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HISTÓRIAS E LENDAS DE GUARUJÁ
Um avião constitucionalista no fundo do mar-1

Em 1932, o Kavuré-Y desapareceu nas águas da praia de Pitangueiras

Esta notícia foi publicada no jornal santista A Tribuna, em 30 de setembro de 1984, em sua seção Baixada & Litoral:


Gilmar, em frente ao local onde Ribeiro e Bittencourt foram abatidos
Foto publicada com a matéria

Mergulhador procura avião abatido em 32

GUARUJÁ - O mar, na Praia de Pitangueiras, esconde, há 52 anos, um avião de guerra e os restos de dois corpos, relíquias até hoje intocadas da Revolução Constitucionalista de 1932. Resgatar os destroços do aparelho e, quem sabe, os despojos de seus dois ocupantes, é a tarefa a que está se propondo o mergulhador Gilmar Domingos de Oliveira, um químico industrial, de 29 anos, residente no centro de Guarujá, autodidata em História e incansável pesquisador do movimento constitucionalista.

Gilmar pertence à Santos Sub, uma entidade criada em Santos, para o aprendizado e desenvolvimento de atividades subaquáticas, que o está apoiando em suas pesquisas sobre a batalha naval ocorrida no dia 24 de setembro de 1932, na orla de Pitangueiras. Nela, o avião de combate dos revolucionários, Kavuré-Y, caiu ao mar, após um ataque ao cruzador Rio Grande do Sul, um dos navios da Marinha que bloqueavam o Porto de Santos. No acidente desapareceu José Ângelo Gomes Ribeiro, considerado o ás da aviação constitucionalista, e seu companheiro Mário Machado Bittencourt.

Os corpos dos dois pilotos desapareceram com o avião, acreditando-se que ainda estejam entre os destroços do aparelho. Segundo cartas marítimas obtidas por Gilmar em suas pesquisas, e relatos históricos de ex-revolucionários, alguns deles tripulantes do cruzador Rio Grande do Sul, o Kavuré-Y, avião do tipo Curtiss Falcom, de fabricação americana, considerado moderno para a época, está afundado perto da Ilha da Moela, a uma profundidade entre 14 e 15 metros.

Gilmar acredita que os destroços não foram destruídos pela ação das águas, pois a aeronave tinha sua estrutura principal feita de duralumínio.

Não se sabe, até hoje, se o Kavuré-Y foi abatido a tiros pela bateria anti-aérea do cruzador, ou sofreu uma pane. As duas versões divulgadas na época interessavam aos dois lados em conflito.

As forças federais, defensoras do Governo Federal, de Getúlio Vargas, reforçaram a tese de que o ás do Grupo Misto de Aviação do Estado de São Paulo - como era denominada a aviação rebelde - José Ângelo Gomes Ribeiro, foi abatido. Os revolucionários, por sua vez, respaldados em depoimentos de técnicos da época, afirmavam que o Kavuré-Y teve problemas em uma das válvulas injetoras de combustível, o que já era previsível, diante do grande número de missões em que aquele aparelho participou, sem a devida manutenção, devido às dificuldades com que operavam as tropas constitucionalistas.

Uma luva - Para o mergulhador Gilmar Domingos de Oliveira, porém, não interessa como o Kavuré-Y caiu. O mais importante, no momento, é saber exatamente onde. Após a queda, alguns destroços vieram ter à praia e compunham, segundo os relatos, a parte menos consistente. Dos dois tripulantes, o único sinal foi uma luva, encontrada na Praia de Pitangueiras, logo após o combate, por um morador das imediações, Atílio Gelsomini.

