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HISTÓRIAS E LENDAS DE GUARUJÁ
Mariazinha das Flores

Faleceu em 2010 a guardiã da Maria-Fumaça do Guarujá

 

Sua idade? Segredo. Mariazinha das Flores fazia questão de não revelar, e faleceu em 2010, até o fim de sua vida cuidando carinhosamente de uma velha locomotiva que serviu à ligação entre o centro de Guarujá e o ferry-boat para Santos, em que eram transportados os passageiros, entre eles seu pai, trabalhador no porto santista:


Maricota das Flores

Foto: Francisco Carballa, em 2010, enviada a Novo Milênio pelo autor

Maricota das Flores

Francisco Carballa [*]

Se no domingo pessoas sozinhas ou com suas famílias caminhassem pelo Guarujá, era comum aos turistas ou moradores da cidade, ver a antiga locomotiva [01], que está guardada em um local envidraçado, com o jardim que a cerca adornado com flores de embira [02], colocadas ali uma ao lado da outra, tornando-se verdadeira atração turística para os visitantes da Pérola do Atlântico. Viam inclusive uma senhora sempre polindo as partes de bronze e madeira da máquina, sentada às vezes em uma cadeira, pronta para dar informações sobre a mesma relíquia histórica, chamada pelos antigos que a usaram ou conheceram de Maria Fumaça.

Eu ouvi falar do seu nome pela primeira vez, "Maricota das Flores" em 1988, quando entrei como ligador na Telesp; trabalhando no Plano de Expansão da Central 86 do Guarujá [03], perguntei sobre o tema para várias pessoas da estação telefônica até que o técnico da Central, Satorô (brasileiro descendente de japoneses), me disse: "Há, a Maricota das flores, boa pessoa!"

Não agüentando mais a curiosidade, perguntei a um funcionário sobre a origem do adorno no gramado e nas plantas, pois há muito eu vinha intrigado com a origem das flores assim colocadas com cuidado naquele local: desde 1980, aquilo já me chamara a atenção, principalmente ao ver uma senhora ali cuidando do canteiro.

Hoje as pessoas comentam mais sobre sua vida. Talvez por saber que ela já faleceu, ficam sem receio de afirmar detalhes e particularidades, o que não se atreviam a fazer antes. Assim, no bairro do Morrinho I, ouvi dizer que era uma pessoa de poucos amigos ou vizinhos, mas muito trabalho e economia, comprovada pelos R$ 200,00 que foram encontrados em seu nome numa conta bancária (ou em sua casa). Outro detalhe foi como ela entrava em sua casa todos os dias: ela levava uma colher de pedreiro em sua bolsa, pegava essa ferramenta e colocava debaixo da porta de entrada, calcando; assim levantava a porta para abri-la, pois havia uma diferença e ela usava esse artifício inteligente para poder entrar em sua varanda - talvez por não ter quem consertasse a porta para ela, ou falta de tempo. Também afirmaram alguns vizinhos que ela estaria freqüentando uma igreja protestante, o que me deixou surpreso, pois me pedira dias antes uma cópia da foto da Matriz velha e da imagem de Santo Amaro Abade, imagem que conhecia muito bem.

Originário do Rio Grande do Norte, seu pai migrou para cá devido às oportunidades do Porto de Santos e viveu no Guarujá (segundo moradores), ela era nascida no Guarujá, tendo como nome de batismo Maria Fonseca; segundo alguns ali passou toda sua existência, eu nunca tive a chance de perguntar esse detalhe de sua origem, pois é difícil pedir detalhes da vida pessoal das pessoas ou pouco se dá atenção para as que estão à nossa volta.

