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Cena de carnaval carioca, por Debret

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Em sua Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, realizada por volta de 1830, o francês Jean-Baptist Debret registra em texto e pranchas de desenho diversas situações e cenas do Brasil-Império, como esta:

Cena de carnaval

O carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra em geral nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas mais freqüentadas, nem as corridas de cavalos xucros, tão comuns na Itália.

Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões-de-cheiro, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas, e todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera.

O limão-de-cheiro, único objeto dos divertimentos do carnaval, é um simulacro de laranja, frágil invólucro de cera de um quarto de linha de espessura e cuja transparência permite ver-se o volume de água que contém. A cor varia do branco ao vermelho e do amarelo ao verde; o tamanho é o de uma laranja comum; vende-se por um vintém, e os menores a dez réis.

A fabricação consiste simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho médio, cujo caule é substituído por um pedacinho de madeira de quatro a cinco polegadas que serve de cabo, e mergulhá-la na cera derretida. Operada essa imersão, retira-se o fruto ligeiramente coberto de cera e mergulha-se em água fria, a fim de que se revista de uma película de um quarto de linha de espessura, bastante resistente, entretanto. Parte-se em seguida esse molde, ainda elástico, a fim de retirar a laranja, e, aproximando-se as partes cortadas, solda-se o molde de novo com cera quente, tendo-se o cuidado de deixar a abertura formada pelo pedaço de madeira para a introdução da água perfumada com que deve ser enchido o limão-de-cheiro.

O perfume de canela, que se exala de todas as casas do Rio de Janeiro durante os dois dias anteriores ao carnaval, revela a operação, fonte dos prazeres esperados.

Para o brasileiro, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às cinco horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros, já espalhados nas ruas a fim de providenciarem o abastecimento de água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes das vendas. Vemo-los aí, cheios de alegria e saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis.

Com água e polvilho, o negro, nesse dia, exerce impunemente nas negras que encontra toda a tirania de suas grosseiras facécias; algumas laranjas de cera roubadas aos senhores constituem um acréscimo de munições de carnaval para o resto do dia. Ao contrário,um tanto envergonhada, a infeliz negra despenseira, vestida voluntariamente com sua pior roupa, quase sempre azul-escura ou preta, volta para casa com o colo inundado e o resto do vestido marcado com o sinal das mãos do negro que lhe enlambuzou de branco o rosto e os cabelos.

Quanto ao rosto, ela se apressou em limpá-lo, para evitar o motejo das companheiras, mas ainda permanecem desenhadas em branco as rugas dos trejeitos que fez para se lavar; e essa expressão fixa, dominando a mobilidade habitual de seus traços, dá a seu rosto uma feiúra monstruosa difícil de descrever (é sempre uma das mais velhas escravas que preenche essas funções); por outro lado, a face achatada do negro, igualmente pintada de branco, perde suas saliências e sua expressão.

Nesses dias de alegria, os mais turbulentos, embora sempre respeitosos para com os brancos, reúnem-se depois do jantar nas praias e nas praças, em torno dos chafarizes, a fim de se inundarem de água, mutuamente, ou de nela mergulharem uns aos outros por brincadeira; a vítima, ao sair do banho, pula e faz contorções grotescas, com as quais dissimula às vezes o seu amor-próprio ferido. Quanto às negras, somente se encontram velhas e pobres nas ruas, com o seu tabuleiro à cabeça, cheio de limões-de-cheiro vendidos em benefício dos fabricantes.

Muitos negros de todas as idades são empregados nesse comércio, até a hora da ave-maria, quando se suspendem os divertimentos.

Vi, durante a minha permanência, certo carnaval em que alguns grupos de negros mascarados e fantasiados de velhos europeus imitaram-lhes muito jeitosamente os gestos, ao cumprimentarem à direita e à esquerda as pessoas instaladas nos balcões; eram escoltados por alguns músicos, também de cor e igualmente fantasiados.

Mas os prazeres do carnaval não são menos vivos entre um terço, pelo menos, da população branca brasileira; quero referir-me à geração de meia-idade, ansiosa por abusar alegremente, nessas circunstâncias, de suas forças e sua habilidade, consumindo a enorme quantidade de limões-de-cheiro disponíveis.