Durante 25 anos, Atílio guardou o objeto consigo. No dia 15 de setembro de 1957, a Sociedade Veteranos de 1932, em comemoração a seu jubileu de prata, inaugurou, em Pitangueiras, um monumento aos dois aviadores desaparecidos, tendo comparecido ao ato o jovem tenente-aviador Carlos Roberto Gomes Ribeiro, filho de José Ângelo Gomes Ribeiro. Em meio à solenidade, Atílio aproximou-se do jovem e lhe entregou a luva, que foi imediatamente reconhecida por familiares e antigos combatentes, presentes ao ato, como pertencente ao ás da Aviação Constitucionalista.


Em 1957, o filho de Ribeiro recebeu as luvas que pertenceram a seu pai
Foto publicada com a matéria
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O tenente José Ângelo Gomes Ribeiro era filho do general Gomes Ribeiro, paradoxalmente na época comandante da 1ª Região Militar, no Rio de Janeiro. José Ângelo, considerado um dos mais brilhantes oficiais do Exército, logo aderiu à Revolução Constitucionalista, tornando-se piloto e instrutor da aviação revolucionária, tendo se destacado pela ousadia com que participava das missões de combate. Isso o tornou conhecido e temido entre as tropas federais. Quando morreu, no episódio de Pitangueiras, tinha 31 anos, era casado e seu filho contava com seis meses de vida.

Seu companheiro inseparável de batalhas era o advogado Mário Machado Bittencourt, que, antes da revolução, dedicava-se à aviação por esporte. Foi comissionado, na Revolução, no posto de segundo tenente e, depois, por bravura, promovido a primeiro tenente.

A Batalha - Três aviões participaram da missão em Pitangueiras, a qual tinha por principal objetivo eliminar o bloqueio do Porto de Santos, pelo cruzador Rio Grande do Sul, de 3,5 toneladas, fundeado atrás do Farol da Moela, e mais 3 destróieres e um destacamento da aviação naval, composto de dois aerobotes e três hidroaviões.

A missão visava a liberar o porto, para que fosse possível a entrada de munições, armas e demais equipamentos para os constitucionalistas. O objetivo principal era o cruzador e contra ele se precipitaram os três aviões rebeldes.

A cena da batalha foi narrada, em recente depoimento do hoje capitão-de-mar-e-guerra Francisco Amaro, de 77 anos e que, na ocasião, era cabo sinaleiro do cruzador Rio Grande do Sul. Segundo afirmou, a Marinha já havia sido avisada do risco representado pela aviação rebelde e, por isso, já tinha até sido providenciada a instalação de duas metralhadoras no cruzador, tiradas do submarino Humaitá.

Francisco Amaro recorda que os três aviões surgiram de repente, interrompendo o momento de descanso da tripulação. "Corri a avisar o oficial de dia, o tenente Pitanga, encarregado da artilharia. Soou o alarme, as escadarias se entupiram de homens, buscando proteção nas defesas de aço. Numa fração de segundos os aviões já estavam sobre nós. O primeiro avião precipitava-se em pique vertiginoso. Nesse ínterim, o marinheiro de primeira classe, de nome Rayol, podia ser visto disparando furiosamente as Hotchkiss antiaéreas; o crepitar das metralhadoras confundiu-se com a explosão violenta da bomba sobre nós lançada e que caiu bem próxima do costado. Dois marinheiros foram feridos, com certa gravidade, pelos estilhaços que se espalharam pelo convés".

Nesse mesmo instante, segundo Francisco Amaro, a tripulação começou a exultar. "O mesmo avião que se atrevera a atacar-nos primeiro, descia, repetindo o mesmo pique, mas agora envolto em chamas e, num mergulho incrível, desapareceu nas águas, no mesmo ponto em que explodira a bomba. Quando aos outros aviões, aparentemente temerosos de sorte idêntica, lançaram suas bombas ao mar e desapareceram em direção ao Guarujá".

* * *

Para o pesquisador e mergulhador Gilmar Domingos de Oliveira, o resgate do Kavuré-Y é da maior importância no que diz respeito ao estabelecimento da verdade histórica que envolveu a Revolução Constitucionalista de 1932.