Raramente se conseguia falar com ela, pois sua vida era entre o trem, sua casa e suas compras necessárias para viver, mas pessoas como ela são a história viva e os detalhes que queremos saber; o difícil, como no caso de dona Mariazinha das Flores, era tentar perguntar coisas que não revelassem sua idade, sendo comum ela mudar de assunto ou não responder o que a comprometesse com seus eternos 75 anos de idade [04]; cheguei a ver a anciã em 1977 quando fui à procissão do padroeiro do Guarujá, enfeitando o andor de Santo Amaro no dia 15 de janeiro, ainda quando vivia dom Domenico Rangoni - inclusive o velho sacerdote tinha o costume, que aprendera com os caiçaras, de colocar a antiga imagem no altar eucarístico do lado esquerdo de quem olha para o presbitério, dizendo-me dona Mariazinha enquanto colocava as flores no andor que era para não chover no dia; certamente não chovia no dia 15 de janeiro, fazendo um sol muito forte.

Antes tarde do que nunca, consegui falar com ela e tentar entender o porquê de tanta dedicação a um veículo antigo de transporte, qual a sua relação com isso; aí descobri os laços de família, carinho e lembranças que permanecem mesmo depois da partida de quem amamos. Mas, para ter certeza que aquela era justamente a locomotiva que fez parte de sua vida, acredito que alguns detalhes da mesma locomotiva a fizeram ter certeza que seria justamente aquela, talvez pelo número 02 que está em sua frente, ou - sendo duas - seria uma das que iam e vinham, e certamente ela observou as partidas e chegadas de seu pai, como qualquer criança. Mas o certo é que serviu ao seu pai, segundo o que afirmou, e ainda me indicou o local da velha matriz, pois está em uma das fotos bem em frente ao local que ela me havia apontado com certeza, pois embora tivesse tantos anos, era de uma mente lúcida, inteligente e educada com quem não adentrava muito em sua vida; para posar para as fotos, pegou rapidamente um pequeno espelho, pintou os lábios e passou lápis nos olhos, ajeitou o uniforme e disse estar pronta para ser fotografada...


Maricota das Flores e o autor Francisco Carballa

Foto: Francisco Carballa, em 2010, enviada a Novo Milênio pelo autor

Com ela falando em junho de 2009, me disse que o nome surgiu de um padre da velha matriz incendiada, e de Nossa Senhora das Graças [05], devido à sua devoção e piedade cristã.

E assim fiquei sabendo o que repetia a todos que perguntavam a origem de seu apelido, que ela costumava ir à igreja de Santo Amaro onde havia uma imagem do Senhor dos Passos caindo e se encostando a uma pedra com uma das mãos (imagem típica da arte portuguesa), e outra imagem de Nossa Senhora da Graças, justamente onde ela ia enfeitar esse altar (ou nicho); ela não me disse como era esse abrigo da imagem dentro da velha igreja, mas pelo formato europeu, meio inglês, polonês, norueguês, estadunidense ou do Sul do Brasil, acredito tratar-se de uma peanha e não de um altar - essa informação somente um morador antigo ou pesquisador do local poderá elucidar, mas antes de 1929 não seria o título mariano de Fátima. Aparecendo os arranjos de bom gosto, com as flores colhidas nos matos do lugar, deixou o padre curioso de quem os fazia e de quem era a idéia de tais arranjos, então um dia ele ficou esperando escondido e finalmente a surpreendeu:

Na igreja, perguntou o padre - Qual o seu nome?

Temerosa, respondeu - Maria!

Em atenção a sua piedade, ele disse - Então você vai se chamar Mariazinha [06] (ou Maricota) das flores!

Não houve quem lhe tirasse o apelido carinhoso, sendo que o padre, dom Domenico Rangoni, falava que a Mariazinha tinha as mãos divinas, em alusão aos arranjos de flores que fazia na igreja - no caso, na Matriz nova -, mas em décadas anteriores.

Assim perguntei para ela o porquê de enfeitar com flores de embira o jardim do local onde estava a locomotiva naquela forma de carreiros, pois isso eu já conhecia desde os anos de 1980. Ela me disse que aquela forma de adorno tinha origem na China [07], e que se os servos não fizessem assim nos jardins, não comiam, ou seja, não recebiam alimento pelo seu trabalho, de onde vem essa informação da velha China eu não sei, mas assim ela sustentava o que dizia, incluindo que a locomotiva fora o transporte do seu pai até a travessia de catraias e finalmente a Docas de Santos, de onde ele tirava o sustento de sua família. Dizia ainda que as pessoas não davam mais valor para as coisas dos antepassados, e tudo era tratado de qualquer forma ou se estragava.

