Os potentes canhões são hoje um amontoado de ferrugem jogado no meio do mato
Foto: Nivair Neves, em 6 de dezembro de 1977, publicada com a matéria
(imagem extraída de copião fotográfico do jornal Cidade de Santos. Pesquisa do
historiador Waldir Rueda nos arquivos do jornal, mantidos no acervo da
Unisantos)
A fortaleza esquecida pela própria história
Um berço e uma cama de casal substituíram os bancos da
antiga capelinha. Um filtro e vasilhames foram colocados no altar, junto aos nichos. Um fogão, armário e outros utensílios domésticos substituíram
as imagens e quadros. Como testemunha do esquecimento a que a história da cidade está relegada, sobrou apenas a imagem do padroeiro, na Capela de
Santo Amaro, na Fortaleza do mesmo nome, também chamada de Fortaleza Grande da Barra, outra testemunha do descaso dos órgãos competentes para com as
coisas que, por si sós, são o próprio passado de Santos, de São Paulo, do Brasil e até de Portugal.
Da melhor das fortificações existentes naquela época - há mais de duzentos anos -
restam apenas telhados arrebentados, assoalhos podres, cheios de cupim, reboco das paredes desmoronando. Há até o perigo das quase ruínas desabarem
com o menor vento, como ocorreu no último fim de semana, quando a velha fortaleza, que resistiu ao ataque de corsários, não aguentou as rajadas que
se sucederam. Os potentes canhões, cujo estrondo se fazia ouvir nas proximidades de Cananéia, e tornaram famosa a artilharia de Santos, hoje não
passam de um amontoado de ferrugem, jogado no meio do mato que, pela sua altura, parece esconder o abandono a que o monumento foi relegado.
Na realidade, o Forte sintetiza o final (como escreveu o historiador Costa e Silva
Sobrinho, em 7-11-1948) da "breve história de um baluarte, cuja desvalia atual é uma advertência ao valimento dos homens". Desde o seu surgimento,
traz o estigma do desleixo dos responsáveis. Em 1548, o donatário Luís de Góis solicitava, por carta, a D. João III, que socorresse com urgência as
capitanias e costas do Brasil ou os colonos perderiam suas vidas, os bens, e a Coroa ficaria, ao mesmo tempo, sem seus domínios. E dizia que, só na
Capitania de São Vicente, havia mais de seiscentos, entre homens, mulheres e crianças, fora três mil escravos. No entanto, a obra foi iniciada
apenas entre 1584 a 1590, no tempo do domínio espanhol e, depois da entrada no porto de Santos, em 1583, do pirata inglês Eduardo Fenton. Dela não
se tem quase nenhuma notícia, durante o século XVII.
Só no começo do século XVIII, isto é, em 23 de julho de 1702, recebe Luís da Costa de
Siqueira a patente de capitão dessa fortaleza, vindo a ser, assim, seu primeiro comandante. O armamento só foi ordenado sete anos depois, E, em
1712, quando Santos se julgava arriscada a um ataque dos franceses, tomaram-se algumas providências sobre a segurança das suas fortificações,
embora, naquele tempo, a defesa do Litoral de Santos e quase toda a costa do Brasil tenha sido sempre pouca e frágil. A Fortaleza Grande da Barra
era a melhor das fortificações, o que não impediu, apesar de sua importância de, em 1774, há exatamente 203 anos, estar idêntica ao estado atual: em
situação lamentável. A maior parte das carretas estava tão danificada que mal podiam agüentar o peso das peças. A única diferença era que alguém
tomava providências, como os artilheiros que faziam verdadeiros milagres.
Morador quis construir - Uma carta régia, de 17 de junho do ano de 1711,
noticiava que um morador de Santos, João de Castro de Oliveira, que já havia construído uma casa para a alfândega e quartéis para os soldados, se
propunha a fazer, no prazo de três anos, à sua custa e de acordo com a planta que apresentava, a Fortaleza Grande da Barra. Como compensação, exigia
certas regalias para si e para seus herdeiros.
Atualmente, mora na Fortaleza uma família: a de Sebastião Geraldo de Almeida. No
total, dezesseis pessoas, entre as quais cinco crianças. Eles ocupam as diversas dependências, escolhendo as que estão em melhores condições. Foram
para o local há dois anos, para tomar conta, em substituição ao antigo zelador. O sr. Sebastião nem sabe bem quem o mandou ficar ali. Só recebeu uma
orientação: o senhor não receberá nada, mas pode morar. Se quiser consertar alguma coisa, pode; mas por sua própria conta. O velho Sebastião, pai de
18 filhos, três dos quais casados, morando com ele; já aposentado, vive da venda de limões, bananas, chuchus e da pesca: "há noites em que chego a
pegar três ou quatro peixes-espada grandes. Mas viver só de comer peixe não dá".
Por outro lado, a família, embora numerosa, corre sérios riscos. Os portões
enferrujados e destruídos pela maresia, as guaritas abandonadas e instaladas em pontos estratégicos, permitindo exato controle da situação, o mato
que já obstrui os caminhos e esconde facilmente qualquer adulto, são excelentes abrigos para marginais de todas as espécies, como os que foram
presos há pouco tempo, durante uma batida policial. E, na sua ingenuidade, o sr. Sebastião e a esposa argumentam: "nós somos caseiros só para evitar
que maloqueiros se aglomerem por aqui". Vestígios deixados nas dependências do forte e nas guaritas são mostras de que, na realidade, sua segurança
deixa muito a desejar.
