O Carnaval
(Rio de Janeiro)
[...]
O carnaval do Rio
de Janeiro começou após a proibição do jogo do entrudo pelo desembargador Siqueira (1), único dos nossos chefes de Polícia de quem a
tradição repete o nome com segurança e respeito.
Muito antes inauguraram-se os bailes mascarados,
devidos os primeiros à iniciativa da cantora Delmastro, que para aqui viera com a companhia lírica de Madame Lagrange
(2). Esses bailes tiveram lugar onde
é hoje o teatro da Fênix Dramática, que compreendia a grande chácara da Floresta. Sucederam-se a estes os do Ângelo, na chácara
da Rua do Conde, na Cidade Nova, e os do Nicola, no largo do Rocio.
Ao crescente e inesperado favor do público corresponderam os teatros de
S. Januário, Lírico Fluminense, S. Pedro e Ginásio, que para o mesmo fim abriram as suas portas, acompanhando-os o Clube
Fluminense, que só admitia os sócios, e o Paraíso, que aceitava a todos.
Em que consistiu o nosso primitivo carnaval ao ar livre? É fácil de
cogitar: em pequenos grupos de máscaras errantes, um princês desgarrado, e assim por diante.
Em 1854, já alguns carros com máscaras apareceram e das janelas
atiraram-lhes flores. O Jornal do Comércio, noticiando o fato, aconselhou que para o ano futuro se reunissem, o que daria
mais relevo ao festejo.
Até então a loucura descobria o prazer ao som de música escolhida,
inundava-se da luz dos lustres e candelabros, mitigava a sede provocada pelas danças ardentes nas taças de champagne, e
requintava de gozo naqueles abrigos resguardados e ideais como as cismas voluptuosas dos crentes de Maomé.
Era à noite que naquelas Lupercais esplêndidas as mulheres coroavam-se
de fascinações, que os moços de qualificação distinta dissipavam-se atraídos. No Clube, especialmente, quanta perdição no langor
morno da beleza aristocrata, no roçar de um corpo de neve, num cismar vago, ao terraço ou à janela, tendo por testemunhas o
olhar pestanejante das estrelas e o céu profundo e escuro como as marés incertas do destino!...
Mas a luz do dia tivera inveja da luz dos candelabros; a voz do
jornalista, é o fiat (N.E.: "faça-se") das sociedades; e a Loucura, no seu despertar de sonâmbula, emboca as fanfarras no
meio das praças, com o seu séqüito de cem escravas e de milhares de cativos.
Em janeiro de 1855 já as folhas diárias anunciavam que o carnaval seria
magnífico: as famílias mais consideradas e a mocidade mais dinheirosa e ilustre associavam-se à empresa do dia. Jurisconsultos,
médicos, jornalistas, militares, altos funcionários públicos, negociantes, fazendeiros, tudo quanto a sociedade fluminense
possuía de seleto absorvia-se numa só idéia, num só pensamento.
No largo do Rocio e em muitíssimas ruas, as casas de vender e alugar
vestimentas multiplicavam-se. Nas casas particulares viam-se o veludo e a seda, as espiguilhas e os bordados a ouro; nos
alfaiates, os costumes especiais; nos ourives, adereços finíssimos.
Decoravam-se suntuosamente os teatros. Nos cenários, subindo até as
bambolinas, os espelhos cintilavam como vagas descendo de fantásticas muralhas; palmeiras à entrada de grutas, cascatas
artificiais, flores e perfumes, faziam supor que naqueles salões enormes se iriam asilar as fadas dos contos das Mil e Uma
Noites.
Cá fora o comércio abria pesada bolsa ao artista mais hábil no enfeite
das ruas, ao jardineiro mais zeloso no cultivo das palmeiras e arbustos de ornamentação, a quem mais deslumbrantes erguesse as
arcarias iluminadas, ao pintor de mais imaginação e ao espírito no acabado dos escudos implantados de troféus, onde se liam
epigramas e quadras chistosas.
