Vendedoras de aluá, de manuê e de
sonhos no Rio de Janeiro, por volta de 1830,
em estampa de Jean Baptiste Debret
O Entrudo
(Bahia)
Qual a origem do entrudo?
É esta uma questão de evidência dificultosa, e de cuja discussão não
viria grande luz a destacar os planos do quadro de costumes, que intentamos descrever.
Seria ele importado da Índia nos Açores, pelos navegantes portuguesas,
quando o reino de Pegu, hoje província birmânica, constituía além-Ganges Estado independente?
Adiantando todavia uma reflexão, parece-nos que a gênesis desse folguedo
deve remontar-se às abluções, imersões e aspersões tão íntimas ao povo judeu, de quem a Europa assimilou tradições e ritos.
Do mesmo modo porque se encontram adaptados pelo cristianismo os velhos
cerimoniais do Levítico, é possível que daquelas fórmulas purificadoras nascesse o entrudo, degenerado na sua índole e na sua
feição histórica.
Como quer que seja, é um costume especial que recebemos da antiga
metrópole, com toda a sua bagagem de desmandos nocivos e alegres.
Dando conta desse divertimento público, que precede os três dias
imediatos à quaresma, é ainda na Bahia que encontramos o tipo menos brutal, pelo amestiçamento brasileiro.
O jogo do entrudo, outrora generalizado no País
[1], perdura no seu apogeu em
quase todo o Norte, e nas províncias do Sul onde o elemento estrangeiro tem pouco que ver.
E em que consiste ele fora da corte, isto é, em outras capitais,
vilas e sertões? Como se fazia na Bahia, há bons trinta anos? (N.E.: cerca de 1860, considerando a
época da publicação desta obra).
Deixando o trabalho de discriminação do que é geral ao leitor,
apreciemos no complexo das cenas invariáveis o que existia de distinto em usanças locais.
Na Bahia, os preparativos da folia começavam um a dois meses antes.
Nesse decurso, as famílias conhecidas e as pessoas da amizade preveniam-se mutuamente que iriam em casa "brincar o entrudo".
Os rapazes, especialmente os estudantes de Medicina, faziam economias
das mesadas, reservando para as laranjinhas o que disputavam ao luxo, aos passeios e aos teatros.
Enquanto o exterior da cidade almejava pelo domingo gordo, no lar
doméstico a indústria dos limões de cheiro era florescente e prometedora de lucros compensadores.
Em algumas casas, quem entrasse, notaria estranho movimento. Moças e
velhas, meninas e raparigas, entregues a desacostumado labor, sopravam achas de fogo, grazinavam, contavam de um até
doze. Naqueles círculos, a ociosidade era ignorada e os arremessos comuns.
Em volta de um fogareiro, sobre brasas amiúde ateadas,
fumava um caburé [2] meio d'água espessa camada de cera fundida. As fabricantes de laranjinhas espetavam, em ponteiros,
limões naturais de tamanho irregular.
Uma das velhas dispunha o carmim, o anil e o verdete, para o colorido da
massa; as moças tomavam de um canivetinho, com que incisavam a delgada película das esferas translúcidas que esfriavam; as
meninas folheavam livrinhos de pão-de-ouro, e as raparigas arranjavam os tabuleiros e bandejas, no chão da sala.
Logo que a cera estava no ponto, desenvolvia-se o trabalho sucessivo da
operárias afanosas, trabalho por vezes distribuído com método pelas industriais.
Retirado do fogo o caburé, a fim de abaixar a fervura, metiam no
lastro oleoso e colorido dos limões previamente untados de sabão. Sobre uma cadeira havia uma tigela com cera morna, que servia
para soldar as bandas separadas e embutir o orifício deixado pelo cabo por onde os seguravam.
Findo este processo, enchiam as delicadas cápsulas com águas
aromatizadas de essências de canela, rosa, cravo etc., servindo de conduto ao líquido um pequeno funil de folha-de-flandres.
Depois, tapavam-nas, encobrindo a saliência resultante com um pouco de
pão-de-ouro ou de prata, que deixava de ser um recurso de arte, para ser um enfeite de bom gosto.
À proporção que as laranjinhas ficavam prontas, uma rapariga
arrastava um tabuleiro para junto da sinhá-velha, que as contava, tirando-as de entre os dedos, e as enfileirando por dúzias.
E as encomendas choviam... As mulatas e crioulas
importunavam as senhoras-moças, pedindo rendas e babados; da Cidade Baixa traziam presentes de panos de alacá [3] e cordões de ouro, corais e chinelas
- conquistas de seus reservados carinhos ao grosso comércio da terra, que sempre as exalçou com entusiasmo sentido e
generosidade provada.