Repórteres que perguntassem a sua idade arranjariam dor de cabeça: ela era uma mulher muito vaidosa, não gostava de falar da sua idade; cena como essa eu cheguei a ver na linha 38 de ônibus do Guarujá (Ferry Boat via Santa Clara Morrinhos), quando alguém no ônibus lhe ofereceu o lugar, recebeu um não e dependendo da forma como era oferecido ela ficava ofendida, como ocorreu com o motorista que perguntou a ela quem era mais velha, se ela ou a locomotiva. Bem, no final ele foi suspenso por uns dias [08]. Ela sempre penteava os cabelos, usava batom vermelho, lápis nos olhos - que alguns afirmavam ficar parecendo como uma egípcia - e usava o uniforme da prefeitura, no local onde ficava enfeitando a sua amada locomotiva, recordação do seu pai que tanto amou; inclusive, era comum ela polir os bronzes e ainda perfumar o trem.

Imaginando a cena em minha cabeça, surge uma questão: construída em 1893, a Matriz, segundo informações, sofreu o incêndio em 1939. Em um registro, Mariazinha teria 84 anos de idade, e no documento 75. Mas, do ano 1939 até 2010 temos 69 anos, para ela ter a capacidade de fazer os arranjos, usar duas tranças grandes e ir sozinha até a igreja e alcançar a mesa do altar teria no mínimo entre 10 a 12 anos, assim fica a incógnita de sua idade. Ao lhe perguntar onde ficava o prédio, ela me mostrou o local da velha matriz que ficaria justamente na esquina da Rua Leomil com Avenida Puglisi, justamente de frente para o lugar de onde tirei a foto com a senhora que zelava pela locomotiva, afirmando ela que fora ali que ganhara o apelido, mas a idade é que deixaria todos surpresos, pois entre tudo ela teria que ter no mínimo 80 anos de idade no momento da morte; ainda pode existir a hipótese de que ela na verdade iria a um local onde a imagem centenária do Patrono, teria ficado [09], até que finalmente começassem os trabalhos da construção da nova casa de Deus em Guarujá, mas com os anos ela vivia entre a locomotiva de dia e à noite pegava uma condução para o bairro dos Morrinhos I, e ali, junto com ela, vivia um sobrinho que fora estudar no Rio de Janeiro e por isso sua família não soube de seu passamento. Também no dia de seu sepultamento no cemitério da Vila Julia, onde fiquei sabendo que um parente estaria vindo do Rio Grande do Norte, segundo o que me contaram. Seu caixão, por razões óbvias, estava lacrado.

Ao sair da escola, onde sou professor da Rede Estadual de Ensino, no bairro dos Morrinhos I, justamente no dia 6 de dezembro, passei pela porta da casa dela na Rua Marcos Antonio Oggiano nº 260, conhecida pelo pé de abeto [10], seco em sua frente e o muro alto, onde vivia a anciã, sentindo um forte cheiro de podre ainda resmunguei: "Credo, tem rato ou algum bicho morto por aqui!" ao que o vizinho da firma ao lado da casa começou a rir do que falei, por ser normal haver ratos ou bichos atropelados, mas sem desconfiar de que a coisa era mais grave e bem do seu lado, assim segui meu rumo. Logo depois descobri, pelo jornal A Tribuna do dia 8 de dezembro [11], que ela havia falecido sozinha dias antes e que iria ser enterrada como indigente, ao que eu e a professora Ana fomos, por caridade cristã, ao seu enterro, mas a prefeitura em última hora pagou a caixa funerária, sendo seu corpo inumado no cemitério da Vila Julia para os fundos do lado esquerdo da capela, em uma sepultura com a cruz de madeira danificada pela falta da trave; no final da tarde desse mesmo dia, para homenagem da figura tão conhecida do Guarujá, havia flores de todos os tipos ofertadas como homenagem final e inclusive no local velório havia um lindo exemplar de Embira, com suas flores amarelas caídas ao chão como um tapete saudando a MARICOTA DAS FLORES.