Nos coretos em profusão pregavam-se bancos para a música e colocavam-se
figuras que simbolizavam personagens e acontecimentos ridículos.
Nos primitivos carnavais a influência era tamanha, que pode dizer-se que
um terço da população mascarava-se. E tanto é verdade, que os diretores de teatros advertiam ao público que seria vedado o
ingresso nos bailes a quem não se apresentasse fantasiado.
Em 1855 fazia a sua primeira passeata o Congresso das Sumidades
Carnavalescas. Antes do dia 23 de fevereiro, em que caíra o entrudo, uma comissão composta do Dr. Joaquim Francisco Alves Branco
Muniz Barreto, coronel Polidoro da Fonseca Quintanilha Jordão e do Dr. José Martiniano de Alencar, dirigiram-se a S. Cristóvão,
pedindo a S. M. o Imperador que viesse com as princesas para o paço da cidade honrar com a sua presença o carnaval do ano e
assistir à passagem do Congresso.
Desta sociedade tiveram a iniciativa notáveis homens de letras e jovens
escritores, cujo talento impunha-se pelo brilho progressivo. Esses leais companheiros de tantas glórias, que resplandecem do
passado, faziam parte da redação do Correio Mercantil e chamavam-se Henrique Cesar Muzzio, Pinheiro Guimarães, Manuel
Antônio de Almeida, J. de Alencar, Augusto de Castro, Ramon de Azevedo e outros, que saudavam o futuro entre um artigo de fundo,
uma poesia, um folhetim, e o desabrochar das esperanças nas alamedas sempre encantadoras da primeira mocidade.
Felizes tempos aqueles em que Alves Branco, F. Octaviano, Firmino
Rodrigues Silva e Paranhos regiam os moços, porque eles viam a pena de ouro na mão do mestre e do amigo! Afastados desse grupo,
mas conhecidos de bonito nome, a eles reuniram-se Joaquim de Melo, Francisco Augusto de Sá, os dois Faros, Palhares, Cristiano
Stockmeyer, Horácio Urpia e mais, que fortaleceram o empreendimento como forma e como idéia.
Na tarde do domingo as bandas marciais tocavam; os chicards, os
titis, os flambarás, os pierrots, os débardeurs, os dominós, os Zé-Pereiras, os D.
Nunos e os cavaleiros de capa e espada percorriam a cidade. Os carros de mascarados não tinham conta. Dos sobrados
desdobravam colchas de damasco e entornavam flores; os estalos fulminantes imitavam as crepitações das fogueiras e a multidão
acudia a vários lugares, curiosa e festiva.
No ano a que nos referimos, os máscaras de espírito tornaram-se
salientes. Um francês houve que, no Provisório, intrigou a toda gente. Este máscara envergava um vestuário metade preto e metade
branco. Muitas pessoas ainda se recordam de um indivíduo que, trepado numa saia-balão de proporções colossais, distribuía pelas
janelas poesias, trocando pilhérias.
Consecutivo este carnaval à iluminação a gás desta capital, junto a um
Mineiro que montava num boi, conquistou gostosas gargalhadas um sujeito enfezadinho, escanchado numa jumenta branca,
tendo em toda a exótica vestimenta escadas e lampiões de pano, recortados e cosidos.
Pisava-se sobre folhas de canela e mangueira, sacudia-se do chapéu rosas
e jasmins, corava-se à indiscrição de uma máscara que segredava (em voz alta) o que vira e o que não vira.
Na Petalógica do largo do Rocio, Paula Brito, Teixeira e Sousa,
Constantino Gomes de Sousa, Laurindo Rabelo, Zaluar, o bacharel Gonçalves, Castro Lopes, José Anônio, Bracarense e Machado de
Assis, atropelavam os princeses, que entravam, e os desenxabidos, que passavam. Quanta lembrança original, quanto
desapontamento engraçado, quanta corrida de vencido!
