Viver isolado com a família na Ilha da Moela é o desafio vivido pelo carioca Clóvis César
Brandão, responsável pelo farol que dá segurança à navegação
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
Na ilha, um Natal de solidão
Texto: Clóvis Rodolpho Vasconcellos
Fotos: João Vieira
GUARUJÁ - "O verdadeiro homem é o que vive só,
pois aprendeu a conviver com a solidão", costumava dizer Henrik Johan Ibsen, dramaturgo norueguês que viveu no século
19. Mas ontem à noite, na Ilha da Moela, a 2,5 milhas marítimas de Guarujá, a citação de Ibsen não era levada em consideração, pois ali trabalhavam
e comemoravam o Natal membros de uma categoria profissional cuja solidão é a tônica de cada dia e o inimigo comum: os faroleiros, mecânicos e
pessoal encarregado de manter sempre acesas as luzes que guiam os navegantes.
Para os que estavam na noite de Natal a 24.3 graus de latitude de Sul, e 46,16 graus
na longitude Oeste, ao Sul da Ilha de Santo Amaro, todos os seres vivos ali presentes eram de uma importância vital, tão necessários como os
mantimentos que chegam a cada 15 dias na lancha pilotada pelo mestre Pedro Goes ou como a água de chuva armazenada que utilizam para beber.
Enquanto os copos tilintavam entre as milhares de luzes em Santos e Guarujá, cidades
avistadas da ilha, Clóvis César Brandão, 33 anos, carioca, e sua esposa Tânia Rosa, grávida, também festejavam, mas sempre atentos às luzes do
farol, pois sabem que delas ainda depende a segurança dos navegantes que passam ao longo da costa. Ambos mantêm o mesmo espírito do homem que
séculos atrás orientava os marinheiros com um facho de luz no cimo da Ilha de Pharos, em Alexandria, na antiga Grécia. "Da
Ilha de Pharos que originou-se a palavra farol e também a nossa profissão: faroleiro", diz Clóvis Brandão, há dois anos
vivendo na Ilha da Moela com sua mulher, uma filha e, agora, mais um por nascer.
No Farol da Moela trabalham seis pessoas supervisionadas pela Marinha do Brasil, mais
especificamente pelo capitão-tenente Geraldo Gondim Juaçaba Filho, chefe de setor de sinalização náutica. Devem permanecer de plantão sempre um
faroleiro, um mecânico (mais conhecido por "motorista", que cuida do gerador a diesel) e um radiotelegrafista, encarregado do radiofarol, que
emite sinais permanentemente. Como há necessidade de locomoção dos profissionais, a Marinha mantém sempre dois de cada setor.
A sinalização náutica de Santos é responsável pela manutenção dos diversos faróis
existentes entre as ilhas dos Alcatrazes e do Bom Abrigo. Apesar da navegação contar atualmente com uma série de equipamentos sofisticados, como o
radar, e até o sistema de orientação através de satélites, o secular farol ainda é de suma importância para garantir a segurança das tripulações e
embarcações que entram no Porto de Santos, no caso, ou navegam pela costa do Brasil.
"Quando o piloto vem da África, por exemplo, e avista o
Farol da Moela, ele respira aliviado, pois ali teve a certeza de que seu equipamento, por mais sofisticado que seja, está funcionando corretamente",
diz o capitão-tenente Geraldo Juaçaba, mostrando que o radar, por exemplo, é um equipamento eletrônico e, por isso, está sujeito a falhas em
conseqüência das próprias condições de ambiente. O jogo do navio, a maresia e outros fatores podem afetar os delicados equipamentos.
A importância da sinalização dos faróis para a navegação de aproximação é comprovada
pelo fato de todos os navios pagarem a Taxa de Utilização de Faróis (TUF) que reverte em recursos para a manutenção do equipamento.