"Muito se falou e escreveu sobre o movimento e suas conseqüências, mas nem sempre as versões foram corretas e isso é até natural, levando-se em conta que cada uma delas representava o interesse das partes em conflito. A revolução pregava a restituição, ao País, de sua legitimidade constitucional. Porém, na visão do Governo Federal, tratava-se, apenas, de um movimento separatista".

"Atos aparentemente isolados, como o resgate de um avião de combate, podem ajudar a elucidar muitas coisas, não só no que se refere a fatos políticos ou militares, mas, até mesmo, no que diz respeito aos equipamentos utilizados".

Segundo Gilmar, muitas histórias cercaram os atos revolucionários. O acidente com o Kavuré-Y gerou a lenda até hoje divulgada verbalmente entre os antigos moradores de Guarujá, de que tal fato teria acelerado o suicídio de Santos Dumont, o inventor do avião, que teria visto a queda, da janela do Grande Hotel, em rente da Praia de Pitangueiras. "Na verdade, o Pai da Aviação se matou por enforcamento, no mesmo hotel, algumas semanas antes da batalha".

Dificuldades - Gilmar não desconhece as dificuldades para realizar a tarefa a que se propôs. Afirma, entretanto, que vem obtendo apoio, em suas pesquisas, de muitas pessoas e entidades, entre as quais relaciona a Santos-Sub; Associação dos Ex-Combatentes de 32-Santos; Expedito Carlos S. Bastos, pesquisador; Hernani Donato, historiador; Célio Celli, piloto-aviador e pesquisador; Museu Histórico Naval de São Vicente; capitão-de-mar-e-guerra Amaro Francisco Tavares; Dalvina Gelsomini, moradora de Guarujá; Marco Antônio Damin da Silva, do Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção Guarujá; bibliotecas de Santos e Guarujá e o ex-prefeito de Guarujá, Hermínio Amado, pesquisador da História da Cidade.

Na edição de domingo, 25 de setembro de 1932, o jornal paulistano O Estado de São Paulo noticiou, em sua primeira página, a morte dos aviadores no Guarujá (Acervo Estadão - acesso: 13/1/2013 - ortografia atualizada nesta transcrição)


A notícia da morte dos aviadores constitucionalistas em Guarujá
Imagem: reprodução parcial da primeira página do jornal paulistano O Estado de S. Paulo, de domingo, 25 de setembro de 1932 (Acervo Estadão - acesso em 13/1/2013)

A morte de dois heróis

Perecem num desastre os aviadores João Gomes Junior e Mario Bittencourt

Em meados de julho, o comando das forças constitucionalistas que guarneciam São Luiz do Paraitinga recebeu uma bela comunicação, que não era a primeira nem deveria ser a última da revolução pouco antes iniciada: um grupo de oficiais do exército, constituído por elementos de elite de nossas forças armadas, tendo aderido à causa de São Paulo e do Brasil, conseguira sair do Rio de Janeiro e, depois de uma acidentada viagem, havia chegado ao porto mais próximo e, dali, pedia condução para apresentar-se aos chefes do movimento.

Como era natural, o apelo foi prontamente atendido e na mesma tarde chegou das serras um caminhão conduzindo quatro homens desfigurados pelo cansaço e privações, mas expandindo, entre os camaradas que haviam ido recebê-los, a alegria de haver chegado a São Paulo, pois para eles os ideais da revolução em marcha justificavam todos os sacrifícios feitos.

Quando o caminhão parou diante da agência do Correio Militar, os soldados que ali se encontravam, informados da qualidade dos viajantes prorromperam em palmas e vivas. Um fotógrafo que se encontrava no local quis fixar numa chapa aquele momento, mas os viajantes pediram que os poupasse, alegando que a hora era de trabalho e que as fotografias ficariam para mais tarde. Logo depois, apenas refeitos, seguiram para São Paulo, a pugnar pela causa do Brasil.

