PARTE I - EXPOSIÇÃO E DEBATE
IV - Exame da primeira solução prática
Das nossas considerações anteriores resulta, de modo insofismável, que o saneamento de Santos não era
assunto do peculiar interesse do Município, pois que afetava, direta e principalmente, a própria vitalidade orgânica do nosso estado.
Assim, pois, quando o Governo Paulista assumiu o encargo de executar as respectivas obras, não
atentou contra a autonomia municipal, nem esta se despiu voluntariamente de suas regalias constitucionais em proveito daquele.
Foi, como se viu do histórico da questão, desde os seus primórdios, uma necessidade urgente de
salvação pública, que levou o Governo de São Paulo a chamar a si a execução da grande tarefa, reputada como inadiável por todas as administrações
republicanas.
Ora, da mesma forma que, apesar de incumbir a cada estado o provimento, a expensas próprias, das
necessidades de sua administração, o Governo Federal, em caso de calamidade pública, é obrigado a socorrer àquele que não se ache em condições
financeiras de combater a peste, a fome, a seca e as inundações, sem que, por isso, a sua autonomia fique cerceada, diminuída ou suprimida -, assim
também não decai da sua autonomia o Município que, por falta ocasional de recursos, o Estado auxilia, já subvencionando serviços de mero caráter
local, já avocando a si, dentro da lei, a execução deles.
No caso de Santos, então, o Estado não contribuiu com subvenção alguma de seus orçamentos para as
obras que aqui executou, as quais, não obstante o seu caráter de necessidade geral, estão sendo pagas, totalmente com o exclusivo imposto do
contribuinte santista.
Se, por motivo de calamidade pública, a União é obrigada a socorrer os estados sem recursos e
estes, por sua vez, não podem recusar semelhante socorro, o Município de Santos não podia e nem devia opor-se à intervenção do governo relativamente
ao saneamento local, exigido oficialmente em nome da salvação de S. Paulo. Mas, num caso como noutro, repetimo-lo, não há renúncia alguma de
direitos quaisquer.
Agora, porém, não se trata mais de uma urgente questão de salvação geral, não se trata de
epidemias, irradiando-se de Santos para o interior do estado; não se trata, enfim, do imperioso problema sanitário. Trata-se, apenas, de um plano de
expansão da cidade, do traçado das ruas futuras, da beleza da sua perspectiva, do conforto de seus habitantes; é uma questão puramente, estritamente
local, do peculiar interesse do nosso Município.
Mas o sr. Saturnino de Brito pretende, engenhosamente, subordinar essa questão municipal ao plano
estadual do serviço de esgotos. Mais tarde, quando entrarmos na apreciação do lado técnico do debate, abordaremos este detalhe.
Por agora, vamos examinar as "duas soluções práticas" que s.s. ofereceu à consideração da
Municipalidade.
A primeira consta de duas partes, que são:
a) Modificar a legislação existente, aplicando à viação urbana o que dispõe a lei de 1856 (SIC)
para a viação geral e férrea, nas partes em que dispõe que, aprovada uma planta de melhoramentos, estão declarados de utilidade pública os terrenos
nela demarcados para a realização das obras; portanto, as benfeitorias ulteriores não onerarão a desapropriação a fazer, "em qualquer tempo";
b) Os proprietários de tais terrenos não pagarão impostos correspondentes às porções a expropriar
e poderão fazer benfeitorias de caráter provisório, como sejam certas plantações, edificações etc. Ao iniciar-se cada administração, esta dir-lhes-á
se se obriga, durante a sua gestão, a desapropriar o terreno, de modo a permitir-lhes continuar explorando-o etc.
Estudemos esta primeira solução, que é um atestado formal da absoluta inópia jurídica de quem a
elaborou. O sr. Saturnino de Brito, na obsessão sanitarista que o domina, revela, através de tão disparatada solução, a sua alma de déspota. As
conquistas da civilização, garantindo o patrimônio adquirido pelo trabalho de cada qual, são por ele postas de lado, com um gesto de profundo desdém
por tudo quanto se insurja contra as suas veleidades de pontífice infalível do sanitarismo universal.
Ainda mais: s.s., que cursou uma Escola Superior, que é dado ao exame especulativo das questões
sociais, que tem passado a vida a projetar saneamentos e reformas de cidades - é de uma ignorância inacreditável no que diz respeito à nossa
legislação positiva. Ele não sabe a data das leis que cita e nem a oportunidade da sua aplicação. Entretanto, lida com uma especialidade técnica, em
relação freqüente com as leis brasileiras, não só gerais, como estaduais e municipais.
É assim que, por mis de uma vez, s.s. referindo-se à lei geral de viação férrea, dá-lhe a data de
1856, quando ela é de 1855. O que é, sobretudo, pasmoso, num homem tão cheio de irritados melindres e de orgulho assanhado - é a ingenuidade com que
s.s. propõe que se modifiquem as leis atuais de desapropriação, adotando-se,na lei geral de 1855, as disposições que convêm aos seus planos de
melhoramentos.