Uma vez Laurindo Rabelo estava na porta
(3). Um mascarado, vestido de capim,
aproxima-se. O poeta fá-lo parar e diz-lhe, torcendo o bigode:
- Meu amigo: o senhor, depois de divertir-se, come a roupa, não é assim?
Ao que o tal indivíduo nada respondeu, encalistrado, por certo.
O Imperador, a Imperatriz e as Princesas observavam do passadiço do
palácio a animação dos festejos, esperando um pouco retirados pelas Sumidades, cuja tardança os impacientava. Por volta das
cinco horas da tarde a turba tomava as saídas, de onde o clangor dos clarins e o tropel dos cavalos avizinhavam-se.
O povo abria-se em fileiras defronte do paço; de envolta com a multidão
os velhos cabeçudos, de cajado e luneta, suspendiam no ar as enormes carrancas de papelão, saracoteando; os diabinhos
barbudos reviravam as máscaras, enrolando à cinta a cauda vermelha... A expectativa era inexcedível! E os sons se escutavam de
perto, de muito perto...
A família imperial chegava às sacadas, e os vivas e urrahs,
como uma pirâmide sonora que enfiasse a grimpa na imensidade, tinham por base ondulante o pasmo de toda aquela população.
Logo após, transpunha o largo do Paço a banda marcial do Congresso das
Sumidades Carnavalescas, vestida com o pitoresco uniforme dos cossacos da Ucrânia. Os clarins escoceses do regimento dos
highlander formavam-lhe a retaguarda, antecedendo ao carro de D. Quixote, o cavaleiro da Mancha, que fazia tremular, com a
galhardia do herói de Cervantes, o pendão admiravelmente trabalhado das Sumidades.
Todos os caleches - e deviam ser mais de doze - eram tirados a duas
parelhas lindíssimas, ajaezadas com grandeza. Sobre cada carro desenrolava-se rica colcha de damasco coberta de rendas
alvíssimas; e, em cima das almofadas, ou aos pés dos personagens, cestas com pequenos bouquets, caixinhas com estalos
fulminantes, grãos-de-bico e feijões confeitados, que cada um atirava aos espectadores das janelas e à gente aglomerada nas
ruas.
No meio dos bravos e flores, o primeiro grupo de cavaleiros foi um
sucesso maravilhoso. Era um grupo histórico, reproduzido com tanta propriedade e luxo de trajar, que não há quem o tivesse visto
que dele não se recorde deslumbrado. Esses cavaleiros eram Nicolau I, imperador de todas as Rússias; Abdul-Metjid, o senhor de
Stambul; um Grego, o almirante Duguay-Trouin, Marco Spada e um Dragão prussiano da Morte.
Parando a instantes, refreando os ginetes ariscos, jogavam às senhoras,
durante o trajeto, ramos de flores, dentro dos quais metiam um cartão de visita, que tinha por fim declarar o nome dos
personagens que representam. Por exemplo: "Nicolau I cumprimenta a V. Exa., por quem morre de amores".
Caleches com Baiaderas, Mandarins, Nobres do Cáucaso, Benevenuto Celini,
Fernando o Católico, o Duque de Guise; grupos a cavalo, caracterizados como o Duque d'Alba, Carlos V, o Conde de Provença, Tadeu
Kôsciusco; phaetontes em que se repimpavam o Dr. Dulcâmara, pregoeiros etc., constituíam o pomposo préstito do Congresso,
que, em sua marcha triunfal por uma estrada de folhas verdes e aromáticas, ao dardejar das luzes que semelhavam abóbadas de
fogo, às aclamações populares e às catadupas de flores e harmonias, entrava vitoriosamente no grande carnaval. Impossível fora
descrever o entusiasmo das multidões! Para caminhar no passado, só a imaginação esclarece a treva!