MARIA FONSECA REQUIEN AETERNA EIS DOMINE [12].

[*] Francisco Carballa é professor da rede estadual e pesquisador de História em Santos.

N.E.: observe-se o acróstico formado com as iniciais dos parágrafos.


Matriz do Guarujá que sofreu incêndio em 1924, e o santo patrono

Montagem de imagens por Francisco Carballa, enviada a Novo Milênio pelo autor


NOTAS:

[01] Sendo uma das duas que têm registros em fotos.

[02] Hibiscus tiliaceus ou Embira do Mangue.

[03] Quando novas linhas eram instaladas e assim era necessário, mão-de-obra extra de outras centrais dava apoio à instalação de nova série de terminais telefônicos.

[04] Em um documento havia o registro de 75 anos e no outro de 84.

[05] Atualmente essa invocação da Virgem Maria é a patrona de Vicente de Carvalho (Itapema), restando a dúvida se seria essa a mesma imagem que foi levada para lá.

[06] Maricota ou Mariazinha, forma popular caiçara de se chamar Maria.

[07] Os jardineiros dos Ricos, Mandarins e do Imperador realmente faziam diversos adornos nos jardins de seus senhores com flores.

[08] Relato recente.

[09] Livreto Pérola ao Sol - pag. 55.

[10] Pinheiro europeu.

[11] A Tribuna, 4ª feira, 8 de dezembro de 2010, caderno A e pág.10

[12] Prece milenar em favor dos falecidos, extraída de Livro não reconhecido pela Igreja, O Evangelho de Nicodemos do séc. I d.C.


Maricota das Flores e Francisco Carballa

Foto: Francisco Carballa, em 2010, enviada a Novo Milênio pelo autor

Em 8 de dezembro de 2010, na página A-10, o jornal santista A Tribuna registrava:

Guarujá perde a Mariazinha das Flores

Mulher que enfeitava a Maria Fumaça foi encontrada morta

Da Redação

Guarujá perdeu uma de suas figuras mais conhecidas. A ironia é que ela talvez seja enterrada como indigente. Maria Fonseca, mais conhecida como Mariazinha das Flores, foi encontrada morta na tarde de ontem em sua casa em Morrinhos. Ela tomava conta da Maria Fumaça, a locomotiva que fica exposta na Av. Leomil, no Centro.

Todos a conheciam como a mulher que enfeitava de flores o veículo histórico da Cidade, sua grande paixão. Porém, o perfume floral nem de longe estava presente no triste cenário em que ela se encontrou na morte. Acionada por vizinhos, a Polícia Militar foi à casa de Mariazinha e a encontrou morta. Seu corpo se encontrava em estado de decomposição.

Mariazinha morava sozinha e não tinha nenhum parente próximo. Como não foi encontrado nenhum documento dela, a Polícia Militar teria que registrar um Boletim de Ocorrências como indigente para que seu corpo pudesse ser retirado da casa. Por volta das 20 horas isso ainda não tinha ocorrido. Caso seus documentos sejam encontrados ou alguém consiga contatar algum parente, ela não precisará ser enterrada como indigente. Até o fechamento desta edição ninguém tinha conseguido isso ainda.

RISCO

A polícia não encontrou documentos em sua residência e a ex-funcionária pública municipal corria o risco de ser enterrada como indigente

 

História – Em março deste ano A Tribuna fez uma reportagem sobre Mariazinha, que afirmou ter 75 anos. Funcionária municipal desde 1982, ela disse que gostava da Maria Fumaça por causa de seu pai.

"Se não fosse por causa dessa locomotiva, meu pai, que era estivador, teria que ir andando todos os dias até Vicente de Carvalho para chegar ao Porto de Santos. Por isso cuido tão bem dela", disse na época.


Mariazinha cuidava diariamente da locomotiva por causa de seu pai

Foto: Rogério Soares, publicada com a matéria

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