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Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Globalização: língua indefesa e exclusão social

"...se falta pão e caderno à mesa,
vai pro brejo a língua portuguesa"
José Rodrigues
(Jornalista e economista - Santos/SP)

José Pascoal Vaz (*)

INTRODUÇÃO
A defesa da língua portuguesa, proposta aqui do ponto de vista dos que objetivam uma sociedade solidária, não é feita, todavia, tendo por base o Socialismo. Embora sendo pouco ou nada provável haver ambiente cooperativo dentro do sistema capitalista, nossa discussão parte da realidade de que vivemos sob hegemonia avassaladora do mercado globalizado. Este é motivo mais do que suficiente - e não é o único - para que o MNDLP - Movimento Nacional em Defesa da Língua Portuguesa se proponha a examinar como os estrangeirismos contribuem para a marginalização e a exclusão social.

1. Não há fronteiras na pátria/mundo daqueles que defendem os princípios socialistas. Concordamos com Tolstoi quando diz que "o objetivo da vida é a união da espécie humana" (North, 1991:193). Ou seja, queremos, como seres humanos, ter a liberdade real, efetiva, de poder viajar pelo mundo e encontrar cada irmão nos mais longínquos rincões, sob a mais rica diversidade, abraçar-nos e conversar sem dificuldades entre nós. Então, por que ser contra a globalização? Qual a razão de existir do MNDLP se o congraçamento pretendido exige língua universal?

A resposta é que não se é contra a globalização sob princípios socialistas ou a de Tolstoi, mas contra a globalização hoje dominante. Desconsiderando a desigualdade social entre países e dentro destes, e desrespeitando sua diversidade, a globalização neoliberal impõe políticas econômicas e sociais uniformizantes que, evidentemente, conduzem a mais desigualdade e, assim, marginalizam e excluem. Esta situação requer, de parte dos países que sofrem este tipo de globalização, controles os mais diversos, como os sobre importações e exportações, empréstimos e investimentos estrangeiros - quanto à alocação e remessa de lucros -, transferências de recursos de brasileiros para o exterior, privatizações etc. E, da mesma forma, controle das comunicações - rádio, tv, jornais.

Há, portanto, que se estabelecer proteção à língua portuguesa que, no Brasil, representa o milagre de ter sobrevivido por cinco séculos, praticamente sem variações entre regiões, em território de 8,5 milhões de km² e 170 milhões de habitantes que vivem sob uma das maiores desigualdades sociais do mundo (Barros, Henriques e Mendonça, 2000).

Portugal conseguiu, durante os três primeiros séculos, impor e manter a língua portuguesa, o que é intrigante se considerarmos o tamanho da metrópole em relação ao do Brasil e os interesses de países mais fortes como Espanha, Holanda, França e Inglaterra. A partir do Império e até pouco além da metade do século passado, nossa língua também foi preservada. Agora, porém, está ameaçada.

2. As características mais perniciosas da globalização dominante são duas. A primeira característica é a do endeusamento absoluto do mercado e da competitividade. O mercado é colocado como o ambiente em que tudo se resolve da melhor maneira para todos. A competitividade é considerada o núcleo central, a essência que define e regula as decisões no ambiente do mercado.

A partir daí, o argumento ganha lógica própria. Dado que a competitividade é o grau de competência possuída, para usufruir igualmente das decisões tomadas sob o mercado basta simplesmente que cada um seja competente. A medida justa, definitiva e inapelável para a conquista do bem-estar é a competência. Quem não o for não merece o bem-estar, cuja conquista passa a ser apenas uma questão de merecimento, de esforço, de vontade. Não desfruta de bem-estar quem não quer.

Assim, as decisões econômicas e sociais privadas, bem como as que eventualmente ainda estejam nas mãos do Estado, têm por base a competência. Esta, de um “meio” [1] para a busca do bem-estar, passa a ser um “fim” em si mesma. A busca da competitividade chega a ser justificativa ética para a demissão de milhares de trabalhadores de uma empresa, mesmo que a redução de custo correspondente não seja um imperativo para evitar prejuízos insuportáveis. Muitas vezes, até, a competitividade é utilizada como argumento ético para demissões que contribuirão apenas para aumento dos lucros. Esta é a ética dos capitalistas globalizados que decidem tendo ainda como fundamento o velho utilitarismo.