Na noite antecedente, o baile das Sumidades marcara notável
acontecimento, por isso que, como baile à fantasia, ainda nenhum outro enlaçou com tanto brilho a formosura, a nobreza e o
talento.
O Clube Fluminense, adornado com o maior esplendor, era o palácio das
representações fidalgas. As moças mais belas, membros do Ministério, do Senado, do corpo diplomático, generais, poetas,
literatos, jornalistas, funcionários públicos etc., aí se achavam, dando mais realce à grandiosa festa.
Sem roteiro determinado, a passeata daquele ano realizou-se ao acaso; e
depois de percorrerem o Catete, voltaram à chácara da Floresta, de onde saíram, dispersando-se afinal.
Na terça-feira fizeram o enterramento do carnaval. As
pompas funerárias do deus Momo não podiam ser mais solenes. O préstito seguiu a pé: carregado por dominós, o féretro
simbólico foi deposto num catafalco erguido debaixo das arcarias iluminadas da Rua das Violas (4). A banda militar tocou a marcha fúnebre, um
membro da comissão dos festejos recitou um discurso, terminado o que, foi transportado o ataúde, escoltado pelo Congresso, ao
teatro Provisório.
Durante o trajeto, as estrondosas demonstrações excediam do entusiasmo.
Vivas, poesias, alocuções burlescas na Petalógica, iluminação das ruas e do edifício do clube, bandeiras e músicas,
assinalavam-lhe os triunfos.
À entrada do Lírico, as saudações da platéia e dos camarotes não foram
menos significativas. Quando o Congresso das Sumidades Carnavalescas banqueteava-se nos salões, as polkas, os galopes, as
quadrilhas e as valsas respiravam apenas, sufocados pelos sons dos guizos e das trompas, dos gritos estrídulos, da vozeria
confusa e do bater dos pés de um louco em delírio - o Baile Mascarado!
Destarte inaugurada a festa, fora debalde querer detê-la nas suas
celebrações anuais. As Sumidades, erguendo arcos triunfais, preparavam o caminho até hoje trilhado pelo carnaval do Rio de
Janeiro, em busca do templo do deus Momo, uma das mais palpitantes individualizações das bizarrias do espírito humano.
E a União Veneziana, que aparecera mais tarde, chama o Congresso de
irmão, e disputam-se a primazia. Ambos têm nas mãos a taça dos três dias, que ferve de risos e de esquecimento.
Com a fronte engrinaldada das rosas pálidas da folia, como as mulheres
da Babilônia, o Congresso e a União antecipam-se no requinte do prazer. A Euterpe Comercial, sociedade de música, transforma-se
em Zuavos; e ano por ano, o carnaval adianta-se nas suas jornadas ruidosas.
Entretanto, o Congresso, durante o seu
reinado, campeou absoluto. Os seus bailes e os seus préstitos ficaram únicos.
***
Até 1877, a fisionomia do carnaval era
mais expansiva, mais popular. Todos os teatros davam bailes; as ruas e praças decoravam-se com amplitude e profusão; carros de
mascarados percorriam as ruas; os grupos fantasiados eram inúmeros; e os máscaras isolados faziam rir pela originalidade das
idéias, destacando-se pelo espírito.
Enquanto um préstito desfilava e um ou outro grupo mais avultado exibia-se
vistoso pelas ruas principais, foliões de todas as categorias entretinham, em quantidade prodigiosa, todas as atenções.
Sentia-se que a cidade saía fora de sua vida habitual, e que seu aspecto
exterior era um reflexo pálido da alegria pública.
Os teatros embandeirados, o comércio das vestimentas, coretos, músicas e
rumores generalizados, constituíam o clima do domingo, que, desde as duas horas, transmitia o contágio da loucura à população
inteira.
Durante os três dias havia o carnaval das ruas, dos teatros, do Clube,
dos salões. Muitos grupos organizaram-se, cada qual com mais elegância e acentuada característica.