Domingo ainda, mas depois do almoço, o vendeiro procura provocar o vizinho da frente com incidentes insignificantes, a fim de atraí-lo à rua e jogar-lhe o primeiro limão ao rosto. Alguns jovens franceses, empregados no comércio, passeiam como se fossem sentinelas avançadas, armados de limões, e aproveitam a oportunidade para inundar uma senhora, também francesa, ocupada no fundo da loja semi-fechada. Vêem-se também jovens negociantes ingleses, consagrando de bom grado doze a quinze francos a um quarto de hora de brincadeira lícita, passar com orgulho e arrogância, acompanhados por um negro vendedor de limões, cujo tabuleiro esvaziam pouco a pouco, jogando os limões às ventas de pessoas que nem sequer conhecem.

Alguns gritos, entrecortados de gargalhadas, revelam ao locatário do primeiro andar, cujo cômodo da frente já foi esvaziado de seus móveis, por precaução, que chegou a hora de abrir as janelas, ou para evitar que se quebrem os vidros ou para se preparar ele próprio para a batalha de limões. Alguns curiosos assomam aos balcões e logo desaparecem, e a manhã toda decorre entre escaramuças.

Depois da refeição, entretanto, sentindo-se todos dispostos ao combate, correm às janelas e alegremente solicitam, de longe, e com gestos, licença para começar; ao mais ligeiro assentimento, alguns limões trocados com habilidade e pontaria dão o sinal do ataque geral; e, durante mais de três horas, vê-se grande quantidade desses projéteis hidróferos cruzando-se de todos os lados nas ruas da cidade e estourando contra um rosto, um olho ou um colo. A ducha decorrente, de mais ou menos um copo de água aromática, suporta-se agradavelmente, em vista do calor extremo da estação.

É natural que, após semelhante combate, toda a sociedade de um balcão, molhada como ao sair de um banho, se retire para mudar de roupa; mas logo volta com o mesmo entusiasmo. E uma moça sempre se orgulha do grande número de vestidos que lhe molharam nesse dias gloriosos para seus dotes de habilidade.

Se a batalha de limões, graças a essa familiaridade espontânea tolerada durante três dias seguidos, se torna muitas vezes a causa de novas relações entre beligerantes, é ela, por outro lado, motivo de isolamento para as pessoas tranqüilas, que se fecham em casa e não ousam sair à janela.

Eis, em resumo, a história do carnaval brasileiro; quanto ao episódio aqui desenhado, eis a explicação: a cena se passa à porta de uma venda, instalada como de costume numa esquina. A negra sacrifica tudo ao equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões que traz para seus senhores, enquanto o moleque, de seringa de lata na mão, joga um jacto de água que a inunda e provoca um último acidente nessa catástrofe carnavalesca.

Sentada à porta da venda, uma negra mais velha ainda, vendedora de limões e de polvilho, já enlambuzadada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro dos limões pagos adiantado, que um negrinho, tatuado voluntariamente com barro amarelo, escolhe, como campeão entusiasta das lutas em perspectiva.

Perto deste e da porta pequena da venda, outro negro, orgulhoso da linha vermelha traçada na testa, adquire um pacote de polvilho a um pequeno vendedor de nove a dez anos; em cima, uma negra dispõe-se a vingar com um limão o punhado de polvilho que lhe recobre a face e parte do olho; ao lado da mesma porta, outro negro, grotescamente tatuado, está de tocaia. O vendeiro, tendo retirado precipitadamente todos os comestíveis que de costume expõe à sua porta, deixou tão-somente garrafas cobertas de palha trançada, abanadores e vassouras.

No fundo do quadro podem-se observar famílias tomadas da loucura do momento, uma vendedora ambulante de limões, negros lutando e um pacífico cidadão escondido atrás de seu guarda-chuva aberto e que circula por entre restos de limões de cera.

A ave-maria impõe uma trégua e algumas rondas policiais acabam por implantar a paz.

A venda muda então de aspecto; mal-iluminada e cheia de fumaça das fritadas, torna-se, como diariamente, aliás, o ponto de encontro de todos os negros, já mais calmos, que aí vêm, de prato na mão, comprar sardinhas ou peixes-galos servidos no vinagre, ceia comum às pessoas das classes pobres e aos escravos, e recurso muito procurado porque o vendeiro chega a vender seis peixes fritos por um vintém. No dia seguinte, para liquidar os restos da véspera, vende ele o dobro pela mesma importância.

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