A competitividade, todavia, para ser utilizada eticamente como "meio", pressupõe igualdade efetiva de oportunidades. Ou seja, exige que as pessoas possam competir dentro de suas possibilidades reais. Um exemplo interessante é o do boxe, "esporte" nada humanista que tem tudo a ver com o espírito competitivo e brutalizante do Capitalismo. Pois bem, evidenciado o descalabro da luta entre pequenos e grandes, criou-se, em 1753 [2], o primeiro regulamento do boxe, determinando que os boxeadores lutassem com adversários de peso parecido. Simplificadamente, todos teriam capacidade de tornar-se campeões do mundo. De outra maneira, onde estaria a graça?

O mesmo se dá em corridas de cavalo, automobilismo etc., sempre com separação por categorias, cada qual garantindo disputa “limpa e igualitária”. Se assim é em esportes típicos do Capitalismo, por que deveria ser diferente no funcionamento da economia?

A segunda característica, implícita nos conceitos utilitaristas que acabamos de colocar, é que a globalização dominante não faz nenhuma referência à distribuição do bem-estar. Nem do ponto de vista da justiça distributiva e nem mesmo sob o aspecto da produtividade do sistema. Assim, a teorização utilitarista permite que se possa estar na melhor situação social possível seja sob distribuição perfeita seja sob concentração máxima de bem-estar.

3. Vejamos agora como a sociedade brasileira - seja o setor privado seja o setor público - decide alocar seus recursos e como ela se organiza para tal. Verifiquemos, primeiro, o comportamento do setor privado. Este investe pensando nos lucros que, reaplicados à melhor taxa possível [3], lhe permitirão maximizar seu patrimônio líquido no tempo, objetivo principal do capitalista. O lucro depende da procura pelos bens produzidos pela empresa. A procura, a demanda econômica, é a junção da vontade de possuir aquele bem, seja produto ou serviço, com a renda disponível adequada para comprá-lo.

A renda disponível no Brasil está nas mãos de poucos, conforme mostraremos adiante, e é das mais concentradas do mundo, como já citamos (Barros, Henriques e Mendonça, 2000 [4]). Os poucos que detêm a renda disponível já estão abastecidos do essencial e, além disso, se submetem ao mimetismo [5] que, por sua vez, é exacerbado em função da globalização. Estes poucos, portanto, procuram por bens e serviços crescentemente sofisticados e que são, para a grande maioria da população, absolutamente supérfluos. Juntando as pontas deste parágrafo, temos que as grandes possibilidades de lucro estão nos investimentos que produzirão o sofisticado. É pois para tais empreendimentos que o capital privado se voltará.

Verifiquemos, agora, o comportamento do setor público. Uma vez que o setor privado investe com grande preferência [6] para os que detêm a renda disponível, o Estado passa a ser pressionado de dois modos.

Primeiro, pelos próprios consumidores elitizados, para que lhes forneça a infra-estrutura necessária, bem como outros bens e serviços que garantam a utilização dos produtos sofisticados.

Segundo, é pressionado (embora não com a ênfase que a nosso ver seria desejável, como veremos) a atender as demandas dos não-elitizados por coisas simples e essenciais, como saúde, educação etc. que, decididamente, não são proporcionadas pelo setor privado pelo fato evidente de que tais camadas, como vimos, não se constituem, por falta de renda, em demanda econômica.

Ocorre, além do mais, conhecida relação perversa entre poder econômico e resultado de eleições, o que faz com que o Estado tenha atuação duplamente regressiva. De um lado, em conseqüência de a balança pender mais do que deveria para os impostos indiretos - sobre consumo e circulação, produção etc. - em relação aos diretos - sobre a renda, propriedade etc. -, a carga tributária brasileira é proporcionalmente maior para os mais pobres do que para os mais ricos. Conforme o IPEA [7], quem ganha até dois salários mínimos [8] paga de impostos 28% de sua renda, enquanto quem ganha acima de trinta salários mínimos arca com 18% [9]. De outro lado, 74% dos gastos sociais do Estado são absorvidos pelos 20% mais ricos [10].

Conclui-se, portanto, que a sociedade brasileira como um todo, setor privado mais setor público, se organiza alocando seus recursos, os chamados fatores de produção - trabalho, capital [11] e recursos naturais - de modo a não só perpetuar a desigualdade social mas a aprofundá-la.

