No artigo dedicado ao transatlântico Principessa Mafalda (publicado em 7 de maio de 1992), foi descrita a origem da armadora peninsular
Societá Lloyd Italiano, cuja fundação, em 1904, deveu-se ao espírito empreendedor do senador Erasmo Piaggio, apoiado por membros de sua família. Homem de grande iniciativa e
ambições, Erasmo Piaggio havia também promovido, em 1889, a criação da Societá Esercizio Bacini (SEB), cujo objetivo social era o de construir e administrar novos estaleiros e docas secas na área do golfo de Gênova. A localidade de Riva Trigoso
está situada a poucos quilômetros da cidade italiana de Sestri Levante.
Tranqüilidade - No século XIX, era essa uma praia tranqüila, para onde escorriam as águas do pequeno Rio Petrônio e de onde saíam os barcos de pesca dos habitantes da área.
Eram numerosos aqueles que então viviam quase exclusivamente da pesca nas águas claras do Alto Mar Tierreno e golfo lígure. A partir de 1873, nesta localidade, surgiram os primeiros estaleiros, que, de forma
artesanal e quase primitiva, construíam em madeira as embarcações de pesca para uso local.
Um pouco mais tarde, começou-se a construir embarcações um pouco maiores para o transporte costeiro dos produtos da área: vinho, queijos, alimentos caseiros, aveia e pescado.
Um século atrás - Por volta do início de 1897, a Societá Esercizio Bacini interessou-se pela área, a fim de construir um estaleiro de grandes proporções, capaz de produzir vapores em ferro ou aço.
A família Piaggio empregou toda a sua influência econômica e política para obter as autorizações necessárias e para convencer a população dos povoados vizinhos, pouco inclinada a ver desaparecer sua praia e seus
pescadores.
Por deliberação do Conselho Municipal de Sestri Levante, em agosto daquele ano foi concedida licença para o início dos trabalhos de implantação do estaleiro.
Dique flutuante - Dois anos mais tarde, era lançado ao mar um dique flutuante que a SEB fez rebocar até Gênova para seu uso exclusivo. Foi a construção nº 1 do estaleiro de Riva Trigoso, estaleiro que ainda
hoje existe no mesmo local, operando sob a égide de Fincantieri.
A construção de número 35, iniciada em 1904, deu origem ao vapor Florida. Foi o terceiro vapor ordenado de uma série similar de quatro, todos levando nomes de estados norte-americanos, numa homenagem ao país
que naqueles idos recebia um grande número de emigrantes italianos, e todos construídos em Riva Trigoso, num arco de tempo de apenas 15 meses.
O lançamento do Florida ao mar ocorreu em 23/6/1905. Ele fez a viagem inaugural em setembro
Quarteto de navios - Florida, Virginia, Indiana e Louisiana formaram um quarteto de navios praticamente gêmeos, diferenciados somente por detalhes. Projetados pelo engenheiro
naval Tappani, destinavam-se a servir sobretudo o tráfego de emigração entre a Itália e as duas Américas, a do Norte e a do Sul.
Eram de tonelagem relativamente modesta, desenho esguio e elegante, com perfil baixo, onde se sobressaíam as duas chaminés ligeiramente inclinadas e colocadas a meia-nau.
Proa de linha reta, popa do tipo cruzador, convés principal corrido (dez embarcações salva-vidas, cinco de cada lado), ponte de comando com estrutura ligeiramente encurvada para fora, completavam suas linhas
externas.
Levar emigrantes - Internamente, a decoração dos mesmos respeitava a finalidade para a qual foram construídos, ou seja, transporte de emigrantes.
Nenhum luxo, frugalidade nos ambientes públicos, onde reinava, porém, uma atmosfera de modernidade e higiene, sobretudo devido à inteligente divisão dos alojamentos comuns de 3ª classe.
Haviam sido dotados, cada um, de duas máquinas propulsoras a vapor de expansão tríplice que se coligavam com dois hélices.
O primeiro - O Florida foi o primeiro a ser entregue. Lançado ao mar em 23 de junho de 1905, realizou sua viagem inaugural, saindo de Gênova para Buenos Aires, em setembro do mesmo ano, sob o comando
do capitão Francesco Noera e tendo como imediato aquele que, anos mais tarde, comandaria grandes transatlânticos italianos, como o Duilio e o Augustus, Pellegrino Sturlese.
Após esta viagem inicial, o transatlântico foi colocado na linha do Atlântico Norte, embora, esporadicamente, fosse também utilizado na Rota de Ouro e Prata.
Em dezembro de 1908, completou uma viagem redonda entre Gênova e Buenos Aires, com escalas intermediárias, na ida e na volta, em Nápoles, Rio de Janeiro e Santos. Neste último porto, escalou no dia 15 desse mesmo
mês, proveniente de Buenos Aires.
Porto italiano de Messina, em cartão postal pouco antes do terremoto de 1908
Alternância - No início do mês seguinte, o Florida, sempre alternando-se seu uso entre a rota para os Estados Unidos e aquela para a costa Leste da América do Sul, empreendeu duas viagens de linha
regular de portos italianos a Nova Iorque. A segunda nunca foi completada.
