Arlindo aprendeu os segredos da destilação e mantém a tradição
Nos alambiques da década de 20 a pinga que cheira a canavial
Tem gente que não deixa por menos: defende a tese de que a
cachaça nasceu na Baixada Santista, mais precisamente a Oeste do Morro da Nova Cintra, onde foi levantado o primeiro engenho de cana-de-açúcar do
Brasil, o de São Jorge dos Erasmos. Como engenho logo lembra aguardente, não falta quem resgate para a região o privilégio de ter preparado a
bebida mais popular do Brasil pela primeira vez.
O que ninguém duvida é que a Baixada Santista teve uma importante cultura canavieira e que a Nova Cintra
produzia a melhor cachaça que Santos bebeu. E, por incrível que pareça, lá ainda há dois alambiques da década de 1920, onde se fabrica a famosa
pinga de gosto adocicado e que cheira a canavial.
A tradição do morrão é mantida pelos filhos do Chico sem Palavra, hoje um homem muito doente, e
pelo Eduardo, que aprendeu os segredos da destilação com o pai. Só que eles produzem apenas para abastecer parentes e amigos. Afinal de contas,
sabem o que é uma boa pinga e não querem ver as pessoas queridas bebendo caninha que incha a cabeça, os pés e afina os braços.
A única diferença dos alambiques do começo do século fica por conta da substituição da velha moenda puxada a
burros ou bois por moedores elétricos, mais rápidos e econômicos. No mais, permanecem as mesmas caldeiras e cabeçotes de cobre, as mesmas barricas
de madeira, as garrafas com formatos diversos e o velho e infalível alcoholômetro, o "segundo Cartier".
E saibam que a Nova Cintra teve mais de 30 alambiques do tipo, os chamados cebolinhas. Dizem até que
foram os ilhéus lá do morro que criaram o termo morrão, um dos quase 300 sinônimos da cachaça. E a bebida produzida por eles ficou tão
famosa que as destilarias de outros lugares de Santos inventaram um nome de pinga, Morrão do Morro, para confundir os compradores.
Os alambiqueiros e os segredos do processo de destilação da garapa - Quem não conheceu o Morrão do
Engenho Leal, fabricado pelo Chico sem Palavra? Dona Amália varou noites selando as garrafas de pinga que o marido venderia de bar em bar,
de porta em porta. Ainda hoje ela guarda alguns desses selos, confeccionados na época em que a fiscalização era rígida e se exigia dos fabricantes
firma registrada. Ai que se pegasse alguém vendendo pinga clandestinamente...
Primeiro o Chico descia o morro com os garrafões nas costas. Depois fez umas economias e comprou um
Chevrolet 1928, que conserva até hoje no porão. Atualmente quem anda às voltas com o alambique é o filho Arlindo, que aprendeu com os pais, entre
outras coisas, que as canas doces são as que crescem nas encostas e com elas se faz a melhor pinga.
"Seu" Eduardo, filho do português que fabricava o igualmente famoso Morrão do Engenho São Luís, diz que
se corta a cana pelas épocas de julho. Corta rente, mói e com a guarapa (corruptela de garapa) se enche as barricas de madeira. Para ajudar
na fermentação, basta adicionar um pouco de fermento ou juntar um restinho de garapa já fermentada.
O tempo de fermentação varia, e os alambiqueiros sabem que a guarapa está no ponto quando pára de chiar.
Então é hora de jogar tudo na caldeira de cobre para a destilação. A caldeira é esquentada com fogo de lenha e o vapor da cana fermentada passa
por um cano e por uma serpentina que fica dentro de um tanque com água fria. Com o esfriamento, o vapor se transforma em líquido e cai direto nos
garrafões.
Parece fácil, mas há muitos detalhes para se observar. O fogo, por exemplo, tem que ser controlado a todo
instante para que o líquido caia bem devagar no fim da serpentina. E a melhor pinga é a de 19 graus; mais forte que isso só para aqueles homens
bravos, desses valentões que não temem nada.
E há muitos outros segredos que se podem descobrir em conversas com o Arlindo, dona Amália e "seu" Eduardo.
Gente que anos após anos vem fabricando o morrão que o santista não bebe mais. |