Vendedeiras de limões de cheiro, cantadeiras afinadas das trovas
populares do entrudo, fazia-se mister que tudo fosse condigno - das senhoras e das escravas.
Uma outra especulação de família eram os sonhos
[4], com os quais as belas
iaiás caculavam douradas sopeiras colocadas sobre toalhas de cambraia e de crivo, que forravam os tabuleiros envernizados
das crioulas de beca e de pencas de chaves.
No centro destes, uma garrafa branca de cristal, que continha a calda,
exalava o perfume das flores de laranjeira na madrugada dos vergéis.
Um palito fincado em cada um dos sonhos e um pires em que os serviam aos
compradores, revelavam a boa ordem da quitanda e o mimo artístico das gentis doceiras, cujo capricho retribuíam imediatos
proventos.
No domingo de entrudo, desde muito cedo, via-se correndo, de uma para
outra porta, um crioulo ágil, uma negra risonha e patusca. O crioulo, sustendo entre as duas mãos enorme seringa, fazia
pontaria, empurrando uma rótula: a negra, desviando a um lado uma bacia d'água, invadia uma casa...
Momentos depois, ouvia-se o baque do líquido, uma algazarra infernal,
alguma coisa de semelhante a uma briga. E os dois saíam...
Nas vendas, os taverneiros recolhiam as amostras penduradas, e os
foliões da ralé formigavam aos balcões.
Eram os prelúdios da festa.
E ao compasso acelerado ou tardio das chinelinhas, que batiam nas pedras
com o o estalo dos bilros nas rendas, das almofadas, uma voz feria o ar, e uma figura esbelta e graciosa descia uma ladeira,
cantando:
Aí vai, aí vai
Laranjinhas de primô;
Compre, iaiá, laranjinhas,
Para entrudá seu amô.
É de iaiá, é de ioiô,
Quem qué entrudá seu amô!...
E a vendedeira de sonhos, mercando faceira:
Sonhos, iaiá, está sonhos
Feitos por mão de sinhá,
Vem comprá à sua negra
Pra sinhá não se zangá.
Com suas mãos delicadas
Bateu ovos e farinha;
Compre, ioiô, esses sonhos
Foi feitos por sinhazinha
É de iaiá, é de ioiô,
Quem quésonhá com seu amô!..
E muitos psius! repetidos das janelas, faziam-nas mais
diligentes, servindo à freguesia.
Depois das duas horas, o folguedo crescia. Bacias e quartinhas d'água
inundavam os passantes; e o polvilho e o vermelhão mascaravam o escravo ou o homem da plebe, que seguia seu caminho.
Surpreendido por turbulentos que o perseguiam às gargalhadas, um
indivíduo, juntando as pernas e aos pulinhos, com o chapéu-de-sol aberto, protegendo-se dos limões e seringas, implorava
aborrecido:
- Não joguem!... não posso me molhar, que estou doente!
Esta frase era correspondida por uma saraivada de laranjinhas e
esguichos, que o desconcertavam.
Descomposturas e vaias estrondavam em outros lugares. - Eram os pretos e
pretas velhas, que se debatiam nas esquinas ou nos chafarizes, com parte da cabeça e do rosto empastada de alvaiade e vermelhão,
que os tornavam irrisórios.
As moças mudavam de vestido, e raros projéteis, vibrados à distância,
partiam um vidro, resvalavam numa porta, entravam por uma janela.
E a mulata cantava:
Quem entruda seu amô
É sinal de intimidade;
Iaiá, entrude a ioiô,
Para lhe ter amizade.
É de iaiá, é de ioiô,
Quem qué entrudá seu amô...
E todos preveniam-se para o combate, que travava-se depois do jantar,
esvaziando tabuleiros e tabuleiros de acetinados limões.
Nas casas de gente pobre, as gamelas transbordavam d'água límpida e
cheirosa, em que sentavam à força pessoas da convivência ou os incautos que agarravam.
Durante os três dias, o entrudo tocava a seu auge, das quatro para as
cinco horas. E os meninos, seduzidos pelas pregoeiras dos sonhos, choramingavam até obter o necessário para comprá-los.
As famílias, chegando às janelas, pediam licença, e o brinquedo rompia.
Um projétil, sibilando nos ares, esborrachava-se dentro do arraial
contrário. As hostilidades declaravam-se. Os rapazes atiram para os seios das moças bonitas que lhes deslumbravam os sentidos;
as moças procuravam o peito engomado da camisa daqueles que as impressionavam, ou de um futuro noivo.
E as laranjinhas, batendo no alto, quebravam-se; quebrando-se na
parede, desfolhavam-se matizadas como ramalhetes de flores e aromas úmidos, sobre o busto correto e faceiro das jogadeiras de
entrudo.