A Boêmia, precedendo os Cromáticos, apresentou-se nos teatros com
estranho luzimento. O vestuário era o seguinte: blusa de seda, de mangas curtas, franjada de ouro, manoplas de verniz, calção de
camurça e justo, botas à Fernando, faixa de cores vivas, argolões de metal nas orelhas, cabeleira crespa, distinguindo-se
pelos capacetes encimados por pássaros, lanternas, chimeras etc., cujo efeito era admirável.
Recordamo-nos de um desses chicards, que sobre o capacete de
couraceiro prussiano ostentava um penacho escarlate e branco, de mais de um metro de altura. Esses boêmios anunciavam-se
pelo grito especial, de que trata Henri Murger.
O Clube X, do qual ainda se fala com saudade,
cumpunha-se igualmente de riquíssimos e espirituosos chicards, iniciadores dos carros de idéias, que com tanta
vantagem foram apropriados pelas sociedades ulteriores. As damas do Clube X fantasiavam-se com esmero e primavam pelo conjunto
das formas. Da passeata que fez o Clube, acompanhado de camelos, há ainda quem se lembre (5). O distintivo dos sócios era um C e um X no alto
do capacete e nos escudos.
Não nos preocupando de grupos vulgares, tratemos de uma antiga
sociedade, que retirou-se das folias carnavalescas, porque já não tinha mais louros a colher - os Estudantes de Heidelberg.
E quem eram esses estudantes? Na primitiva, rapazes do curso
médico, alguns empregados públicos, e poucos, mas de boa colocação, do comércio. Essa sociedade não fazia passeatas: dava seus
bailes, ou concorria aos do Lírico, Ginásio e S. Pedro. Pelo pessoal escolhido, percebe-se o arruído de sua existência.
Quando os Estudantes de Heidelberg transpunham os salões, a fina
crítica, a intriga espirituosa, a pilhéria inofensiva, entravam em contribuição. As famílias nos camarotes e os máscaras
que flanavam nos intervalos da dança punham-se em guarda para o riso e para o desapontamento.
O seu trajar era especial, segundo o estilo universitário. Eis o
uniforme: sobrecasaca curta abotoada, calção camurça, botas de montar, faixa, espada, boné sem aba, mas circulado por larga
fita, em que realçavam as cores da bandeira do país ao qual cada um aparentava pertencer. O rei destoava, porque substituía o
boné pelo chapéu armado e vestia irrepreensível casaca. Todos traziam porta-voz, com que atroavam céu e terra.
As mulheres que os seguiam, vestidas a capricho e interessantes,
ajudavam-lhes a atravessar a noite, no meio das danças e das gargalhadas argentinas.
Em qualquer das tardes, máscaras avulsos faziam-se célebres pela
originalidade das lembranças. Uma vez apareceu um galo bastante vistoso, que cantava, abrindo as asas, junto a um
figurão, que sobre o abdômen deixava ler o seguinte letreiro: Aqui dentro há alguma coisa.
No S. Pedro, no Provisório, depois de ter debicado nas ruas a todo o
mundo, apresentou-se um indivíduo, corretamente trajado, vestido à corte, como vulgarmente se diz, de óculos, cabeleira e nariz
postiços, de um espírito surpreendente, falando francês, inglês, alemão, italiano e português. Não houve quem não o admirasse,
já pelo chiste, já pela pureza da pronúncia nas línguas em que se exprimia.
Por baixo dos arcos pintados e de luzes; ao açoite das bandeiras
suspensas, abalroando-se nos coretos; e, à noite, ao fogo dos archotes, os Zé-Pereiras, a Morte, de campainha e
foice, os princeses de máscaras de arame e de papelão, os ranchos com tocatas e os diabinhos de rabo e chifres,
agitavam-se, moviam-se, dando a esses quadros um aspecto verdadeiramente encantador.
