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reproduz jornal da época do crime
São Paulo, 1928
Um crime de meio século
Por Armando Stelluto Júnior
Completou-se dias atrás quase meio século do talvez mais bárbaro crime de que se tem
notícia da época em que mal se falava em polícia ou mesmo em violências corriqueiras na comunidade paulistana, quanto mais em assassinatos.
Em outubro de 1928, a tranqüila São Paulo era sacudida ante a execução de uma loira
de 21 anos, grávida de meses, abatida pelo marido e depois mutilada e colocada numa enorme mala de couro, com fecho americano. Essa misteriosa mala
faria uma longa viagem pelo Atlântico, não fosse a descoberta no porto de Santos. A estranha carga tinha um destino: Bordeaux, na França.
Antes desse, talvez dois anos para trás (N.E.: na
verdade, em setembro de 1908), a cidade tinha experimentado o impacto de outro caso muito parecido: um sírio, de nome
Miguel Trade, esquartejara e colocara os despojos de uma mulher, também numa grande mala. Sobre isso sabe-se pouco, mas o bastante para se ter a
certeza de que Trade foi expulso daqui pra nunca mais voltar.
A tragédia de 4 de outubro de 1928 "é digna de um monstro de sanha incontrolável",
destacava a imprensa local da época. Na verdade, até a polícia deixara claro seus temores, pois mal saíra do caso Miguel Trade e já mergulhava numa
investigação complicada, desafiadora até. Ninguém sabia nada e as especulações eram a melhor forma de se conjeturar sobre tudo e todos. Mas, mesmo
assim, fazia-se o trabalho de pesquisas incansavelmente, com a ajuda decisiva de jornalistas, os quais proporcionavam, sem dúvida, importantes
subsídios aos serviços de investigações oficiais.
A todo instante a população queria saber detalhes do segundo grande crime praticado em
São Paulo, seguindo o estilo do primeiro. Nos bares, cafés, restaurantes e passeios públicos, a conversa, durante muitos dias, girou sobre um só
assunto: o crime da mala. Aos domingos, quando da tradicional macarronada dos italianos, famílias inteiras dedicavam-se ao assunto com interesse
incomum, mas não estranho: a vítima era italiana e o assassino tudo indicava fosse também da mesma nacionalidade.
A história da crônica policial conta esse assassinato como o mais expressivo já
ocorrido no Brasil, pela repercussão que teve na época. Muito embora classifique o crime de Miguel Trade como um dos mais bárbaros. Depois desses
vieram outros semelhantes, mas não exatamente iguais e muito menos sensacionais. Para classificar esses fatos como mais ou menos importantes nesse
campo, são levadas em conta a importância e a receptividade dadas pelo público. Daí terem ocorrido assassinatos até mais frios (como o de uma
empregada doméstica que deu à luz e retalhou o bebê em mais de dez pedaços, usando um canivete que não tinha mais de quatro dedos de lâmina - isso
foi em 1971, no Bom Retiro), mas sem expressão histórica.
A notícia vem do porto. Na mala, uma mulher mutilada - A divulgação de uma
notícia, de que no porto de Santos uma grande mala de couro fora descoberta com o corpo de uma mulher dentro, explodia como uma bomba em todo o
Planalto, depois de correr de boca em boca na região portuária. Ao ser içada para bordo do vapor Massília, que seguiria para a Europa, a
carga deixava escorrer um líquido escuro e exalava cheiro insuportável. No momento em que a embarcação levantava âncoras, a Polícia Marítima decidiu
averiguar. Foi uma correria sem tamanho. A imprensa se apressou e logo passou a investigar, mesmo antes da polícia. Imediatamente pensava-se em
Miguel Trade, autor de crime parecido em 1926. Mas não era nada disso. O nome agora era José Pistone, 31 anos, casado, natural de Canelli, na
Itália). A vítima, sua esposa, Maria Féa Mercedes (21 anos).
Dentro da mala, além dos despojos de Féa Mercedes, foram achados também pedaços de
papel que forravam a base do baú, uma caixinha de pó de arroz Coty, vidro com pastilhas para garganta, seringa, vidro de extrato, cobertor de lã,
lençol de linho, travesseiro sem fronha, almofada verde, retalhos de tecidos e peças de roupa. O corpo tinha um colete de lã sobre o busto e
camiseta de tricô, meias de seda presas por ligas de elástico, sem enfeites. E o que mais revoltou: junto do corpo, um minúsculo cadáver. Quando
abatida, a vítima estava grávida de seis meses e o bebê nascera dentro da mala, confirmaria mais tarde o médico Rebello Netto. Ele mesmo diria,
antes do sepultamento feito no cemitério do Saboó (esse cemitério existe até hoje em Santos e na sepultura todos os anos milhares de pessoas
depositam suas esperanças em milagres, conforme criou a crença popular), que Maria Féa fora estrangulada e depois mutilada.