4. Do ponto de vista do setor privado, é preciso atentar para o fato de que só pode haver redistribuição efetiva de renda se houver, antes, realocação dos fatores de produção, exigência da relação entre perfil de produção e perfil de renda [12]. De fato, uma vez tendo se decidido por perfil de produção sofisticado e efetivado o investimento, é praticamente nula a possibilidade de que os fatores já alocados sejam convertidos para o atendimento das necessidades essenciais, ainda que mais simples e fáceis de produzir.

Assim, a tentativa de redistribuição de renda monetária em favor dos mais pobres, sem correspondente oferta real dos bens que eles necessitam e desejam, redunda em inflação e/ou em consumo supérfluo, em razão de mimetismo ou ausência de alternativas de consumo, por parte dos que originalmente se tinha intenção de promover.

No que concerne às decisões públicas, principalmente quando tomadas por Estado de país com grandes desigualdades sociais, elas devem ir na contramão da demanda embasada em renda, o que, como vimos no parágrafo anterior, não ocorre no Brasil. Quanto maior a desigualdade social, maior e mais progressiva deve ser a intervenção estatal, o que implica em carga tributária maior.

Todavia, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, constata-se que a carga tributária no Brasil é baixa quando comparada não só diretamente com as de outros países mas, principalmente, quando se leva em conta suas desigualdades de renda [13]. De fato, uma das funções importantes da política tributária/fiscal é ir no sentido de corrigir as desigualdades.

E pelo que se vê na nota 11A, há espaço enorme para aumentar a carga tributária no Brasil. O que é imprescindível é que, concomitantemente com o aumento, se transforme a regressividade em progressividade, desonerando os mais pobres e onerando os mais ricos [14].

Em resumo, decidido o perfil de produção, está definido o de distribuição. A redistribuição real de renda e riqueza, duradoura, se dá, portanto, na tomada de decisão da sociedade como um todo quanto aos investimentos a realizar, o que passa antes pela escolha dos bens e serviços a produzir.

5. Decorre do exposto que as pessoas que vivem em regime capitalista devem estar capacitadas em dois sentidos. Primeiro para, numa ação conjunta, política, influenciar na organização da sociedade quanto ao que deve ser produzido. E segundo para, numa ação individual, extrair das possibilidades decorrentes daquela organização social alternativas diversas de projetos de vida, ser capaz de escolher um deles, de executá-lo e, se for o caso, de reformulá-lo.

Amartya Sen chama a estes poderes das pessoas de "conjunto capacitário" (Sen, 2001:3). É com seus conjuntos capacitários que as pessoas exercerão as demandas econômicas e políticas, as primeiras mais condizentes, embora não necessária e totalmente, com o setor privado, e as segundas com o setor público. Parte, embora a menor, do que o setor público produz sofre influência da demanda embasada em renda. [15] Parte, também a menor, do que o setor privado produz sofre influência do poder político. De qualquer modo, é o conjunto capacitário das pessoas, individual e coletivamente, que determina como a sociedade organizará seus recursos de modo a produzir o que deseja. Define-se assim, também, a distribuição do bem-estar.

As pessoas são capazes, sob a organização econômica, social e política em que vivemos,  quando são "competitivas" no mercado e no seu relacionamento político. Esquematicamente, no primeiro caso, as pessoas são competitivas quando são capazes de auferir renda suficiente para satisfazer seus desejos/necessidades ou possuem riqueza passível de se transformar em renda. Ou combinação das duas que lhes garanta crédito.

No segundo caso, as pessoas são "competitivas" quando logram colocar no poder governos que priorizem políticas que lhes facilitem a consecução de seus projetos de vida. Para tal, necessitam de adequadas condições de educação, saúde - o que pressupõe boa alimentação, saneamento, prevenção e tratamento etc. - moradia, transporte, lazer etc. E, fundamentalmente, necessitam de poder de comunicação.

À simbiose já referida entre poder econômico e poder político junta-se o poder das comunicações. Daí a importância das políticas públicas em relação, de um lado, a rádio, televisão, jornal e redes informatizadas. E, de outro, à preservação da língua originária comum, parte essencial do conjunto capacitário que possibilitará às pessoas a consecução de seus projetos de vida. Finalmente alcançamos o ponto central do texto.