Em meados de janeiro de 1909, zarpou de Nápoles sob o comando de Giovanni Ruspini direto a Nova Iorque, tendo a bordo 13 passageiros de 1ª classe e 810 emigrantes, muitos dos quais eram sicilianos sobreviventes do
terrível e trágico terremoto de Messina.
Nas primeiras horas da manhã do dia 23, quando navegava em meio a densa neblina, a cerca de 70 milhas do navio-farol Nantucket (que marca a aproximação ao porto nova-iorquino), o Florida investiu de
proa e à velocidade de 14 nós (26 quilômetros horários) o costado de bombordo do transatlântico britâncio Republic, da White Star Line.
Este vapor, de 15.378 toneladas, então comandado pelo capitão Sealby, encontrava-se em viagem de Nova Iorque a Liverpool, com 492 passageiros e 160 tripulantes a bordo.
Choque violento - O choque foi violento, por coincidência do destino, muito similar àquele que se produziria 47 anos mais tarde entre os transatlãnticos Andrea Doria e Stockholm; mesma
área oceânica, igual situação meteorológica e paralelo no tipo de colisão.
O impacto da proa do Florida no costado do Republic abriu uma brecha de grandes proporções. Afortunadamente, este último não afundou de imediato, fato que permitiu o salvamento de quase todos os que
nele se encontravam. Lamentou-se a perda de cinco vidas, três a bordo do navio britânico e duas a bordo do italiano.
Telégrafo sem fio - O Republic estava equipado com um aparelho de telégrafo sem fio (TSF) do tipo Marconi. Seu operador radiotelegrafista, de nome Jack Binns, saiu milagrosamente vivo do desastre, já
que sua cabina (onde dormia no momento do sinistro) e a sala de rádio, ao lado, foram praticamente destruídas, pois se situavam na área onde penetrou a proa do Florida.
Semi-aturdido e no meio de destroços, Binns logo compreendeu o que havia se passado: uma colisão! Com dificuldades, conseguiu alcançar a sala de rádio ou o que dela restava, constatando que o aparelho transmissor
ainda funcionava.
Palavras pioneiras - Jack Binns transmitiu, então, repetidas mensagens CQD de socorro (a sigla SOS, embora já tivesse sido introduzida no código internacional, não foi usada), mensagens estas que foram as
primeiras a serem usadas desde a invenção do rádio e numa situação de real perigo!
Foi dessa maneira que Jack Binns entrou a fazer parte dos anais da história marítima. As mensagens do Republic foram captadas por diversos outros vapores, que não tardaram a chegar à área do desastre. Estes
navios receberam, então, a totalidade dos passageiros dos dois transatlânticos sinistrados.
Alcançou terra - O Florida conseguiu alcançar o porto de Nova Iorque por seus próprios meios, enquanto o Republic afundaria quando se procedia o seu reboque, para esse mesmo porto.
A proa do Florida havia desaparecido numa extensão de 10 metros e para repô-la o vapor foi colocado na doca seca da empresa de reparos Morse Dry Dock & Repairs, de Brooklyn.
Procederam-se então os trabalhos de reconstrução, seccionando-se ao maçarico o que restava da seção dianteira e retirando as ferragens (100 toneladas de peso) com o auxílio de guindaste.
Navegando, após o choque com o Republic: uma tela grosseira cobre a proa danificada
Reparo rápido - O mesmo estaleiro construiu rapidamente uma nova seção dianteira, que foi agregada ao corpo do navio, tudo isso em apenas quatro semanas de trabalho, o que permitiu o retorno do Florida
ao serviço já no mês de abril de 1909.
A carreira subseqüente deste vapor seria, porém, relativamente curta. Em 1911, foi vendido, junto a seu irmão gêmeo Virginia, à armadora Ligure Brasiliana, recebendo respectivamente as novas denominações de
Cavour e Garibaldi.
Ambos foram reformados internamente, mas mantiveram duas divisões de classe (primeira e terceira), continuando a ser utilizados na Rota de Ouro e Prata. O par realizava um serviço expresso entre Gênova e Buenos
Aires, com escalas intermediárias no Rio de Janeiro e em santos e saídas mensais de cada porto.
Mudanças - Em meados de 1914, o Cavour e o Garibaldi passaram para os ativos da recém-construída Transatlântica Italiana, sendo, porém, mantidos os nomes e a utilização na rota sul-americana do
Atlântico.
Com o deflagrar-se da Primeira Guerra Mundial, nada mudou e o par permaneceu na linha para o Brasil e o Prata. O Garibaldi, durante um certo período de 1915, foi utilizado como transporte de tropas na
campanha dos Dardanelos, retornando em seguida a seu uso comercial para a costa Leste da América do Sul.
Viagem derradeira - O fim do Cavour aconteceu numa noite de dezembro de 1917. Procedente dos portos platinos e brasileiros, navegava em comboio no Mediterrâneo com destino a Gênova.
Na época, os regulamentos de navegação em tempo de guerra obrigavam os navios a viajar em total blecaute, ou seja, sem luzes. Tal obrigação foi a causa de inúmeros acidentes entre os navios aliados e da
perda do Cavour, vítima de colisão com o navio-auxiliar italiano Caprera, quando ambos se encontravam obscurecidos e em navegação de comboio.
Por incrível ironia da sorte, desta vez foi a proa do Caprera a abrir um rombo no costado de boreste do Cavour, provocando o seu imediato afundamento com a perda de inúmeras vidas. |