Ora, o engenheiro-chefe da Comissão do Saneamento tem uma pronunciada queda, um pendor
irresistível pelas instituições do passado. Já vimos que, em matéria de organização municipal, ele é francamente adepto da centralização vigente nos
países monárquicos.
Agora, com um revoltante desprezo pelo direito de propriedade que, na abalizada opinião de
Barbalho, o Estado tem obrigação de amparar e garantir, como fomentador do trabalho, da atividade individual e da expansão coletiva - s.s. quer
aplicar a este recanto do Brasil, rejuvenescente e progressista, textos arcaicos, disposições obsoletas de leis decrépitas, que tiveram sua razão
fundamentada no momento histórico de sua decretação, mas que são, hoje, incompatíveis com o respeito devido ao patrimônio adquirido pelo esforço
pessoal de cada cidadão, e com o moderno sentimento jurídico do nosso povo.
A lei de 1855 ou antes, o decreto 1.664, que regulamentou o assunto, foi elaborado em uma época em
que quase todos os serviços públicos estavam por se estabelecer no Brasil. Cogitava-se da fundação das nossas primeiras vias férreas, era preciso
estimular essa iniciativa, animar os capitais particulares, favorecer, em suma, com concessões especiais, as empresas que se constituíssem para
semelhante fim.
Daí a disposição determinando que as construções, plantações e quaisquer benfeitorias feitas na
propriedade, depois de conhecido o plano das obras ferroviárias, e com o fito de elevarem o quantum da indenização, não deveriam ser
atendidas. É essa disposição, e mais a do artigo segundo, declarando de utilidade pública todos os terrenos e prédios necessários a uma dada obra,
cujas plantas tenham sido aprovadas - que o sr. Saturnino quer que sejam aplicadas ao caso de Santos.
Dando de barato que tais disposições pudessem, desde já, ser adotadas, entre nós, compreende-se
que a Câmara, faltando-lhe competência para legislar a respeito, e, portanto, não podendo aplicá-las, ficaria impossibilitada de aprovar uma planta
que iria forçá-la a uma formidável despesa com a prévia indenização das terras expropriadas, pois teria de sujeitar-se ao que dispõe a legislação
estadual em pleno vigor.
A atribuição de legislar sobre desapropriações por utilidade pública municipal foi outorgada às
antigas Assembléias Provinciais, pelo artigo 10, parágrafo 2º, do Ato Adicional à Constituição do Império. Em virtude dessa atribuição, tivemos a
lei 57 (antiga 38), dispondo sobre a matéria. Sobreveio a República, e manteve essa lei, a qual, segundo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 21 de
março de 1903, continua regendo as desapropriações municipais no Estado de S. Paulo.
Ora, dentro dos princípios dela, a Câmara não podia atender às solicitações do sr. Saturnino de
Brito, porque, feita a declaração de utilidade pública, será comunicada por escrito ao proprietário e chamado este pelo juiz para, avaliada a
propriedade, receber o respectivo preço. Onde iria a Câmara buscar as quantiosas somas em que montam as desapropriações a que a planta do sr.
Saturnino de Brito a obrigaria?
Os proprietários, porém, conhecem melhor que o sr. engenheiro a legislação em vigor; e tão
depressa s.s. apresentou a planta, não obstante não ter sido ela aprovada pelo único poder competente, que é a Câmara - numerosos requerimentos
foram apresentados à Municipalidade, pedindo licença para edificar nos terrenos onde estão projetadas novas ruas, ou a sua imediata desapropriação.
Pode a Câmara negar licença aos proprietários para que edifiquem nos terrenos de que são donos?
Pode, sim, mas depois de declarar de utilidade pública tais terrenos e de preparar o dinheiro para pagar-lhes o preço devido, nos termos da lei.
O ilustre engenheiro-chefe, o que devia, pois, era, em vez de exigir imperiosamente da
Municipalidade a aprovação de seu plano, apelar para o Governo do Estado, de que é mandatário, pedindo-lhe a modificação da lei 57, que continua em
vigor entre nós, apesar de sua pulverulenta antiguidade e de conter disposições contrárias à Constituição Federal, por atentatórias do direito de
propriedade.
Vê, pois, o público que insuperáveis razões de ordem econômica e de ordem jurídica levaram a
Câmara de Santos a adiar, até hoje, a aprovação da planta do sr. Saturnino de Brito. Não houve, como s.s. insinua, nenhum motivo de caráter
subalterno influindo nesse forçado adiamento.
A primeira solução prática, proposta pelo ilustre engenheiro, não depende, portanto, da nossa
Municipalidade, que nada pode fazer a respeito. Se o meio de remover os obstáculos econômicos que a situação financeira do Município opõe ao seu
plano - é a modificação da lei de desapropriação, reclame-a de seus superiores hierárquicos, porquanto, como s.s. está verificando aos poucos, a
propriedade particular em nosso país é garantida com eficácia e ninguém pode ser despojado dela sem a devida compensação.
Entregue a sua primeira solução prática às deliberações do Governo do Estado - vejamos se, perante
a Constituição Federal, pode o Congresso Estadual introduzir em nossa legislação as modificações que o sr. Saturnino de Brito reclama com tamanha
impaciência.