De súbito, uma banda de música assomava, precedida de fogos de bengala e
da multidão dando vivas. Eram as Sumidades, a União Veneziana, os Zuavos, ou qualquer outra sociedade, conforme os tempos, que
na terça-feira enterrava o carnaval...
Nos esquifes, com rodelas de limão, ouriçados de palitos, guarnecidos de
archotes, carregados ao ombro, os leitões assados, os perus, as galinhas e o fiambre para as ceias no teatro. O féretro parava
em determinados lugares, entoava-se um De profundis, tocavam-se marchas fúnebres, recitavam-se discursos cômicos, poesias
disparatadas em honra do carnaval e da comezaina.
Estas festas foram mais ou menos assim até o ano de sessenta e
tantos (N.E.: 186*), em que a Paulicéia Vagabunda compareceu
nos festejos. Foi este o último carnaval clássico, estrondoso. O Imperador desceu, na última tarde, ao paço da cidade.
À exceção do Congresso e da União Veneziana, as mais sociedades
existiam: parte da população mascarava-se, e os teatros e clubes eram paraísos artificiais.
Sem podermos firmar as datas da fundação das sociedades de hoje,
recordamo-nos de um fato que determinou o renascimento do carnaval, que ia em decadência: o incêndio de uma farmácia ou drogaria
da rua Direita, no ano de 1861. Os teatros estavam cheios e a notícia espalhou-se.
Os Zuavos, supondo que o fogo se havia declarado em casa de um dos
sócios, para lá correram, e, com o seu uniforme carnavalesco, auxiliando o corpo de bombeiros, portaram-se com a maior valentia.
Extinto o incêndio, levantaram-se para eles as labaredas do prestígio.
Novos sócios entraram; o entusiasmo aviventou-se, e não longe desse batismo de fogo, que lhes consagrou o nome, receberam no
crisma de Momo o de Tenentes do Diabo.
Nos carnavais posteriores a 1869, uma outra geração, trazendo consigo
novas idéias, veio ocupar o cenário pouco povoado do passado e assistir à agonia das derradeiras associações que faleciam. Da
altura de suas aspirações, recolheu o que lhe pareceu útil, acumulando os cabedais de que presentemente dispõe.
Os Fenianos, grupo dissidente dos Tenentes do Diabo, exemplificam o que
dizemos. A partir de 1870, o carnaval concentrou-se nas grandes sociedades, absorvendo os máscaras avulsos. Pequenos grupos,
foliões dispersos e de pontos distantes, para verem o desfilar de um préstito suntuoso, afluíam aos lugares indicados no
itinerário, abandonando assim seus passeios, seus centros, seu meio; mas como tanto gozavam fantasiados como sem disfarce,
opinaram pela conveniência, e o máscara de ontem tornou-se o curioso de hoje.
Não sabemos se com isso ganhou ou perdeu o carnaval; como regozijo
popular, não é mais o que era. Os teatros, ficando vazios, porque as cavernas e as casas próprias locupletavam-se,
apagaram seus lustres, fecharam suas portas; e os curiosos, depois que as sociedades passam, voltam aos seus lares, como nos
dias comuns.
Entretanto, cumpre confessar que os Democráticos, Fenianos e Tenentes
são justamente dignos da gloriosa reputação que lhes dispensa o público, reputação adquirida pelo espírito sutil de suas
idéias, pelo aparato grandioso de seus préstitos.
Margeando as correntes modernas, substituíram as cavalgadas numerosas,
os carros de máscaras, os personagens disfarçados, a mascarada geral, pelas suas custosas bandas de música, pelas alegorias do
Porta-estandarte, pelos carros de idéias, cada qual mais espirituoso e original, ou mais rico.
Debaixo das rodas desses carros, entretanto, ficaram esmagados os
arlequins, os polichinelos e outros tipos, que outrora tanto nos divertiram. E a alusão deixou de ser pessoal para abranger um
círculo, um fato, uma ação. Aplaudidas muitas das suas críticas pela fidelidade das reproduções, os acontecimentos mais
ridículos e frisantes do ano são transportados para aqueles cenários ambulantes, como para um baixo-relevo executado por mestre.