Nos duzentos anos passados, a situação parecia ser bem melhor. Quando as autoridades
decidiram recuperar a fortaleza, não dispensando a ajuda do morador santista, o sargento-mor Antônio Francisco Lustosa auxiliou o governador da
praça de Santos com canoas, alguns soldados e escravos, os quais roçaram o mato com muito trabalho, para começar a obra. Atualmente, seria
necessária a mesma união de esforços para, pelo menos, transformar o Forte, que já foi sede do Círculo Militar de Santos, em um ponto turístico dos
mais atraentes, pela sua beleza e pelo panorama que oferece de toda a Baía e porto santistas.
O próprio D. João V, de Portugal, preocupou-se com os destinos da Fortaleza, nos idos
de 1730, quando determinou inúmeras providências para garantir sua segurança. Quase quarenta anos depois, novas obras visando reparar a fortaleza e
ampliar a defesa da cidade, sobretudo acabando com as péssimas condições que novamente a atingiram, relegada a segundo plano por governos que se
sucederam.
Em 9 de abril de 1905, o Ministério da Guerra, em aviso dirigido ao chefe do Estado
Maior da Fortaleza da Barra de Santos, determinou que fosse marcado o dia do desarmamento da Fortaleza da Barra de Santos, devendo a bateria ser
removida para seu quartel, a fim de ser alojado o contingente do 24º Batalhão que vinha trabalhar no Forte Itaipu.
Santo Amaro esquecida - Na Capela de Santo Amaro, nem mesmo o santo padroeiro
consegue fazer o milagre de ver seu templo voltar a assumir seu principal papel. Construída pelo governador de Santos, José Rodrigues de Oliveira,
em 1742, "numa demonstração piedosa de fé", não ficou, entretanto, sob jurisdição eclesiástica, não tendo mesmo sacrário. A fortaleza chegou a
abrigar diversos sacerdotes condenados à prisão. Esse fato pode ser um dos motivos pelos quais, até hoje, nem mesmo a Cúria Diocesana tenha se
preocupado com o abandono e destino da capela - agora transformada em casa de família - que tem o altar de Santo Amaro como centro principal.
Quando em 1859 atingiu 143 anos, já relegada ao abandono, a capelinha começou a
transformar-se em ruínas. Foi quando o capitão comandante Antônio Emílio Vaz Lobo, mediante subscrição popular, tratou de restaurá-la, constando das
melhorias um altar com obra de escultura e banqueta, três nichos para as imagens, tudo envernizado e um estrado. Assoalho de madeira, um tapete
grande, forro exterior da mitra de Santo Amaro. Restava então, a exemplo dos dias atuais, apenas as pedras de suas grossas paredes.
E, em 5 de setembro de 1948, escrevia o historiador Costa e Silva Sobrinho: "Essa
capela de Santo Amaro é um valioso fragmento, à flor da terra, do passado santista. Precisamos conservar tão preciosa relíquia documentária,
restaurando-a mais uma vez, para que ela transporte o pensamento dos contemporâneos aos tempos idos, permitindo-nos refazer na imaginação tudo que
fomos e assim, impregnados das memórias do pretérito, planejarmos o futuro".
Ministro do Exército - O descaso a que os monumentos históricos vêm sendo
condenados pelos próprios órgãos, que por finalidade específica devem conservá-los, são mostra, no entanto, de que nem mesmo o nome do ministro do
Exército, general Fernando Belfort Bethlem, impresso em uma placa-homenagem do Círculo Militar de Santos, ajudará a mudar a imagem dos dois locais.
Na placa, os dizeres: "Esta Fortaleza da Grande Barra, também chamada Santo Amaro ou São Miguel, foi construída pelo almirante espanhol Diogo Flores
Waldez, em 1584, logo após a invasão da Barra pelos galeões de Edward Fenton, legendário pirata inglês. Homenagem do Círculo Militar de Santos.
Presidente de Honra, general de Brigada Fernando Belfort Bethlem, comandante do CaCaaé/2 (hoje AD/2). Presidente do C.M.S., major R/1 Eduardo de
Araújo Falcão. Barra de Santos, 12 de janeiro de 1969".
E há ainda a homenagem do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, na capela de
Santo Amaro: "Histórico - principia na data desconhecida, 1508, anterior à sua fundação por José Adorno e Catarina Monteiro, em 15 de janeiro de
1542, na Vila de Santo Amaro, próxima a vilas, mas somente em 1742 é trasladada para o interior desta Fortaleza por Iozephroiz de Oliveira.
Restaurada em 1885 pelo capitão-comandante Antônio Emílio Vaz Lobo e, após o seu completo desmoronamento, reconstruída e inaugurada em 30-1-1955
pelo Círculo Militar de Santos, rezando missa, nessa ocasião, o bispo Dom Idílio José Soares".
As placas de bronze são algumas das poucas coisas ainda mais conservadas. De resto,
ainda mantêm sua beleza apenas as frondosas árvores que servem, inclusive, para encobrir o abandono. Elas só não conseguem impedir que de longe, bem
do centro do canal por onde passam centenas de navios, durante todo o ano, os visitantes estrangeiros constatem com os próprios olhos a decadência
histórica da cidade, através do monte de ruínas em que estão se transformando o Forte Grande da Barra e a capela de Santo Amaro. |