O nosso pacto fundamental, nas "Declarações de direito", estipula que "o
de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização".
Eis aí: a propriedade é mantida em toda a sua plenitude, só se lhe opondo uma única restrição - a desapropriação, por necessidade ou utilidade
pública, mediante, porém, uma condição categórica: a indenização prévia. Fora desta restrição, taxada em termos precisos, a propriedade mantém-se em
toda a sua plenitude.
Pois bem: que deseja o sr. Saturnino de Brito, com a adoção dos dispositivos do decreto imperial
de 1855, sobre viação férrea? Que sejam declarados de utilidade pública, a contar da aprovação da sua planta, os terrenos por onde hajam de passar
os esgotos sanitários; e os ônus das desapropriações futuras não sejam acrescidos com o valor das benfeitorias aí feitas "em qualquer tempo", depois
de decretada a utilidade pública.
Ora, é isso uma restrição à plenitude do direito de propriedade - restrição que a Constituição
Federal não autoriza. Se as benfeitorias feitas no terreno não serão pagas ao proprietário, quando se efetivar a desapropriação - é claro que
ninguém irá gastar inutilmente dinheiro em construções onerosas e que serão mais tarde expropriadas a título gratuito.
É uma limitação arbitrária a um direito, cuja plenitude a Constituição ampara e garante. Desde que
o proprietário não pode dispor livremente de sua propriedade, locando-a, trocando-a, vendendo-a, ou utilizando-a como bem entender - segue-se que
foi expropriado dela, e se não é indenizado pelo seu valor, na forma da lei, tal expropriação é um esbulho contra o qual ele pode opor energicamente
todos os meios permitidos em Direito.
Mas o sr. Saturnino de Brito, com a imperturbável ingenuidade com que trata destes assuntos,
oferece, na parte segunda de sua solução prática, uma compensação ao proprietário espoliado: o consentimento para fazer, nos seus terrenos,
benfeitorias de caráter provisório, como plantações, casinhas etc., não sujeitas a impostos, e produzindo rendas. Quando chegar a época da
desapropriação, essas benfeitorias serão destruídas, sem indenização alguma ao proprietário. É ainda uma restrição inconstitucional à plenitude do
direito de propriedade. É óbvio que se o Poder Público ainda não desapropriou um terreno ou prédio, pagando ao proprietário, previamente, o seu
justo preço, não pode impedir que este use de sua propriedade como quiser, ou como lhe convier.
Além disso, bem estudado o dispositivo da Constituição Federal, a decretação de utilidade pública
de uma propriedade, e a sua desapropriação, são atos conexos. O parágrafo constitucional dispõe que a propriedade mantém-se em "toda a sua
plenitude, salva a desapropriação por utilidade pública".
Logo, o direito à propriedade só desaparece no momento em que a desapropriação é efetuada: é neste
ato que a perda do direito se verifica em face da utilidade ou da necessidade geral. A simples decretação de utilidade pública, de uma propriedade
qualquer, não priva de sua inteira posse o respectivo proprietário. Só a desapropriação, da qual a prévia indenização é condição essencial, é que
faz cessar legalmente a plenitude do direito de propriedade.
Em vista do exposto, se o sr. engenheiro Brito entende que o seu plano de expansão da cidade é
imprescindível ao êxito final das obras de saneamento a seu cargo, e como estas estão sendo executadas pelo Governo, embora à custa do contribuinte
santista, empenhe-se por que o Estado desaproprie as terras necessárias à eficácia do seu projeto. O custo das desapropriações será adicionado ao
das obras já feitas, e, afinal, pago pela taxa de esgotos, que o Estado arrecada para se cobrar das despesas adiantadas até agora. Será mais um
adiantamento ao Município de Santos, para obras de proveito estadual.
Se, porém, entende que o Estado não deve impor-se tal sacrifício, e os proprietários devem
sujeitar-se à espoliação de seus bens, em nome do interesse geral - s.s. só tem um recurso para conseguir o seu arrojado desideratum: é
empregar sua influência junto aos chefes nacionais de prestígio e obter deles a reforma da Constituição Federal, na parte em que assegura, em toda a
sua plenitude, o direito de propriedade.
A boa fama de seus notórios talentos, que ora deslumbram o ocidente maravilhado, a boquiabrir-se,
cheio de espanto e de orgulho diante de seus gigantescos projetos de reformação da cidade, exige que todos os poderes constituídos da Nação, do
Estado e do Município rendam completa, unânime vassalagem a tão egrégio representante de nossos créditos científicos.
Restaria, contudo, um embaraço a solver: a questão do conforto e da estética, que um profissional
cheio de capacidade, o sr. engenheiro-chefe da Prefeitura, julga prejudicados nas ruas projetadas pela planta da Comissão de Saneamento. É uma
questão de pura competência municipal, do peculiar interesse do município, e que, portanto, somente os poderes locais podem resolver. Mais adiante,
porém, trataremos deste detalhe.
Imagem: reprodução parcial da obra de
Alberto Sousa (página 34) |