6. No item 4, concluímos que a distribuição social dos bens e serviços é, antes de tudo, uma questão de alocação dos recursos sociais, de como a sociedade organiza seus recursos em função do que decide produzir. Vimos também que a própria alocação social de recursos depende da distribuição. Mas confinamos esta apenas ao conceito de distribuição da renda. Após o item 5, fica claro que o conceito de desigualdade social é muito mais amplo do que o de desigualdade de renda. É, na verdade, uma questão de desigualdade de conjuntos capacitários.

Não há no Brasil indicadores amplos de conjuntos capacitários. O IDH - Índice de Desenvolvimento Humano, criado originalmente pelo PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, embora seja o início de uma verdadeira revolução na maneira de avaliar os países, em substituição à tradicional, limitadíssima e mesmo ilusória "renda per capita", ainda está restrito a poucos indicadores - esperança de vida ao nascer; taxas de alfabetização de adultos e de escolarização combinada; PIB "per capita". Outros indicadores vêm sendo desenvolvidos gradativamente pelo PNUD desde o primeiro relatório, em 1990, como o IPH-1, IPH-2, IDG e MPG (PNUD, 2001: 239) [16].

Destacamos a seguir alguns indicadores que, apesar de poucos, são de muita densidade, dando uma boa idéia de como está o conjunto capacitário do brasileiro e de como é sua distribuição entre a população.

O PIB "per capita"/ano brasileiro, em dólares PPC, é de 7.037, figurando como 57º entre os 162 países considerados no RDH [17] (PNUD, 2001:142). Em termos de IDH, o Brasil cai para 69º (PNUD, 2001:142).

No Brasil os recursos não transbordam, mas também estão longe de ser escassos. Poderiam propiciar qualidade de vida adequada para todos, apenas cortando excentricidades de consumo e de capitalização de uma minoria. De fato, os doze RDH emitidos pelo PNUD desde 1990 mostram muitos países que, com PIB "per capita" inferiores ao do Brasil, têm, além de IDH, indicadores isolados de qualidade de vida superiores.

É revelador o resultado de simulação de pobreza para o Brasil quando se assumem distribuições de renda de países da América Latina também submetidos a políticas neoliberais: o percentual de pobres no Brasil, que é de 33% da população, só seria maior, 41%, se tivéssemos a desigualdade de renda do Paraguai. Com a desigualdade dos outros dez, a proporção de pobres no Brasil seria sempre menor. E entre estes dez, seis têm PIB "per capita" (PPC) menor [18]. Na melhor situação, com desigualdade de renda do Uruguai (PIB “per capita” de 8879), a porcentagem de pobres no Brasil seria de 12% (Barros, 2000: gráfico 3 e PNUD, 2001: 142).

O Brasil está sempre entre os de maior concentração de renda [19].

Há no Brasil 49,7 milhões de indigentes, 29,3% de uma população de 169,5 milhões de habitantes. Indigente é a pessoa que vive em domicílio cuja renda média é de valor insuficiente “para se comprar uma cesta de alimentos que cubra minimamente necessidades calóricas básicas”. O valor considerado é de R$ 80,00/mês 1999. O menor índice é o do Estado de São Paulo, com 11,5%. O maior, o do Estado do Maranhão, com 62,4% (FGV, 2001) [20].

O valor do salário mínimo para cumprir os dispositivos da Constituição vigente - Art. 7º - era de R$ 1.101,54 [21] em dez/2001. O valor em vigor, também em dez/2002, de R$ 180,00 correspondia, assim, a 16% das necessidades.

O salário mínimo corresponderá, em maio/2002, de acordo com acerto político entre o Governo Federal e o Congresso Nacional amplamente divulgado, a R$ 200,00/mês equivalentes hoje, fev/2002, a cerca de US$ 80,00/mês. Em termos reais, representa 31% do valor efetivo do salário mínimo quando de sua implantação, em jul/1940 [22]. Há no Brasil 20,4% de pessoas que ganham até 1 salário mínimo e 42,3% que ganham até 2 salários mínimos. Há, além disso, 14,3% sem remuneração [23]. De acordo com informações do ministro do Trabalho e do Emprego, Francisco Dornelles, há no Brasil cerca de 16 milhões de aposentados, dos quais 3/4 ganham 1 salário mínimo.