Um comunicado do dia seguinte assim anunciava a sua chegada:

"Ontem à tarde, apresentaram-se ao Q. G. da II Região Militar quatro aviadores do Exército que, conseguindo sair da capital da República, vieram a São Paulo combater pela causa revolucionária constitucionalista.

"A viagem desses quatro aviadores foi cheia de dificuldades, tendo saído do Rio em canoa, tendo depois feito parte do percurso a pé, pelo litoral, chegando a São Paulo exaustos e maltrapilhos. Esses oficiais são os seguintes: coronel de artilharia Basilio Taborda, primeiros-tenentes João Angelo Gomes Ribeiro e Orsini de Araújo Coriolano e o civil dr. Mario Machado Bittencourt. O primeiro-tenente João Gomes Ribeiro é filho do general João Gomes".

Foi assim que chegaram a São Paulo, cheios de ideal e sacrifício, esses dois valorosos aviadores do Exército Nacional que ontem tombaram vitimados por um desastre.

Seus serviços à Revolução Constitucionalista são numerosos e valiosos, pois desde que aqui chegaram se devotaram inteiramente à defesa aérea de São Paulo. Os companheiros de armas falam com entusiasmo do seu denodo, mil vezes patenteado nas mais arriscadas empresas.

Pilotando o seu aparelho, o aviador João Gomes Ribeiro portou-se heroicamente em todas as frentes de operações. Nos reconhecimentos, nas observações e nos combates aéreos, esse aviador parecia de aço,k insensível até mesmo às palavras dos amigos que lhe pediam mais prudência, em proveito mesmo da própria causa que esposara.

Ontem, a fatalidade, que namora os desprendidos, tocou com dedo gelado o seu já famoso avião. Deu-se a catástrofe temida. O tenente João Gomes Ribeiro e seu observador Machado Bittencourt, distinto advogado do Rio de Janeiro, caíram do céu, num turbilhão de fogo e de glória.

O bravo capitão João Angelo Gomes Ribeiro, que as tropas constitucionalistas tiveram a infelicidade de perder, é filho do general João Gomes Ribeiro. Tinha 31 anos de idade, era casado e tinha um filho. Oficial de curso brilhante, o capitão João Gomes Ribeiro era considerado um dos aviadores mais completos do exército nacional.  sua perda é das que dificilmente se reparam. A causa constitucionalista tinha nele um dos seus adeptos mais entusiastas.

O observador que pereceu com o capitão Gomes Ribeiro, sr. Mario Machado Bitrencourt, era um rapaz de 23 anos, formado em Direito, e filho do conhecido advogado do Rio, dr. Raul Bittencourt. Possuidor de bens de fortuna, que lhe tornavam fácil a existência, Machado Bittencourt dedicou-se à aviação por esporte, e veio para São Paulo num belo gesto de idealismo puro, seduzido pela nobreza da causa que São Paulo defende.

Valente, calmo e perito, foi, a princípio, comissionado no posto de segundo-tenente, tendo sido, logo depois, promovido ao de primeiro, por ato de bravura.

O distinto aviador chegou a esta capital em companhia do coronel Taborda, comandante do setor Sul. O seu falecimento causou pesar muito vivo, tanto quanto o do capitão Gomes Ribeiro, não só pelo que representa como perda para a aviação, como também por se tratar de um rapaz excelente, que a todos cativava e do qual se faziam logo amigos devotados. S. Paulo tem motivos sobejos para honrar a memória desses dois bravos e para lamentar o seu trágico desaparecimento.


As condolências pela morte dos aviadores constitucionalistas em Guarujá
Imagem: reprodução da primeira página do jornal paulistano Folha da Manhã, de segunda-feira, 26 de setembro de 1932 (Acervo Folha - acesso em 13/1/2013)


"O capitão José Gomes Ribeiro ao lado de seu infortunado companheiro, o dr. Mario Machado Bittencourt"
Imagem: detalhe da 1ª página do jornal paulistano Folha da Manhã, de 26/9/1932 (Acervo Folha)

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