A estrela dos navegantes - O óleo de baleia ainda escorre pelas paredes
internas do Farol da Moela, construído em 1832 e que opera hoje com a segunda lente desde quando entrou em funcionamento há 151 anos. Composta do
mais fino cristal, a lente, fabricada pela Indústria Barbier, Paris em 1891, concentra e emite a luz proveniente de uma lâmpada de 1.500 watts a uma
distância de 26 milhas marítimas, o equivalente a 48 quilômetros.
Chegam a impressionar a limpeza e o pequeno desgaste do equipamento, apesar de tantos
anos de uso. Uma placa na entrada do farol com os dizeres: "Entre descalço", demonstra o zelo do faroleiro com seu material de trabalho. Mesmo
quando a temperatura se eleva demais no auge do verão, e o óleo de baleia, utilizado na construção da torre, escorre lentamente pelas paredes, o
aspecto do farol assemelha-se ao de uma sala de cirurgia.
Os navegantes não podem prescindir da luz do farol e, por isso, existem dois sistemas
de emergência: a querosene, e, se este surpreendentemente vier a falhar, entrará em ação o mais rudimentar de todos: um aladim, que se encarregará,
com o auxílio de lente, de iluminar a costa. A visibilidade do alto do farol é excepcional. Pode-se avistar, nos dias claros, os acidentes
geográficos do Litoral do Estado. Vêem-se com clareza costeiras em São Sebastião e também a Serra do Guaraú, já em Peruíbe.
Clóvis e sua família vivem no local
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
O tesouro perdido - A Ilha da Moela mais parece um morro dentro do mar. Não possui
praias e a atracação de embarcações é muito difícil. Em dias em que o mar se encontra agitado, pessoas e cargas são desembarcadas dentro de uma
grande caixa metálica, com o auxílio de um guindaste. Mesmo assim, possui seus encantos e atrativos, como, por exemplo, a lenda de que um pirata
deixou um valioso tesouro enterrado em algum ponto e nunca mais pôde vir buscá-lo. "Tenho procurado e quase desisti de
encontrá-lo", diz o faroleiro Clóvis Brandão.
Mas outro tesouro abriga-se entre as pedras batidas pelas ondas: peixes e mariscos em
abundância, que Clóvis e todo o pessoal da ilha proíbe que sejam capturados para fins comerciais. "Não guardo peixe na
geladeira. Quando preciso, vou pescar e trago apenas o necessário para minha família e meus amigos", diz. É comum a
presença de aves e também grandes lagartos nas pedras da ilha, onde há ainda uma caverna na qual o faroleiro nunca ousou penetrar.
"Há muitas histórias misteriosas em relação à caverna.
Dizem que alguns bombeiros que entraram foram retirados sem vida. Isso, entretanto, talvez se explique pelo fato de lá habitarem muitos morcegos,
cuja urina emite um gás tóxico", explica o faroleiro.
Na Ilha da Moela há um habitante dificilmente encontrado quando chegam os mantimentos
trazidos pela lancha da Capitania dos Portos. É o burro Ibrahim, considerado pelos que ali vivem como o mais inteligente morador do local. "O
bicho é tão esperto que, quando escuta o motor da embarcação, foge como um cabrito pelas pedras, para não ter que carregar as provisões, função para
a qual foi trazido, mas que nós mesmos acabamos realizando", diz Edvan de Oliveira, mecânico do gerador e há cinco anos
na Moela.
Entre a ilha e a Ponta do Monduba, em Guarujá, que dista cerca de 1,5 quilômetro,
costumam abrigar-se dos nevoeiros centenas de barcos de pesca. "São grandes amigos os pescadores, muitas vezes nos
transportam até a Cidade para fazermos algumas compras. Às vezes, nos dão peixe e, à noite, todos os barcos juntos, iluminados, parecem mais uma
cidade", diz Tânia Rosa, a esposa do faroleiro.
Classe em extinção - Os faroleiros são todos civis que prestam serviço à
Marinha após fazerem um juramento de que cumprirão dois anos de missão árdua, isto é, viver isoladamente em ilhas no litoral brasileiro. Todos são
voluntários e muitos oriundos de famílias onde os pais e avós também foram faroleiros.