Vejamos o quadro a seguir sobre participação na renda, na riqueza e na educação:

1% + rico 50% + pobre 20% + rico 80% + pobre
% da renda [24]

13

14

63

37

% da riqueza [25]

53

2

90

10

Educação (escolarização, em anos) [26]

13

4

(qualidade, % da dos países desenvolv.) [27]

80

20

(% alunos de 4ª série do ensino
fundamental analfabetos) [28]

0

11

O que temos no Brasil, portanto, é uma economia funcionando em torno de 20% + ricos permanentemente inseridos na globalização reinante, com dinâmica própria "quase" completa. Dos 80% restantes, 29%, os indigentes, são excluídos, com pouca ou nenhuma chance de virem a integrar a parcela dinâmica, resvalando sempre para a economia de subsistência. Os outros 51% ficam ao sabor dos resultados positivos e negativos da economia, atrelada que foi no Brasil aos erráticos movimentos especulativos dos capitais financeiros nacionais  e internacionais. Uma parcela pode ascender ao grupo dos 20% + ricos outra pode incorporar-se ao dos indigentes.

7. A expressão “dinâmica própria ‘quase’ completa” constante do último parágrafo se justifica em razão do custo da desigualdade social. Este restringe fortemente o funcionamento da economia que, por sua vez, acaba por agravar a desigualdade social, desencadeando processo perverso cumulativo.

Exemplos de custos, inclusive custos de oportunidade, derivados da desigualdade social:

Quanto custam os congestionamentos - combustível, tempo, estresse etc. - provocados por carros velhos mal conservados? E os viadutos, pontes, vias “rápidas”, sistemas de semáforos e de radares etc. por falta de transporte coletivo adequado? Na mesma linha, quanto custam os acidentes de trânsito e do trabalho? E tantas coisas mais ligadas ao automóvel?

Quanto custa, em termos de tratamento, de prevenção, de seqüelas, de horas de trabalho perdidas, a volta de doenças já extintas como a malária, a tuberculose, a dengue etc.?

Em quanto a produtividade é afetada pelo analfabetismo, inclusive o funcional, o baixo número de anos de estudo, a má qualidade do ensino, o morar longe e mal, a subnutrição?

Quanto custa a desesperança das pessoas por não conseguirem vislumbrar projetos de vida libertários, bem como a falta de solidariedade?

O que principalmente o último item, mas os demais também, têm a ver com a violência e, portanto, com o custo da segurança? Quanto custa a ausência de cooperação entre cidadãos, empresas e instituições, ou seja, a falta de capital humano social [29]?

8. A comunicação globalizada afeta os códigos e os meios em que aqueles transitam. É conhecida a concentração de propriedade dos meios de comunicação e, portanto, das respectivas redes e sua penetração mundial. Estes fatos facilitam a homogeneização dos desejos e, assim, da demanda e da produção, cuja escala se amplia, reduzindo custos e aumentando lucros. Esta é uma das explicações para o também conhecido rápido processo de concentração de renda e riqueza que vem ocorrendo no mundo.

Os estrangeirismos [30], inerentes à globalização, nos chegam por todos os poros. Pela televisão, rádio, jornais e revistas. Estão nas teclas dos microcomputadores, das máquinas de calcular, de aparelhos eletroeletrônicos, dos automóveis, bem como de seus manuais que, quando são traduzidos, o mais das vezes não o são adequadamente. Estão nos livros didáticos, nas listas telefônicas, nas bulas dos remédios; nos laboratórios, nos instrumentos de medição e de análise. Na Internet, nas páginas individualizadas e de busca. No comércio em geral, especialmente nos grandes centros comerciais.

Tudo facilitando a absorção de produtos quase sempre sofisticados e destinados aos 20% + ricos. É por esta razão que proliferam cursos de línguas estrangeiras, não para estudar a literatura dos respectivos países, o que seria culturalmente enriquecedor, mas para adaptação rápida à comunicação imposta pela produção globalizada. Estes cursos são procurados pelos 20% + ricos. Para boa parte dos 80% + pobres, nem mesmo a língua portuguesa parece ser a sua. A grande maioria de nossos jovens universitários tem dificuldade para entender palavras simples e sua redação é de comunicação muito difícil.