Imediatamente, o comandante do navio, que pertencia à Cia. Chargeurs Reunis, avisou o
delegado regional de Santos e este, sem os recursos que a polícia tem hoje, iniciou as investigações, auxiliado pelo então "Gabinete de
Investigações" sediado na Capital, uma espécie do atual Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), que assessora todas as delegacias
do Estado.
É claro que a polícia estava às tontas. Senhores de gravata e ternos impecáveis,
sapatos lustrosos e cabelos bem aparados franziam a testa sob seus chapéus ante o escabroso caso. Os "agentes de segurança" se movimentavam como
podiam, seguindo os princípios básicos e outros rudimentares, de investigação: perguntas e muita pressão por todos os lados. Isso era feito em
Santos e São Paulo. E no Porto do Rio também, alguma coisa foi feita nesse sentido, chegando as autoridades até a deter marinheiros e turistas
considerados suspeitos. Em Santos foi preso um português no dia da descoberta, por suspeita. Depois ele foi liberado.
Isso tudo aconteceu a 8 de outubro, isto é, 4 dias depois do crime.
Como em todos os casos dessa espécie, procurava-se saber primeiro onde a mala fora
adquirida ou sua fabricação. O resto chegou com menos trabalho. Assim foi que se descobriu que a mesma tinha sido comprada numa fábrica da Avenida
São João, no centro da Capital. Depois partiu-se para a identidade da vítima. Com essas informações, a polícia estava na pista certa, Maria Féa
Mercedes teria sido morta pelo marido, José Pistone, na Rua da Conceição, 34, onde residiam numa sala alugada do apartamento número cinco do prédio
de 3 andares.
Mas por quê, se ambos pareciam se dar tão bem? perguntavam-se os vizinhos.
A resposta para essa, como para muitas outras perguntas que quase toda a população
fazia a toda hora, veio mesmo com a prisão de José Pistone.
Um estranho na cama. E aconteceu o crime - Por volta de 11h30 do dia 4 de
outubro, Pistone voltava da Casa Canelli, onde trabalhava e guardava certa importância em dinheiro que trouxera da Itália, via Argentina (ele ficou
um bom tempo nesse país com a esposa, para depois se fixar de uma vez no Brasil e tentar a sorte de que tanto falavam seus patrícios). Para levar a
mulher ao almoço, como sempre, Pistone chegou descontraidamente. Até abrir a porta. Deu de cara com um estranho na cama com sua mulher. O
desconhecido foi mais rápido que ele, sentando na sua frente.
Maria, sem que lhe fosse feita qualquer pergunta, gritava que nada tivera com aquele
sujeito. Mas não explicava claramente o que ele fazia tão bem acomodado junto dela.
Foram poucas as palavras. José Pistone, o homem de quem muitos falavam bem pelo
tratamento que dava à mulher, àquela altura grávida pela primeira vez, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a.
Como em quase todos os crimes desse tipo, o assassino deixa o local e tenta falar com
alguém de confiança, procurando uma solução imediata ou uma forma de se livrar do cadáver. Foi assim que Pistone relatou a um companheiro de
trabalho (talvez até ao patrão, não se sabe ao certo) o que tinha feito. Entre eles não chegou a qualquer conclusão. Estava apavorado. Assim ficou,
pelo menos dois dias.
Foi nesse desespero que Pistone comprou uma mala na Av. São João e mandou que fosse
entregue em sua casa, para onde se dirigiu e pôs em prática seu plano. Ao chegar sua encomenda, recebeu-a na porta. A seguir, tentou colocar o corpo
dentro.
Não coube. Então ele seccionou as pernas da morta na altura dos joelhos com uma
navalha, até partir-se em meia lua na lâmina. Fechada e com o corpo bem acondicionado para seus propósitos, a mala foi logo levada a um caminhão
para a estação da Luz e colocada num trem que ia para Santos. Ele foi junto.
No porto, alugou um caminhão Fiat 818 e transportou seu precioso volume até o cais, e
lá providenciou o despacho para a França, com a inscrição: "Francisco Ferrero" (nome fictício, provavelmente, apenas para justificar a remessa).
Antes disso, envolveu a caixa com muitos metros de uma forte corda. Durante todo esse tempo, vivia com os olhos pregados na mala, embora isso lhe
custasse náuseas e ameaças de vômito, pois o cadáver entrava em decomposição e cheirava mal. Essa vigília e também o odor do volume despertaram as
atenções.
Quando a mala era erguida para bordo do Massilia, Pistone retirou-se. Contratou
um carro na praça José Bonifácio para levá-lo para São Paulo no dia seguinte, por 150 mil réis. Depois, pagaria 200 mil ("os cinquenta mil são para
a gasolina", como diria ele ao motorista Gil da Glória, o "Leão").
