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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SEU BAIRRO/mapa
Vila Nova e a ironia dos contrastes (4)

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Publicado em 29/7/1982 no jornal A Tribuna de Santos

 Leda Mondin (texto) e equipe de A Tribuna (fotos)

 


Vovó Benedita abriga crianças sem receber qualquer ajuda oficial;
sempre calma e sorridente, diz que se sente "feliz, feliz, feliz"

Uma avó para essas crianças do mundo

Nada como o aconchego dos braços de Benedita. Ou melhor, de vovó Benedita, porque é assim que as crianças chamam aquela mulher de 60 anos de idade que dedica sua vida a acolher e criar filhos de prostitutas.

Faz seu trabalho no anonimato, não recebe ajuda oficial, mas não falta quem doe leite, alimentos, roupas e brinquedos. "É Deus quem me ajuda, se não eu não conseguiria", diz ela, sem em nenhum momento resgatar para si qualquer mérito pelo que realiza. Mas não há como negar as virtudes dessa mulher, se é que existem adjetivos capazes de traduzir o que faz.

Sua vida se resume ao vaivém entre os berços, a troca de fraldas num menorzinho ou afago na cabeça de outro que chora pedindo atenção. Benedita caminha com dificuldades pelos cômodos do casarão de número 171 da Rua Bittencourt, não tem a vitalidade de outros tempos, mas a disposição de cuidar das crianças cresce a cada dia.

"Enquanto eu puder mexer as pernas, tratando delas", comenta com ar satisfeito. Não pensa em cinema, em praias ou festas. "E olha que eu era uma nega assanhada", diz, explicando que gostava de festas e bailes.

Vovó Benedita já perdeu as contas de quantas crianças ajudou a criar. E não é para menos, porque aos sete anos de idade já trabalhava em casa de família e, apesar de tão criança, era mãe de todos os filhos. Não brincava, não saía à janela, não conversava com ninguém.

Casou-se na mocidade, teve cinco filhos, mas todos morreram. "Deus não quis que eu criasse os meus", comenta sem constrangimento e satisfeita porque muitos adotivos saíram de sua casa para casar.

Atualmente vovó Benedita divide sua atenção entre 27 crianças, entre dois meses e oito anos de idade. A natureza na certa dotou-a de muita garra e paciência, porque quando todos cismam de chorar juntos, ela nem se incomoda. "Se não estão machucados, não sentem dor nenhuma, não há motivo para se preocupar", diz com a tranqüilidade de uma mãe que sabe exatamente o que cada filho quer e precisa.

Sua maior preocupação é uma menina surda-muda, de cinco anos de idade, que a mãe abandonou há quatro anos. Para a menina, mãe é a Benedita, que a leva ao médico, alimenta e faz carinho. Apesar de não falar e ouvir, a garota percebe a simples aproximação de Benedita, sorri e estica os braços quando pergunta: "Minha menina quer passear?"

Algumas crianças acabam retornando para o convívio da mãe, outras são adotadas e Benedita relembra todas com carinho especial. Seu pensamento voa longe e ela vai citando o nome de meninos e meninas, conta onde estão agora e quais suas idades. E não esconde o sorriso de satisfação quando diz que Janaína, a Pita, se enche de razão e ameaça voltar para a casa da avó sempre que a mãe lhe dá broncas. Benedita manda presentes, Pita agarra forte e passa o tempo todo com eles nos braços.

Mas há um caso mais sério que demonstra bem o que Benedita significa para essas crianças. É a história triste de Patrícia, que ela acolheu logo nos primeiros dias de vida. A menina foi crescendo, chamava Benedita de mãe e, espertinha como ela só, anunciava a chegada do Zé, carregador de marmitas. Gostava também de tirar toda a roupa do cesto e olhar com jeito maroto para a lavadeira Zezé.

Quando Patrícia tinha dois anos, a patroa da mãe achou de transferi-la para uma instituição de caridade, como disse que faria desde que a criança nasceu. Mas o mundo que a garota amava e conhecia era o da mãe Benedita. Foi levada embora, chorou 24 horas seguidas e nunca mais falou.


Crianças como essas já ajudam no sustento da família

Abandono e trabalho aos cinco anos de idade

Wellington tem apenas cinco anos de idade e já está na luta por dinheiro. Uma luta travada diariamente e por dezenas de menores que perambulam ao redor do Mercado Municipal. São crianças que enfrentam a violência do abandono, da fome, de uma vida marginalizada, ajudam no sustento da família e não têm tempo para as brincadeiras da infância.

Mal o carro se aproxima, Wellington corre em direção a ele. Quando o motorista encosta, depara com aquela coisinha miúda e de olhos arregalados, perguntando: "Posso tomar conta, moço?"

Seja qual for a resposta, volta sério e se esquiva de maiores conversas. Nunca se vê um sorriso naquele rostinho encardido e não é difícil compreender o motivo: o menino mora precariamente, não tem brinquedos, passa fome, sente medo e não sabe a quem recorrer, tem na televisão sua única alternativa de lazer e vive solitário em uma casa cheia de gente, porque não consegue manter diálogos com os pais ou irmãos. O quintal da casa é de cimento, sem árvores, e o espaço pequeno demais para caber um bicho de estimação.

Não freqüenta escola e todo o dinheiro que ganha entrega para a mãe. Seus olhos atentos parecem não ver nada além do que os veículos que encostam e saem. É preciso garantir mais serviço e abordar os motoristas que retornam.

O shorts de malha larga quase chega ao joelho, caído que está abaixo do ventre proeminente. As mãos hábeis enrolam as notas de Cr$ 10 que acaba de receber. Dobra bem direitinho e esconde de um jeito que moleque ou malandro algum possa ver. Às vezes acontece disso: os maiores tomam o que os pequenos conseguiram arrecadar. Tudo ocorre em segundos, e a regra do jogo é não chorar ou reclamar.

"Que é isso no pé?". A pergunta o pega de surpresa e ele tenta ocultar os dedos roídos, inchados e grosseiros. Não consegue, resolve encarar a situação de frente e responde: "É frieira". Frieira que o atormenta de tanto coçar, arde muito quando cai água e o impede de calçar sapatos ou chinelo. Sem nada para proteger os ferimentos, é preciso escapar das poças de água, das pedras e esquecer a dor.

Aquela conversa toda o chateia e ele na certa estranha o fato de alguém se preocupar com ele, querer saber da sua vida. Chega outro automóvel, ele sai correndo e já não volta para o mesmo lugar. Basta de tanta indagação.

Wellington é mais que uma criança desse País que vem sendo submetido a um impiedoso processo de brutalização. Não dá para se ter muita ilusão quanto ao seu futuro e de todos aqueles que são gradativamente imbecilizados devido às circunstâncias em que vivem. E que dizer do futuro de um País que não cuida de suas crianças, mas precisa delas para sobreviver como Nação?


Nos barcos da Bacia do Mercado, descontração

Veja as partes [1], [2] e [3] desta matéria
Veja Bairros/Vila Nova

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