CONCLUSÃO

Mesmo na hipótese irrealista de efeitos neutros da globalização sobre a sociedade brasileira, a segregação que ocorreria dentro do Brasil já exigiria cuidados especiais quanto à língua, dada a diferença enorme de poder de persuasão e de interpretação, ou seja, de capacitação, entre os 20% + ricos e os 80% + pobres. Considerando a globalização, a preocupação aumenta muito, pois há simbiose de desejos e interesses entre, de um lado, os investidores/empreendedores dos países hegemônicos que tomam as decisões do que produzir e, de outro, os 20% + ricos do Brasil. O padrão de consumo e produção estrangeiro penetra com "naturalidade" em nossas classes abastadas e, com ele, toda a cultura que originalmente o envolve.

Pergunta-se em quanto é reduzida, pelas agressões à língua portuguesa, a competência já muito baixa dos 80% + pobres para, pessoalmente, tomar decisões referentes a seus projetos de vida? E para, politicamente: a) Influenciar decisões sobre alocação social de recursos, base de um Projeto de Nação redistributivo? b) Rejeitar modelos econômicos e sociais, leis, acordos internacionais, "consultorias", "pesquisas" etc. que não do seu interesse? d) Não ser massa consumista/mimetista de produtos estrangeiros concorrentes de nacionais? e) Resistir aos apelos de que a globalização é caminho seguro e único?

Fica evidente a enorme relevância da comunicação social no ambiente de “globalização” em que vivemos. Conforme vimos, quanto maior a ênfase no mercado e na competitividade, maior deve ser o empenho na capacitação das pessoas, seja em termos de renda, seja em termos de outros atributos, como saúde, educação, moradia etc. Entre estes outros atributos, um dos mais essenciais à capacitação é o da comunicação. E dentro desta, evidentemente, a língua nacional. Esta precisa ser respeitada e resguardada em cada país, se queremos chegar um dia a uma língua universal humanista.

Registre-se, assim, a importância de se discutir com seriedade o Projeto de Lei do Dep. Fed. Aldo Rebelo dispondo sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da língua portuguesa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Ricardo Paes de; HENRIQUES, Ricardo; MENDONÇA, Rosane. Desigualdade e pobreza no Brasil: a estabilidade inaceitável. Rio de Janeiro: IPEA, 2000.

BARROS, Zélia de Oliveira. Fatores sociais e familiares que influenciam na educação escolar. Santos: Unisantos, 2000. Mimeo.

BATISTA,  Jr., Paulo Nogueira. A economia como ela é. São Paulo: Boitempo, 2000.

GONÇALVES, Reinaldo. A quadratura do círculo. Revista "Teoria e Debate" no. 14. São Paulo: Perseu Abramo, 1991. Via Internet: www.fpabramo.org.br/td

NORTH, Joseph. Nenhum homem é estrangeiro. São Paulo: Scritta, 1991 (original: 1958).

PASTORE, José; SILVA, Nelson do Valle. Mobilidade social no Brasil. São Paulo: Makron, 2000.

RAMOS, Carlos Alberto. Imposto distributivo do gasto público: uma análise a partir da PCV/1998. Rio de Janeiro: IPEA, 1998. Via Internet: www.ipea.gov.br

SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001 (original: 1992)

SUNG, Jung Mo. Desejo, mercado e religião. Petrópolis: Vozes, 1998.

OUTRAS FONTES:
BERNARDI, Iara - Dep. Fed. Relatório para a Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei no. 1676/1999 do Dep. Fed. Aldo Rebelo. Brasília, 1999.

BRITTANICA, do Brasil Publicações Ltda., Encyclopaedia. Enciclopédia Internacional Mirador. São Paulo: Brittanica, 1977.

FGV - Fundação Getúlio Vargas. Mapa do fim da fome. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

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PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas do desenvolvimento humano no Brasil. Brasília: PNUD, 1998.

PNUD - Programa das Nações Unidas para o  Desenvolvimento. RDH - Relatório do Desenvolvimento Humano 2001. Lisboa: Trinova, 2001.

REBELO, Aldo. Culta, bela e ultrajada - um projeto de lei em defesa da língua portuguesa. Brasília: Centro de Documentação e Informação, PL no. 1676/1999.