Existem gerações inteiras de faroleiros em que o pai criou os filhos em ilhas e estes,
já acostumados ao tipo de vida e trabalho, dificilmente se adaptam nas cidades densamente habitadas. No entanto, essa tradição poderá acabar, pois a
Marinha pretende criar um quadro fixo de faroleiros, todos militares e previamente capacitados para exercerem funções nessas condições específicas.
Um faroleiro recebe da Marinha Cr$ 80 mil mensais mais Cr$ 26 mil em provisões. No
caso do Farol da Moela, que é considerado privilegiado pela proximidade da costa, o transporte é efetuado quatro vezes ao mês, quando são
armazenados os mantimentos para o período. No entanto, nem sempre é possível à embarcação da Marinha realizar as quatro viagens mensais. No inverno,
quando são freqüentes as ressacas com grandes e fortes ondas, o faroleiro chega a permanecer por 30 dias ilhado.
"É aí que entra em ação nossa horta comunitária, que,
muitas vezes, nos salvou", diz Tânia, mostrando que colhe tomates e todo o tipo de legumes, além de banana e ovos das
galinhas que cria num cercado. Mas quando o inverno é rigoroso e grandes ondas formam-se à entrada da Barra de Santos, Clóvis, sua esposa, o
mecânico e o radiotelegrafista passam períodos difíceis, chegando, inclusive, a ser obrigados a racionar as provisões.
"Há semanas em que ficamos lá de cima de nossas casas
observando somente o vulto dos navios que passam em meio ao nevoeiro. Só conseguimos ver isso quando o vento forte dos temporais não nos impede até
de olharmos pela janela", diz Clóvis, acrescentando que já releu todos os seus livros.
Visitantes, motivo de alegria
Foto: João Vieira, publicada com a matéria
A solidão ataca - Se os que vivem na Ilha da Moela admitem estar muito bem, longe da
tensão da cidade, também concordam em que constantemente vêem-se diante do maior problema dos faroleiros: a solidão. "Quando
ela ataca vem mesmo para estraçalhar", diz Clóvis Brandão, relembrando os dois meses que ficou sem sua mulher na ilha.
"O que me salvou foi a companhia de um cão, com que eu conversava diariamente e creio que chegamos a manter um diálogo
significativo: eu latia e ele falava o português", disse, procurando ironizar.
O outro faroleiro, companheiro e substituto de Clóvis, é Ivan Dema, cuja família vive
bem longe, em Angra dos Reis. Ontem ele não estava na ilha. Deixou Clóvis de plantão e foi visitar a família. Ao sair, porém, seu olhar atestava o
sofrimento e, nas palavras do parceiro, a constatação da dor: "Quantas vezes eu não cheguei aqui na ilha e deparei com
o Ivan sentado nas pedras chorando copiosamente. O motivo? A solidão, a pura e simples constatação de que você está sem alguém para lhe fazer um
afeto, um carinho ou dedicar-lhe uma atenção especial", disse Clóvis.
Ontem, porém, o clima era de festa na Ilha da Moela, também chamada de "Ilha da
Fantasia", pelo mecânico Edvan: "Onde, em tempos como os de hoje, você pode dormir com a porta e janela abertas sem
ser assaltado? É ou não uma fantasia?", pergunta. A Marinha presenteou seus ocupantes com perus e outras guloseimas.
Algumas famílias foram visitar seus parentes na ilha. Cerca de 30 pessoas comemoram a
festa cristã avistando de um lado as luzes de Santos e Guarujá e, do outro, a imensidão do mar. E o faroleiro Clóvis Brandão, que durante dois anos
no local só recebeu uma visita, acompanhava a luz do farol na escuridão enquanto esperava o que qualificou como o seu presente de Papai Noel: as
eleições diretas para presidente da República. "E por que não?", disse. |