Ensopado d'água, acossado por tiroteios incessantes, um estudante
dirigia-se à casa onde morava o seu coração, a sua alma. Acompanhava-o a mulata das laranjinhas, que não as mercava,
porque ele as comprara todas.
E - coisa singular! nas guerras do entrudo, as vendedeiras de limões
eram os embaixadores incólumes dos partidos beligerantes. Ninguém as molhava, ninguém as ofendia.
No calor da ação, no fervor da contenda, um grupo de moças e rapazes,
atropelando-se nas escadas com balainhos de laranjinhas, barafustava pelo salão.
Então, limões e águas cheirosas prodigalizavam-se em dilúvios; as
imersões do estilo tornavam-se inevitáveis; e a essa luta, a esse alarma, sucedia a quietação exigida pela fadiga e cuidados aos
feridos, isto é, aos que se haviam machucado no conflito.
Nesses dias, os namorados encontravam-se, trocavam-se a furto idílios de
amor, e alguns casamentos se ajustavam.
Os incidentes que realizavam a prevenção de "ir brincar o entrudo" não
arrefeciam o frenesi das demais famílias que dos sobrados, frente a frente, batiam-se, do povo baixo, que nas praças, nas ruas,
nos chafarizes, tatuava-se de vermelhão e polvilho, despejava bacias d'água, e ria a mais não poder, vendo saltar da gamela que
se entornava, o vizinho ou o desconhecido recrutado de improviso para o banho.
A essa bacanal asiática jamais faltaram desastres e acontecimentos
fatais.
Ao anoitecer, os Cucumbis, espécie de mascarada africana,
dançavam e cantavam em bárbara passeata, agitando chocalhos, tocando marimbas, batendo com os punhos em rudes zabumbas.
Na manhã de quarta-feira, o olhar sonolento dos foliões contemplava
fragmentos amontoados de cera, destroços de móveis, objetos estragados... E a Razão, adiantando-se penitente por entre ruínas,
marcava com uma cruz de cinzas as frontes empalidecidas pelos desvarios da véspera.
E assim perdura o entrudo em várias províncias do
Brasil, e brincava-se na Bahia, de onde os ecos não nos trazem, há longos anos, um hino das suas festas e o som de uma daquelas
cantigas que outrora alvoroçavam nossa alma infantil.
NOTAS (de Luís da Câmara Cascudo):
[1] A. P.D.G. que assistiu o entrudo lisboeta de 1826 informa que the frolies of the Carnival consist in
throwing hair powder and water in each others faces and over their clothes; and pelting the passangers in the streets with
oranges, eggs, and many other missiles besides throwing buckets of mater on them - Sketches of Portuguese Life, Manners,
Costume and Character, Londres, 1826. O mesmo autor descreve as "laranjas e limões" cheios d'água, atirado scom fúria, às
bacias, jarras, talhas postas à porta para satisfazer os desejos da batalha, em toda sua violência.
No Brasil, o Entrudo foi o mesmo, primitivo sensual, preferido. Debret
registrou, em desenho e narrativa, as cenas do Entrudo carioca, como Henry Koster fixou as escaramuças nas fazendas, interior e
mesmo cidades pernambucanas. Na Capital do Império o Entrudo fazia vítimas, pela intensidade com que se entregavam a ele homens
e mulheres, no cumprimento da tradição que resumia cultos orgiásticos, saturnália romana e krônica dos gregos clássicos. Em
Petrópolis, molharam completamente ao próprio Imperador D. Pedro II.
Grandjean de Montigny, o arquiteto que viera na Missão Francesa,
sucumbiu no Rio de Janeiro a 2 de março de 1850, com um pleuria, adquirido nos combates do Entrudo. Para o Nordeste, ainda na
primeira década do século XX brincava-se ferozmente o Entrudo. E, pelo interior, retardou-se ainda mais o desaparecimento.
[2] Caburé, popular. Vasilha de barro, com ou sem asa, para o preparo do café. Da Bahia. Alfredo da Mata,
Vocabulário Amazonense, Manaus, 1939.
[3] Alacá, de alacar, lacre, panos tingidos de vermelho, sangue-de-boi.
[4] Melo Moraes Filho e Debret descrevem os sonhos como os filhoses, indispensáveis no Carnaval de outrora.
Para o Norte, o sonho é servido polvilhado de açúcar, talqualmente registrou Gilberto Freyre no Assucar, 143, Rio
de Janeiro, 1939, e não com o mel-de-açúcar-branco, característico nos filhoses.
(N.E.: filhoses são um tipo de doce bastante popular em Portugal). |