Quando passavam por São Bernardo, pararam para um lanche no então Recreio e Café
Expresso S. Bernardo. Nesse lugar, ele ficou sabendo que a polícia descobrira tudo e mudou de cor, deixando seu chofer preocupado, mas este jamais
desconfiaria de sua pessoa, mesmo o tendo conhecido há poucas horas (hoje não seria nada disso, de jeito nenhum!). O criminoso pagou imediatamente a
conta dos sanduíches e cerveja (17 mil réis), e tocaram a viagem. Já em São Paulo, o estranho passageiro de botinas amarelas, roupa azul marinho,
chapéu cinzento e gravata borboleta no pescoço, ficou perto do Hotel D'Oeste, no largo São Bento. No dia seguinte seria preso.
Achado numa pensão. Ia se jogar no Tietê - Descoberta a loja que vendera a mala
e também a identificação da mulher, a polícia caminhou a passos largos para a localização e conseqüente prisão do autor do segundo crime da mala no
país. Ele foi achado na Pensão Grasso, que existia na Rua Ypiranga (hoje avenida), de onde pretendia pagar um automóvel e seguir até o Bom Retiro e
de lá se jogar no rio Tietê, uma vez que para se afogar no mar, em Santos, não tivera coragem suficiente. Sem reagir, o italiano magro e alto, de
olhos azuis e tido como doente tuberculoso quando trabalhava na Casa Canelli, também da Rua da Conceição, foi levado para o "Gabinete de
Investigações", onde tentou justificar seu gesto.
Sobre a possibilidade de adultério praticado por "Mariucha", como era chamada sua
esposa na colônia italiana, ele não esclareceu muito, apenas garantiu que ao chegar em casa no dia do crime, um homem pulou e sua cama e fugiu na
sua frente.
No entanto, pelo que disse aos policiais em 1928, o assassinato poderia também estar
ligado a dinheiro. As 15 mil liras que ele trouxera quando veio para o Brasil, teria dado para Maria Féa depositar numa casa bancária. Depois ele
soube que lá só havia 12 mil, gerando daí séria discussão e o crime. (Féa Mercedes mandara 3 mil liras para seus parentes na Itália, em pagamento
dos débitos contraídos pelo marido, quando de seu casamento em Sandria, naquele país).
No dia 1º de novembro, isto é, quase um mês depois do homicídio, Pistone deu entrada
na Penitenciária do Estado, que era na Av. Tiradentes. Saiu não se sabe pra onde, para voltar dia 19 de março de 1938 e, em definitivo, a 10 de
junho do mesmo ano. Ele morreu em 1969 em Taubaté, onde teria se casado pela segunda vez. Seu corpo está sepultado no cemitério da cadeia dessa
cidade.
Irmãos de Mariucha falam do criminoso - Mesmo depois de preso, a família de
Mariucha preocupou-se de certa forma em manter contato com as autoridades policiais brasileiras. Esther Féa e José Féa vieram da Argentina para
traçar a personalidade do criminoso, que já na Itália mostrava seu caráter não muito respeitável.
Conforme ambos disseram aqui, depois de providenciarem um túmulo em mármore simples na
sepultura de Mercedes no Saboó (mais tarde seus ossos seriam levados para a Argentina, onde estavam quase todos seus parentes), Pistone era um
fascista e queria que todos o fossem em seu credo político; chegou a ser preso e condenado na província de Santa Fé, por vigarices. Ele passou bom
tempo em Buenos Aires, onde não firmou o pé de jeito nenhum.
Navalha usada por Pistone no crime, e colocada na mala junto com o corpo de Maria Féa
MAIS QUATRO CRIMES DA MALA
Até hoje, pelo menos quatro assassinatos desse gênero se tornaram bastante conhecidos.
No rio Pinheiros, em outubro de 1958, foram jogados os corpos de três chineses, cada um dentro de um baú (o milionário Lee Ching Tea, seu secretário
Pei Tesu Chee, e Chen Hui Ming). Os criminosos: Lin Fo Shou, preso na Bolívia; Tony Shie, preso em Goiás; e o japonês Yuzo Arii, que até agora
ninguém sabe dele). Na Casa Verde, em 1959 ou 60, a enfermeira Florinda Marques, auxiliada pelo amante Krikor Zentunian, usou um baú para
transportar o corpo esquartejado de seu marido, o motorista de praça José Alves, morto com uma martelada na cabeça e depois jogado, aos pedaços, no
rio Tietê, desde a Casa Verde até Santana do Parnaíba.
Mais dois aconteceram: um em Osasco, onde uma mala boiava no Tietê com o corpo de um
menino; e outro no Estado do Piauí, que foi descoberto num ônibus de viagem, também de uma criança numa mala. Nestes dois últimos, a polícia fez
pouco progresso nas investigações, pois até agora não se sabe com firmeza a identidade das vítimas, quanto mais de seus matadores.
Na matéria de Notícias Populares, a reprodução de fotos da época do crime
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