O povo ri-se a bom rir, porque, conhecendo os assuntos, pode dar aos personagens os nomes autênticos.
Depois das ruidosas Alegorias, em que todas as sociedades se empenham
por exceder-se, seguem-se os carros de idéias, em que os Fenianos, Democráticos e Tenentes têm-se coroado de lauréis, na
realidade deslumbrantes. A passagem de Vênus, em que aparecia um célebre astrônomo armado de telescópio; A
mancha de Júpiter, alusão magnífica à escravidão; Braços à lavoura, As barraquinhas, a Questão dos bispos
etc., conquistaram tão vivas manifestações que a impressão produzida restou inapagável na memória pública.
Os Fenianos, os Tenentes e os
Democráticos, empunhando o cetro da tradição, representam atualmente o carnaval do Rio de Janeiro (6).
NOTAS (de Luís da Câmara
Cascudo):
(1) Américo Fluminense, O Carnaval no Rio, revista Kosmos, nº 2, fevereiro de 1907, Rio de Janeiro:
"- Fizeram, então, uma persistente campanha contra o entrudo. A polícia empregou energia,
perseguindo os entusiastas desse divertimento. Os primeiros resultados dessa perseguição apareceram em 1854, cujo carnaval
correu animadíssimo, vendo-se pelas ruazinhas cariocas carruagens com famílias fantasiadas, muitas máscaras avulsas e alguns
montando cavalos ajaezados. Dois anos depois, em 1856, o Chefe de Polícia, Dr. Alexandre Joaquim de Siqueira, conseguia reprimir
o entrudo".
Max Fleiuss, História da Cidade do Rio de Janeiro, 218, dá outra
data: "... sendo que, a 28 de fevereiro de 1854, foi que pela primeira vez se aboliu o entrudo
grosseiro do tempo colonial, substituído por passeata carnavalesca, com carros alegóricos e máscaras a cavalo e em carruagens".
O Sr. Melo Barreto Filho, amavelmente, escreveu para mim a seguinte
nota: "Foi realmente o Chefe de Polícia Alexandre Joaquim de Siqueira, quem acabou com a selvagem
prática do entrudo, que caracterizava os folguedos carnavalescos até o ano de 1852. Mas em 1853, por determinação daquela
autoridade, o fiscal da freguesia da Candelária fez publicar em todos os jornais a seguinte portaria, que marca, oficialmente, o
início da campanha vitoriosa:
"Fica proibido o jogo do entrudo; qualquer pessoa que jogar incorrerá na
pena de quatro a doze mil réis; e não tendo com que satisfazer, sofrerá de dois a oito dias de prisão. Sendo escravo, sofrerá
oito dias de cadeia, caso o seu senhor não o mandar castigar no calabouço com cem açoites, devendo uns e outros infratores serem
conduzidos pelas rondas policiais à presença do Juiz para julgar à vista das partes ou testemunhas que presenciaram a infração.
As laranjas de entrudo que forem encontradas pelas ruas ou estradas serão inutilizadas pelos encarregados das rondas fiscais.
Aos fiscais com seus guardas fica pertencendo a execução desta pena. E para constar faço público o cumprimento da citada
portaria. Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1853. (a) Mendes da Costa, fiscal da freguesia da Candelária".
Mas foi em 1854 que o entrudo desapareceu definitivamente, cedendo
lugar, no ano seguinte, aos préstitos, com a organização da primeira sociedade denominada Congresso das Sumidades
Carnavalescas, intensificando-se, também, por essa ocasião, o comércio de artigos carnavalescos, sendo a principal casa a
Casa do Eugênio, que ficava na Rua dos Latoeiros, 87, hoje Gonçalves Dias, esquina da Rua do Rosário. Impedida pela Polícia,
de praticar o entrudo, a população afluiu aos bailes públicos, entre os quais deixaram fama os do Teatro Provisório, os do
Paraíso e, principalmente, os do Hotel Nicola, onde o custo de cada ceia era de 1$600 por pessoa, com direito a uma garrafa de
Bordéus, ou de Lisboa e pão à vontade".
