 7 horas e só termina quando a maré enche, tornando impossível a captura de
caranguejos. Os crustáceos são vendidos para restaurantes, pousadas e até clientes individuais que fazem encomendas.
"Ele gosta do que faz. Eu costumo ficar aqui em terra firme limpando caranguejo, atendendo
telefone e fazendo entrega. Sou uma secretária de luxo", sorri Ladi Maria Kochinsky, mulher de Luiz, carioca de nascimento.
Eles se conheceram em Iguape, terra natal de Ladi. Trabalhando juntos, se apaixonaram. Ela
queria ficar por lá. Ele gostaria de voltar ao Rio. Para não entrar em desalinho, o casal fez um acordo e ficou no meio do caminho (Monte Cabrão)
para tocar a vida em harmonia.
Lucinda e a mãe adoram o sossego local. Ladi cuida dos caranguejos
Fotos: Walter Melo, publicadas com a
matéria
Depoimento de Lídia Maria de Melo
"Lecionei na casa de pedra"
Fui professora no Monte Cabrão em 1977, aos 19 anos. A escola funcionava em uma casinha de
pedra. Tinha apenas uma sala, um banheiro e uma minúscula cozinha. Chamava-se Escola Isolada do Monte Cabrão e era vinculada ao colégio estadual
da Base Aérea, a Marechal do Ar Eduardo Gomes.
O ônibus procedente de Guarujá me deixava na então Rodovia Piaçagüera, após a ponte alta, à
direita, e seguia para Cubatão. A casinha de pedra situava-se à esquerda. Eu passava por um caminho de terra embaixo da ponte, contornando o
mangue.
Ali, quando trovejava, os caranguejos eram alvos fáceis dos catadores. E eu era alvo de
mosquito-pólvora e borrachudo. Precisava usar repelente. Mesmo assim, eles picavam meus lábios, que inchavam.
Eu lecionava no período da tarde. Havia quatro fileiras de carteiras na pequena e única sala de
aula. Cada fileira abrigava uma série, da 1ª à 4ª. Todas no mesmo horário. Eu precisava preparar atividades diferenciadas, para poder, ao mesmo
tempo, dar atenção a todos e me revezar entre as turmas.
O lugar parecia um sítio. Passarinhos cantavam nas inúmeras árvores frondosas. Em seus galhos, a
criançada armava balancê de corda na hora do recreio.
As crianças vinham do outro lado da ponte, do próprio Monte Cabrão, do Caruara, do Caiubura e de
locais de que nem me lembro. Com freqüência me presenteavam com frutas, como banana-da-terra.
A área era protegida por um funcionário da Companhia Docas, que morava em uma casa amarelada no
alto de um monte. Sua mulher, dona Cilene, preparava a merenda enviada pela Prefeitura de Santos.
Uma vez, com a professora da manhã, fizemos uma visita à Usina de Itatinga. Um rebocador nos
pegou no portinho e seguimos pelo Canal de Bertioga, nos deslumbrando com a beleza daquela região. Em outra ocasião, formei um coral com os alunos
e cantamos em uma missa celebrada numa indústria situada na Piaçagüera.
Não me recordo do nome de todos. Havia a Lucilene, apelidada de Lelê, que tinha cabelo
louro e olhos claros; o Edson, franzino e esperto; e Valdeci. Toda vez que eu dizia: "Que calor!", Valdeci respondia: "Vou nadar!", repetindo a
frase de um texto do livro de Português.
Um outro menino, de 7 anos, cuja fisionomia ainda é viva em minha memória, um dia me
surpreendeu. Na hora da leitura da cartilha, em minha mesa, não titubeou diante do texto. Eu lhe perguntei: "Com quem você aprendeu a ler?"
Admirado, ele foi rápido na resposta: "Com a senhora, professora!".
Foi ali, no Monte Cabrão, que descobri a importância da minha primeira profissão.
Lídia Maria de Melo é editora-coordenadora de Baixada Santista |