REPÚBLICA, revista mensal, no. 64, fev/2002.

(*) José Pascoal Vaz é economista e professor universitário, doutorando em história econômica na USP/FFLCH, tendo representado o MNDLP e a Universidade Católica de Santos (Unisantos) no Fórum Social Mundial-2002, realizado em Porto Alegre/RS em 1/2002. Sobre o tema, ele também escreveu artigo publicado em 9/2/2002 no Jornal da Orla, da Baixada Santista (SP).

Este artigo resume palestra proferida, em 1º fev/2002, no II FSM - Fórum Social Mundial/Oficina "Língua e identidade: que política lingüística, para quê globalização? O caso da língua portuguesa", que teve como organização proponente a Associação dos Docentes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ADUFRGS). O autor procurou levar em conta a rica diversidade/heterogeneidade, não só das pessoas presentes à palestra, bem como daquelas que vierem a ler este artigo.

NOTAS: (Clique no número entre colchetes no início da nota para retomar a leitura do texto)

[1] Independentemente do sistema político, cada um de nós deve ser o mais competente possível a fim de contribuir para a maximização do bem-estar geral.

[2] Portanto, vinte e três anos antes do livro-marco da economia liberal "Riqueza das Nações", de Adam Smith (Mirador, 1977: 1516).

[3] Taxa mínima atrativa, ou custo de oportunidade ou taxa de reaplicação.

[4] A utilização da renda disponível como determinante da demanda econômica é uma simplificação neste ponto do texto, tendo em vista seus objetivos. Na verdade, a demanda econômica é determinada por outros fatores, que chamamos de "Conjunto Capacitário", ao qual nos referiremos sucintamente à frente.

[5] "É por causa do 'ser' misterioso e infinito que se busca por 'trás', por ex., de um carro importado, um grande objeto de desejo mimético hoje, que as pessoas não aceitam e nem compreendem o porquê da redistribuição de renda ou de reformas estruturais profundas”. Como a idéia de um homem totalmente novo "não é historicamente possível, o desejo mimético de apropriação é um componente antropológico e social com o qual devemos aprender a lidar" (Sung, 1998: 69, 70).

[6] É possível o setor privado investir para produzir bens e serviços para consumidores de baixa renda. Isto, porém, desde que o lucro unitário, certamente menor, resulte em lucro total compensador, devido à quantidade maior.

[7] Cf. Rui Nogueira na revista "República" n. 64, p. 33, citando trabalho do IPEA de 2001.

[8] Ver quantos ganham salário mínimo em parágrafo específico do item 6.

[9] Observe-se que a igualdade de percentuais já seria injusta, dada a evidente maior utilidade marginal da renda para os mais pobres.

[10] Informação à imprensa do economista José Serra enquanto Ministro da Saúde. Ver tb. Ramos, 1998: 20.

[11]/[11A] Não entramos aqui na discussão sobre ser o capital trabalho acumulado.

[12] O grau desta relação cresce com o aumento da participação do setor privado na economia. Um Estado mais presente enfraquece a relação. Como estamos vivendo o neoliberalismo que prega o Estado mínimo...

[13] A carga tributária bruta de 18 países selecionados, em 1998, foi de 43,2%PIB (média simples), enquanto a do Brasil foi de 29,3% (Batista, 2000: 186,191). Para 16 daqueles 18 países (não consta informação para dois deles), a relação entre a renda “per capita” (consumo “per capita” para três dos países) dos 20% mais ricos e a dos 20% mais pobres é de 4,6 (média simples). No Brasil, tal relação é de 24,4 (PNUD, 2001: 182,183).

[14] Ver no item 6 dados sobre a concentração de renda no Brasil.

[15] Mais relacionada com o Código do Consumidor.

[16] Tentativas têm sido feitas no sentido de se considerar a distribuição desses indicadores entre as populações analisadas, bem como em aprimorar a apuração do dólar PPC – Poder de Paridade de Compra, um dólar apropriado para comparações internacionais, utilizado nos RDH. Convenhamos que, embora haja muito para fazer, muito já foi realizado em apenas 12 anos de RDH, principalmente se considerarmos que já são 162 os países abrangidos, muitos com sistemas estatísticos incipientes. No Brasil, o braço do PNUD é um convênio entre o IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e a FJP - Fundação João Pinheiro, que têm  produzido o IDH para grande parte dos municípios brasileiros (PNUD, 1998).