O claro resumo dá bem uma idéia da atividade do Des. Siqueira contra a
sugestiva brutalidade do Entrudo. Este, entretanto, exilado da Corte, viveu otimamente até primeiros anos do século XX pelas
províncias. Laranjinhas, farinha-do-reino (trigo), pós-de-sapato, dominavam, nos banhos coletivos e brutos, nos três dias
irresponsáveis e delirantes. Na cidade de São José de Mipibu, no Rio Grande do Norte, em 1886, toda a população se molhou
ruidosamente num entrudo que ficou famoso. Nem o reverendo vigário, Cônego Gregório Ferreira de Lustosa, escapou.
(2) O primeiro baile mascarado no Rio de Janeiro realizou-se no Teatro São Januário, entre a praia de D. Manuel e a
Rua do Cotovelo, na noite de 23 de fevereiro de 1846. Este teatro durou até 1868, quando foi demolido. Nele, João Caetano teve
sua festa gloriosa, representando A Gargalhada, de Jacques Arago, na presença do autor, a 18 de outubro de 1850. A
cantora Clara Delmastro Eckerlin estreara a 23 de julho de 1844 no papel de Joana Seymour, na Ana Bolena de Donizetti, no
Teatro São Pedro, atualmente João Caetano. Ana Lagrange a 17 de agosto de 1858 na Norma, de Belini, no Teatro Provisório,
apresentou-se. Lagrange e Delmastro não pertenciam ao mesmo grupo. Lafayette Silva, História do Teatro Brasileiro, 40,
47, 445 e 448, Rio de Janeiro, 1938; Renato Almeida, História da Música Brasileira, 198.
(3) Laurindo José da Silva Rabelo, oficial médico do Exército, nasceu e faleceu no Rio de Janeiro, 8 de julho de
1826 e 28 de setembro de 1864. Poeta lírico, orador, repentista invencível, improvisador poderoso, era afamado pelas respostas
felizes, sátiras espontâneas e vasto anedotário. Sílvio Romero dizia-o o talento mais espontâneo que tem existido no Brasil.
Melo Morais Filho escreveu um ensaio sobre Laurindo Rabelo no seu Artistas do meu tempo, Rio de Janeiro, 1940. Um soneto
seu, O tempo, era recitadíssimo em todo o Brasil. Ainda o alcancei teimoso nos repertórios:
Deus pede estrita conta do meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas, como dar sem tempo tanta conta!
Eu que gastei sem conta tanto tempo!
Para ter minha conta feita a tempo,
Dado me foi bom tempo e não fiz conta;
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Quero hoje fazer conta e falta tempo.
Ó vós que tendes tempo sem ter conta,
Nao gasteis esse tempo em passatempo,
Cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta.
Mas, oh! se os tempos que contam com o seu tempo
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não choravam sem conta o não ter tempo!
(4) Rua das Violas, Rua Teófilo Otoni.
(5) "O Clube X exibia uma caravana oriental montada em camelos, que mandara vir da Ásia, propositalmente para esse
fim" - Américo Fluminense, O Carnaval no Rio, revista Kosmos nº 2, fevereiro de 1097, Rio de Janeiro.
(6) Esses três Clubes existem no Rio de Janeiro, garantindo os préstitos carnavalescos da terça-feira gorda. São os
mais prestigiados pela simpatia popular. O carnaval carioca, dos clubes e das ruas, foi registado, com nitidez, pelo sr. Luís
Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo, III, 779, nos primeiros anos do século XX. Rio de Janeiro, 1938. |