Arqueólogo Manoel Gonzalez usa pincel para limpar fragmentos de restos humanos, que ajudam a
entender a história dos primeiros povos
Foto: Edison Baraçal, publicada com a
matéria
HISTÓRIA
Descoberto em Guarujá maior sítio arqueológico da América
Sambaqui foi achado por agentes da Secretaria de Meio-Ambiente entre a Serra do
Guararu e o Canal de Bertioga
Alessio Venturelli
Da Redação
Um verdadeiro tesouro da história da evolução humana foi
descoberto no último dia 22 de junho, em Guarujá, por agentes da Secretaria Municipal de Meio-Ambiente, durante um patrulhamento de rotina pelas
imediações do Rio Crumaú - região de mangue localizada entre a Serra do Guararu e o Canal de Bertioga. Trata-se
do maior sítio arqueológico dos povos indígenas que habitaram o litoral das Américas no período arcaico (ou pré-cerâmica), compreendido entre 8 mil
e 500 a.C.
Um enorme cemitério pré-histórico se formou, ao longo de milhares de anos, numa montanha de
calcário e matéria orgânica (de 31 metros de altura e cerca de 100 de largura), resultado da sedimentação de conchas, ossadas humanas, fragmentos de
peixes e de mamíferos que ali se compactaram com o tempo.
Apesar de pouco comuns, essas formações são conhecidas por arqueólogos e têm sido identificadas em
quantidade cada vez maior nos últimos 30 anos, principalmente no Litoral Paulista. Chamam-se sambaquis (palavra derivada da língua tupi, que
significa monte de conchas), mesmo nome como também são denominados os antepassados que habitaram o Continente Americano durante esse período.
|
Material pertenceu aos povos indígenas que habitaram o litoral no período arcaico (ou
pré-cerâmica), compreendido entre 8 mil e 500 a.C. |
|
História - Registros históricos dão conta que esses grupos primitivos eram nômades,
panteístas (cultuavam animais como deuses) e viviam basicamente da caça e coleta de moluscos. As carapaças desses animais eram utilizadas como
principal matéria-prima para a fabricação de utensílios domésticos, adereços. Também serviam para a construção de suas sepulturas que, reunidas,
formavam essas montanhas funerárias, hoje chamadas de sambaquis.
Encontradas principalmente no litoral brasileiro, essas formações não costumam passar de dois
metros de altura, o que torna a recente descoberta ocorrida em Guarujá algo mais do que especial para os estudiosos da evolução humana.
"É o maior sambaqui já identificado em todo o planeta", garante o arqueólogo Manoel Gonzalez,
diretor do Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Ele estima que centenas de esqueletos humanos
estejam enterrados no local, devido às dimensões do sítio arqueológico.
"Ele tem quase dez metros a mais do que o maior sambaqui até então identificado, que é o Garopaba
Sul, de 22 metros (localizado em Santa Catarina)", compara Gonzalez. Há quatro anos o diretor pesquisa essas estruturas em rios e manguezais da
Baixada Santista, onde já encontrou evidências da história desses povos.
"Tratam-se de antepassados dos índios tupiniquins e tupinambás que habitaram o nosso litoral na
época de transição entre o período pré-cerâmico e pós-cerâmico", revela o diretor, contando que apesar de ainda não terem uma organização social,
nem explorarem a cerâmica, há indícios de que esses grupos utilizavam o fogo para preparar alimentos e fazer seus rituais religiosos, o que
evidencia um processo evolutivo em curso nesse período.
"Nesses locais, nunca foi encontrado nada escrito ou pintado, como foi visto em cavernas do
interior do País (datadas de 24 mil anos). Temos só o que eles deixaram de cultura material, que são os seus sepultamentos, rochas polidas em forma
de animais (zoolitos), restos de ossadas, principalmente de tubarão, tartarugas e golfinhos", diz Gonzalez, que acredita que, mais do que
cemitérios, os sambaquis tinham por finalidade sediar rituais primitivos.
31 metros |
de altura tem a montanha de material calcário,
que alcança 100 metros de largura |
|
Rituais - "A gente acredita que esses animais não eram utilizados somente para a
alimentação, mas também como oferendas aos mortos", explica o arqueólogo da USP. Ele acredita que, com a descoberta em Guarujá (a maior registrada
até então) será possível talvez encontrar novas evidências nesse sentido.
"Certamente vamos encontrar novos subsídios a respeito desses grupos, quando começarmos a fazer as
sondagens", supõe o arqueólogo, contando que a descoberta já foi registrada no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e deve
ser iniciada dentro de pouco tempo.
"Em breve, vamos começar os primeiros trabalhos de escavação no local. A idéia é tentar fechar os
laços que ainda continuam abertos sobre esses grupos. Vamos fazer o manejo preservacionista dessa área e tirar apenas as informações que
necessitamos, sem destruí-la", garantia.
"É o maior sambaqui já identificado em todo o planeta" - MANOEL GONZALEZ, diretor do Centro
Regional de Pesquisas Arqueológicas do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
Foto: Edison Baraçal, publicada com a
matéria
Acesso difícil ajudou a preservar
Se não estivesse incrustado em uma das regiões mais inóspitas e de difícil acesso da Ilha de Santo
Amaro, certamente o maior sambaqui já avistado no mundo (batizado de Crumaú 1, devido à localização em que se encontra) não teria sobrevivido ao
processo de ocupação do território brasileiro.
Isso porque, por muitos séculos, principalmente durante o período da colonização portuguesa, os
sambaquis foram utilizados para produção de cal - principal matéria-prima da construção civil naquela época. Misturado ao óleo de baleia, ele era
transformado em argamassa e servia como cimento e asfalto.
Registros históricos apontam que muitas edificações de Santos, datadas dessa época, foram erguidas
a partir da exploração dos sambaquis, como foi o caso do Casarão do Valongo,
Mosteiro de São Bento, Theatro Guarani, Casa do Trem Bélico,
Outeiro de Santa Catarina, entre outros prédios do período colonial.
Sobrevivente - No caso do Crumaú 1, a densa área de mangue que se formou em torno dele - ao
longo de cerca de 2 mil anos -, além da volumosa vegetação secundária que ocupou praticamente toda sua cobertura a partir de então, foram os fatores
fundamentais para a sua preservação. Situação semelhante ocorreu com outros 19 sambaquis localizados em regiões alagadiças da Baixada Santista.
A maior concentração está nas imediações do Canal de Bertioga, onde já foram identificados sete no
total: dois na área do Monte Cabrão, três no Largo do Candinho, um no Iriri,
além do recém-descoberto do Rio Crumaú.
Exceto este último, nenhum dos demais atinge mais de dois metros de altura, segundo o arqueólogo
Manoel Gonzalez. "Apenas em Cubatão há um sambaqui que se assemelha ao do Rio Crumaú, em termos de dimensões", diz ele, contando que este foi
descoberto há cerca de um ano no Núcleo Cotia-Pará e já está sendo explorado.
"Trata-se de um sítio arqueológico de 20 metros de altura (o terceiro maior do mundo)", destaca o
arqueólogo. "Nós já temos a topografia dele, e as escavações devem começar no dia 27 deste mês". |