[17] O PIB "per capita" é utilizado aqui para comparar potencialidades e não qualidade de vida.

[18] Entre parênteses, o PIB "per capita" e, entre colchetes, para quanto cairia a proporção de pobres no Brasil:

Honduras (2340) [31%]
Bolívia (2355) [21%]
Equador (2994) [22%]
El Salvador (4344) [23%]
Peru  (4622) [17%]
Venezuela (5495) [16%]

O Brasil, já vimos, (7037), [33%]. (Barros, 2000: gráfico 3 e PNUD, 2001: 142).

[19] Três comparações, cada qual com um indicador de concentração de renda diferente: a) Cf. o Coeficiente de Gini, entre 94 países só a África do Sul e Malawi têm concentração maior do que a do Brasil (Cf. Banco Mundial, in Barros, 2000: gráfico 4). b) Cf. a relação entre a renda “per capita” dos 20% + ricos e a dos 20% + pobres, entre 55 países o Brasil é o de  maior concentração (Cf. Barros e Mendonça, 1995 in (Barros, 2000: gráfico 5). c) Cf. a relação entre a renda "per capita" dos 10% + ricos e a dos 10% + pobres, entre 84 países o Brasil também é o de maior concentração (Barros, 2000: gráfico 6, com base no PNUD/RDH 1999).

[20] Ver 1ª página e 1º quadro – impressão via Internet, páginas do relatório não numeradas. Dados ref. a 1999.

[21] Cf. revista “República” n. 64, de fev/2002, pág. 73.

[22] Cálculo do DIEESE - Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais - www.dieese.org.br -, tb. referido na revista República n. 64, de fev/2002, pág. 73.

[23] De um contingente de 71,7 milhões de pessoas com 10 ou mais anos, ocupadas e que declararam (IBGE/PNAD-1999, quadro 4.1.7).

[24] IBGE/PNAD-1999, quadro 7.1.3.

[25] O dado ref. à riqueza do 1% mais rico é de 1991 (Gonçalves, 1991). Devido porém ao praticamente estável perfil de distribuição de renda no Brasil desde então, com a imensa maioria da população poupando zero, e considerando a elevada rentabilidade do capital na década de 90 e início desta, os 53% devem, inclusive, ter aumentado. Os dados restantes são estimativas que fizemos a partir do dado básico de 53% e de considerações relativas à propensão marginal a poupar.

[26] Estimativas nossas, utilizando IBGE/PNAD,1999: tab. 3.2.B e Pastore & Silva, 2000:tab. 3.4 e 3.5.

[27] Estimativas baseadas em nossa experiência docente e no Pisa – Programa Internacional de Avaliação de Alunos, coordenada pela OCDE, que considerou as áreas de matemática, leitura e ciências e alunos de 15 anos. Entre 32 países o Brasil ficou em último. Numa das simulações, em que se anulam as diferenças socioeconômicas e culturais, o Brasil (todas as classes sociais), em escala de 0 a 5, ficou com 2. Todavia, 58% dos alunos das classes altas ficaram com pontuação de 3 a 5 (OCDE, 2000).

[28] A taxa de analfabetismo de 11% é da pesquisa “Fatores sociais e familiares que influenciam na educação escolar”, efetuada em São Vicente/SP, sob convênio entre a FASES - Faculdade de Serviço Social da Unisantos – Universidade Católica de Santos e a  SEDUC - Secretaria de Educação daquela cidade (Barros,2000:15).

[29] Enfatiza-se aqui com "social" para distinguir de conceito que muitas vezes é utilizado como capital humano "empresarial", cujo enfoque é o aumento da produtividade sem relação com a distribuição social.

[30] "Mouse, chip, site, home-banking, fast-food, software, megabyte, holding, recall, franchise, coffee-break, self-service, startar, printar, bidar, atachar, database, interfeice (por interface), school bus, rice show, folhateen, clipping,  newsletter, personal banking, 50% off" etc. Ver a respeito Projeto de Lei no. 1676/1999 do Dep. Fed./PcdoB Aldo Rebelo bem como o Relatório da Dep. Fed. Iara Bernardi, da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados.