Anchieta, em detalhe do teto
da sacristia da Catedral de Salvador, Bahia
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed.
Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Anchieta e o clero
Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira Camargo
O primeiro contato visível de José
de Anchieta com sacerdote católico foi a 7 de abril de 1534, dia do seu batismo em São Cristóvão de La Laguna, diocese de
Tenerife, nas Ilhas Canárias. Nasceu a 19 de março, festa de São José, donde lhe viera o nome glorioso.
A certidão traz sigla enigmática do batizante:
Jñ gttrs Vcº; [1] seria biscainho? (Juan Gutierres, Vicario). Um atual copista enviou ao Padre Hélio
Abranches Viotti a tradução errada - Padre João Fernandes, Beneficiado. Então seria
frso sobrenome cifrado e não gttrs (Gutierres).
Que era João não há dúvida, pois do mesmo modo fora grafado o nome
do pai: Jñ de Anchieta, parente de Inigo de Loiola que naquele ano
fundara a Companhia de Jesus, em Espanha.
Biscaia, terra de seu pai, local Guipuscoa, e outras localidades,
gloriavam-se dos Anchietas, tão nobres quanto os Loiolas. A mãe, D. Mência Dias de Clavijo Llarena, porém, era da Grã Canária.
Esta zona toda pertencia à Espanha, embora ficasse mais perto de
Portugal. A cleresia local freqüentava muito a casa de Anchieta, que mantinha respeito e enorme amizade com todos os clérigos.
Estes precediam aos nobres em recepções religiosas: Clero, Nobreza, Tropa e Povo.
Quem teria dado a primeira comunhão a Anchieta? Havia perto de sua
casa um convento; é provável que algum religioso fosse seu primeiro confessor e quiçá professor das primeiras letras e de
rudimentos do latim. O brilho de sua inteligência apontou-lhe centro de maior cultura em Portugal.
Aos 14 anos de idade fora enviado a Coimbra e lá se matriculou na
célebre universidade, a qual freqüentou durante três anos consecutivos, otimamente aproveitados. Estudou latim e as matérias
anexas ao curso de Mestre em Artes, bacharel.
Era bispo daquela diocese D. Frei João Soares (1545-72)
[2]. Anchieta o conheceu e quem sabe por ele fora
crismado. Em sua catedral fizera seu espontâneo voto de castidade, diante de uma imagem da Santíssima Virgem Maria, com
aprovação de seu confessor jesuíta que lhe traçara um regulamento de vida espiritual, observado rigorosamente. O sentimento
religioso, assim concretizado, encaminhava-o ao sacerdócio; era notória a sua vocação sacerdotal.
O ambiente místico educacional do lar materno, o
enorme prestígio com que a Companhia de Jesus se instalara em Portugal, glorificando seu parente Inácio de Loiola,
convenceram-no de nela ingressar aos 17 anos de idade (1º de maio de 1551): "Tratava só de conhecer
a si mesmo, os enganos da carne e os desenganos do espírito por meio do caminho seguro da obediência e mais virtudes religiosas" [3]. Assim
o fez, com decidida coragem varonil. Tinha especial devoção de ajudar missas e o fazia nas seis ou mais celebrações
consecutivas, sempre de joelhos.
Um acidente, entretanto, o fizera paralisar seus estudos no
Colégio dos Jesuítas de Coimbra; enfermidade grave, se não mortal, era cruciante.
"Que doença era?
Objetivamente, um mal de costelas, que estavam fora do seu lugar: 'desencadernamento das costelas', como o descreve Quirício Caxa. A origem desta doença dá-a o mesmo biógrafo como sendo proveniente do mau jeito
com que Anchieta estava de joelhos quando ajudava as missas. Pero Rodrigues fala genericamente duma grande enfermidade e
Vasconcelos repete a mesma opinião de Caxa e acrescenta outra, que alguns diziam, a saber, que caíra em cima dele uma escada,
produzindo aquela fratura ou deslocamento da espinha dorsal"
[4].
Vasconcelos observa: "Sofria, gemia, dobrava o corpo a um dos lados e cingia-se estreitamente com cintas apertadas. Porém neste mesmo
remédio consistiu a maior força do mal, porque apertado o espinhaço com demasia, lançou de si junto ao osso sacro as cabeças dos
ossos, que ali se atam com os músculos; e desatados estes sem firmeza, contraiu lesão disforme no espinhaço e costelas, ficando
o corpo a uma parte penso" [5].
O fato foi que a escoliose, afastamento do raquis, o fizera
sofrer a vida inteira, inclusive nos joelhos, pelas contínuas genuflexões. Teve paciência heróica, havia já dois anos de
martírio contínuo.
Franzino e assim sofredor, pensaram os médicos e lhe aconselharam
clima melhor e tropical - o Brasil. Foi por isso que o provincial, Padre Miguel de Torres, incluiu-o na terceira turma às terras
brasileiras, juntamente com Padre Luís da Grã, Padre Brás Lourenço, Padre Ambrósio Pires e os Irmãos João Gonçalves, Antônio
Blasque e Gregório Serrão.
O grupo destemido embarcara-se no navio que transportava o 2º
Governador Geral, D. Duarte da Costa (8 de maio de 1553). Durante a viagem Anchieta rezara muito, inclusive à noite, catequizava
os passageiros e marujos, atendendo às necessidade de todos os viajantes beneficiados.
A Bahia o recebeu a 13 de julho com as pomposas festas de estilo
acrescidas ao governador e à sua comitiva. O colégio do Salvador, entretanto, estava entregue ao Irmão Vicente Rodrigues,
auxiliado pelo Irmão Domingos Pecorella, assistidos pelo único sacerdote, Padre Salvador Rodrigues, que morreu a 15 de agosto.
Padre Manuel da Nóbrega, muito desgostoso com as tremendas turras
e polêmicas virulentas com o bispo, porque não combinavam em coisa alguma, retirara-se a São Vicente; lá concentrou também
outros jesuítas do Brasil, que mandou buscar pelo Padre Leonardo Nunes.
"Se o impávido e
experimentado Nóbrega assim desanimava, qual não seria o desalento do jovem Anchieta ao aportar à Bahia, descrita assim com
exaltação de moralista como uma Babilônia?"
[6].
Nos três meses de permanência no Salvador, Anchieta teve
oportunidade de verificar, com tristeza, o gênio dificílimo do bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, agora em maiores lutas com D.
Duarte da Costa. Foi causador D. Álvaro, filho do Governador.
Anchieta visitou o antístite, porém nenhum partido tomou nas
desavenças dos importantes contendores. O respeito e a prudência faziam-no um perfeito religioso, somente interessado em sua
própria salvação eterna e na dos seus semelhantes, entregues a seus cuidados espirituais de importância capital, agora em São
Vicente, salvo que fora em naufrágio nos Abrolhos.
Nas informações conhecidas descreve com simplicidade o resumo
biográfico do prelado:
"O primeiro bispo do
Brasil foi D. Pedro Fernandes Sardinha, que servira já de provisor ou vigário geral da Índia. Este veio no ano de 1552 à Bahia,
cujo bispo se intitula comissário geral de toda a costa, e assim mesmo todos os mais e esteve nela até o de 1556, no qual se
partira para Portugal com licença de El Rei. E dando à costa, entre o Rio São Francisco e Pernambuco, foi morto pelos índios com
a maior parte da gente que com ele ia, em que entrou o primeiro provisor desta Província, Antônio Cardoso de Barros, que veio
com o Governador Tomé de Souza" [7].
Vê-se a suma delicadeza de expressão "partira
com licença", quando na verdade fora o bispo chamado pelo Rei. Ao descrever a morte de D. Pedro, manifestou Anchieta
o profundo pesar, oriundo de seu coração caridoso e compassivo, em grande sentimentalismo: "Os
membros todos lhe desfalecem aos poucos: em breve, espetáculo lastimável, exala o derradeiro suspiro. Foi este o fim do grande
Prelado quem por primeiro regeu as plagas brasileiras, de báculo, mitra e tiara. Glorioso, outrora, ei-lo estendido na margem do
rio, todo despido, todo ferido, sem a paz do sepulcro"
[8].
Modelo de reverência, embora não lhe pudesse dizer o parce
sepultis, porque o bispo insepulto fora devorado pelos índios caetés, que fizeram realidade seu apetitoso sobrenome.
Anchieta conheceu no Salvador ao ex-dominicano Deão Gomes Ribeiro,
o Vigário Padre Manuel Lourenço, todas as dignidades e os serventuários da Catedral, que o veneravam pelas suas notórias
virtudes e inteligência invulgar.
Deu Anchieta incremento à aldeia de Reritiba. Em Vitória viu Padre
Francisco da Luz, que também fora organista da Sé e Vigário Geral interino e conheceu o Padre Pedro de Souto.
Depois de 1558, Frei Pedro Palácios, franciscano, apareceu no
Espírito Santo. Anchieta o orientou nas várias oportunidades, até sua morte, em 1575, bem como a Frei Nicolau Afonso que o
sucedeu na Penha, aureolado pela devoção capixaba. Atribuem a Anchieta a fundação de Cricaré (21 de setembro de 1583 - São
Mateus).
O Vigário de Ilhéus, Padre João Afonso Azedo e mais certamente seu
sucessor, Padre Gaspar Mendes (1562), ambos teriam trato cordial com Anchieta. Assim também o Padre Bartolomeu Aires de
Itamaracá e de modo especial seu suplente Padre Domingos Martins (1563). Padre Pedro Manso de Pernambuco vira o taumaturgo após
a sua chegada, e até 1560, quando faleceu.
Anchieta desembarcava em São Vicente (24 de setembro de 1553);
Padre Simão de Lucena, 2º Vigário, o recebeu com verdadeira complacência e amizade espontânea. Antônio de Lucena, seu parente,
fora a seguir aluno de Anchieta, no colégio de São Paulo, aumentando assim a amizade da família com o ilustre professor
biscainho.
A sentença inocentando os jesuítas, no processo instaurado, a
pedido de Nóbrega, para apurar a veracidade das acusações surgidas, mostra o bom conceito do Padre Lucena, admirador dos
jesuítas e, especialmente, do notável Anchieta e do Padre Manuel de Paiva, parente de João Ramalho, o acusador irreverente.
O piedoso Padre Fernão Luís Carapeto, Vigário de Santos
(1550-1555), depois de Bertioga (1555-1556), amigo incondicional de Anchieta, o imitou e se fez jesuíta (1556); foi padre
espiritual, confessor de Tibiriçá, do Padre Manuel da Nóbrega, e quiçá do próprio Anchieta, em vários encontros fortuitos ou
procurados de propósito para aquele fim saneador.
O 1º Vigário de São Vicente (1532-1535), Padre Gonçalo Monteiro,
designado para Santos (1549) lá chegou em 1555, embora nomeado anteriormente. Aceitou, depois, a direção espiritual de Nóbrega e
seguiu os conselhos salutares de Anchieta, a quem consagrava infinda veneração e respeito até morrer.
No processo de João de Bolés, não
encontrando culpabilidade passível de condenação, enviou o herege à Bahia. Serviu para provar que Anchieta não assistiu a morte
de Bolés, aconselhando ao carrasco como deveria fazer para o enforcamento mais rápido [9], conforme imaginaram alguns escritores de oitiva. Bolés morreu nas Índias [10], onde Anchieta nunca estivera.
O interessante cosmógrafo Frei André Thevet,
franciscano, e os oito frades cistercienses que estiveram em Guanabara, no tempo de Villegaigon, se não conheceram pessoalmente
a Anchieta, tiveram amplas notícias dele que os cita em suas informações históricas interessantíssimas, inclusive do único
bispado então governado por delegação especial: "Na vacante deste veio por visitador o comissário
geral de toda costa, o Dr. Francisco Fernandes, que regeu a Igreja brasileira até a vinda de D. Pedro Leitão" [11], 2º
bispo do Brasil. O 4º grupo de jesuítas veio com ele (9 de dezembro de 1559). Anchieta louvou o Padre Fernandes quando batizou
aos índios de Bertioga, condenados à morte iminente, sem recurso algum jurídico. O conhecimento era recíproco e respeitoso entre
ambos, cronista e visitador Vigário Geral.
D. Pedro Leitão, contemporâneo de Anchieta, em Coimbra,
prazerosamente lhe conferira as ordens sacras no Salvador da Bahia (1566); agiria com mais eficácia, desde aquele dia. Anchieta
tinha estado, anteriormente, com Nóbrega em Iperoig, para o armistício desejado. Chegaram a 5 de maio de 1563. Enquanto fora
refém, escreveu Anchieta o célebre poema De Beata Virgine dei Matre Maria. São 5.786 versos contando as Piae
Petitiones em puríssimo latim clássico.
Acompanhou, com o Visitador Padre Inácio de Azevedo, ao bispo
referido, na esquadra do 3º Governador Geral Mem de Sá, quando este veio expulsar definitivamente os franceses do Rio de Janeiro
(1567).
O primeiro vigário daquela paróquia, Padre Mateus Nunes (1569-97),
várias vezes conversou com Anchieta, pois, antes mesmo de exercer aquele cargo já o admirava muito pela fama de santo milagroso
de irradiante simpatia.
Teria sido Anchieta quem convidou ao bispo para
vir à Capitania de São Vicente em visita pastoral, como fizera em toda costa marítima brasileira? É bem provável, pois iria
dirigir o Colégio de São Miguel, em Santos. O bispo gostava muito da pregação do Padre Anchieta e "dizia
que antes queria ouvir o canto daquele canário, que os sermões de todos os outros pregadores do mundo" [12].
Anchieta falava e escrevia em 4 línguas: espanhol, português, latim e tupi.
Ficou D. Pedro Leitão vários meses crismando e exercendo o
munus de bom pastor aos que nunca tinham visto bispo algum. Ele era amicíssimo de Anchieta desde Coimbra; conversariam
sempre recordando os tempos universitários. As paróquias do Sul eram poucas: São Vicente, Santos e Bertioga. São Paulo ainda não
tinha conseguido a nomeação de seu pároco; serviam os jesuítas desde a fundação (1554). D. Pedro Leitão não a visitou; teria
legado ao Padre Inácio de Azevedo, visitador dos jesuítas, a incumbência de crismar os paulistanos.
Anchieta, amigo e exímio colaborador do Padre Manuel da Nóbrega,
sentiu a sua morte no Rio de Janeiro (18 de outubro de 1570). Lamentou também o falecimento do Governador Geral, Mem de Sá,
sobre quem escrevera um notável poema em latim clássico, e, principalmente, sentiu a perda do seu amigo o Bispo D. Pedro Leitão
(outubro de 1573).
A estas figuras notáveis juntou-se D. Pedro Fernandes
de La Torre, Bispo de Paraguai (1556-1573), que faleceu, em trânsito, naquele mesmo ano, com assistência sacerdotal do Padre
José de Anchieta, em São Vicente; edificou a todos pela sua santa morte. No navio que o conduziu a Espanha ia preso João Ortiz
de Zarate, sucessor de Irala no governo do Paraguai [13].
Depois do Padre Manuel da Nóbrega, foi provincial o Padre Inácio
de Tolosa (1572-1577). Nesse último ano, ele levou ao Salvador o Padre José de Anchieta, Superior da Casa de São Vicente, por
isso não tomou posse como Reitor do Colégio no Rio de Janeiro.
No dia da partida, o povo todo foi ao cais, acompanhá-lo em
procissão. As lágrimas e suspiros dos que ficavam representavam ao vivo a despedida do Apóstolo São Paulo, quando, em Mileto, se
apartou dos seus discípulos para ir a Jerusalém - observou, com razão, o Padre Luiz da Fonseca. Na Bahia, Padre Anchieta recebeu
notícia de sua nomeação para Provincial (1578), feita pelo Padre Geral Everardo Mercuriano, que havia sucedido a São Francisco
de Bórgia.
"O cuidado e
pensões do governo, parece que o deviam isentar de outras ocupações, máxime com a precária saúde que tinha; seu zelo, porém, não
se compadecia com isso; durante todo seu Reitorado e Provincialato, jamais cessou, salvo sempre o desempenho dos deveres de seu
cargo, de trabalhar na conversão dos gentios, e na sua manutenção da piedade entre os que já se haviam convertido à fé católica" [14].
Era, realmente, admirável em todos os atos, a contar os de simples
religioso, como reitor e provincial mui condescendente, humano e caridosíssimo para com todos que dele se aproximavam nos sete
anos de seu provincialato piedoso.
Sucedeu-o o Padre Marçal Beliarte (1587-1594)
[15], tendo exercido anteriormente o cargo também o Visitador
Cristóvão de Gouveia (1583-1589). Nessa última data, Anchieta era Superior do Espírito Santo.
Nossa Senhora da Penha o atrairia à meditação
profunda, depois de ter andado "através de charnecas, espinheiros, brenhas, dunas, encostas e
areais" [16] sempre a pé: Bahia, São Vicente, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e em trânsito por todas as capitanias do
Brasil evangelizando, esplendidamente. Era recebido com agrado e ótimo acolhimento por todos os vigários dos lugares em que
passava espargindo o odor da santidade.
O primeiro vigário de São Paulo, Padre Lourenço Dias
Machado (1591-1594), certamente conviveu com Anchieta, se não na última visita ao Sul (1593-1594), pelo menos quando foi à Bahia
tratar do seu cargo, ou anteriormente, estudante em São Vicente. Assistiu a cura de sua mãe, Isabel Afonso, no Rio de Janeiro,
em 1583, atribuída ao Padre Anchieta, e depôs no processo (1611) para a canonização do taumaturgo [17]. Daí se vê a devoção da família ao venerável Padre Anchieta, prodigioso
intercessor junto a Deus onipotente.
O segundo Vigário de São Paulo, Padre Paulo Lopes, o devia ter
conhecido em Vitória, pois lá fora aluno dos jesuítas e assistiu-lhe o sepultamento.
Padre Jorge Rodrigues, Vigário de Santos (1589-1611), o recebeu e
conversou com ele, curiosamente (1593-1594).
Sinete da Companhia de Jesus
Imagem: História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997, S.
Paulo/SP
Todos os padres do Brasil, de Norte a Sul, louvavam o apostolado
caridoso e a santidade de Anchieta, afirmada pelo povo, que recebia seus favores imensos com bastante proveito espiritual:
Vox populi vox Dei.
Jamais Anchieta ofendeu por palavras, gestos ou mínimas ações ao
clero secular ou regular. Teve com eles relações de excelente e mais perfeita cordialidade educacional; era por todos o
preferido confessor, onde estivesse. Profetizou que nenhum clérigo jesuíta morreria picado por qualquer cobra no Brasil. Não
consta tivesse acontecido o contrário até hoje, inclusive em outros clérigos seus devotos.
O terceiro bispo da Bahia, D. Constantino
Barradas (1575-1600), tratou com Anchieta até como provincial (1578), embora este anotasse em suas informações que D. Barradas
não gostava muito dos índios. Confessou, entretanto, que foi às aldeias e crismou muitos "que
tinham necessidade deste sacramento" [18]. Não teria sido a contagiante virtude anchietana que concorrera para mudar o mau
conceito do bispo a respeito dos jesuítas, em 1583?
Em visita pastoral, Anchieta o acompanhou desde a aldeia de Santo
Antônio à de São João. Vira o bispo que ele ficara atrasado e andava sempre a pé. Ao chegar ao término da viagem assustou-se ao
ver Anchieta à frente do povo.
O fato foi a caridade episcopal generalizada, não só a seu clero
mas também aos jesuítas e aos diocesanos favorecidos em suas doações benfazejas, após a sua morte.
Quem, entretanto, mais de perto apreciou os méritos infindos de
Anchieta foi o prelado do Rio de Janeiro, Padre Bartolomeu Simões Pereira, chegado em 1577, embora a prelazia viesse de 1575.
Afastou-se da sede prelatícia, por distúrbios contra
ele, e se dirigiu a Vitória do Espírito Santo, onde chegou a 1º de julho de 1591. Anchieta promoveu grandiosa recepção e
escreveu os seguintes versos, declamados por certo curumim capixaba com entusiasmo e boa dicção:
"Ao Padre Bartolomeu Simões Pereira
- Onde vais tão apressado,
periquito tangedor?
- A ver nosso bom pastor.
- Para que queres andar
e correr com tanta pressa?
- Para ver nossa cabeça,
que nos vem a visitar.
Digno é de festejar,
com cantares de louvor,
este nosso bom pastor.
- E tu sabes quem nos deu
este pastor excelente?
- O pastor onipotente,
que por seu gado morreu.
Chama-se Bartolomeu,
grande servo do Senhor,
este nosso bom pastor.
- E que sobrenome tem?
- Ouvi dizer que Simões.
- Ganharemos mil perdões,
pois em nome de Deus vem.
Não desconfie ninguém
do soberano favor,
pois que temos tal pastor.
- Tens ouvido
outro nome e apelido
que tem lá na derradeira?
- Imagino que Pereira,
que dá fruto mui subido
como exemplo conhecido
de doutrina e bom odor
para o gado do Senhor.
- Dize tu, qual é o gado
que ele vem apascentar?
- O povo deste lugar,
pelos padres batizado.
E será bem confirmado
na fé de Nosso Senhor,
pela mão deste pastor.
- E que traz para nos dar?
- Um óleo sagrado e bento,
que se chama sacramento,
com que nos há de crismar,
para poder pelejar
contra Satanás traidor,
com ajuda do bom pastor.
- E quem pode confirmar,
se não há bispo sagrado?
- Também o nosso prelado,
pois o papa lho quer dar
e por isso quis chamar
outro bispo com louvor,
o nosso administrador.
- Segundo isso, parece
que a mitra só lhe falta?
- Isso é coisa muito alta,
mas ele bem a merece.
- Ó! se ora Deus quisesse
que viesse tal honor
para nosso bom pastor?!
- Vamos-lhe a beijar a mão.
- Sou contente.
Dar-nos-á sua benção
santamente.
- Diremos a nossa gente,
que venham a dar louvor
ao nosso bom pastor.
E vos manda por tenção,
senhor administrador,
que façais, com grã fervor,
que se aumente a conversão
para glória do Senhor".
[19]
Outros versos aludem ao crisma e ao desejo que o prelado fosse
sagrado bispo diocesano.
Era Anchieta, naquele tempo, 1591, "Superior do Espírito Santo", a
cuja Capitania havia de dar o resto dos seus dias, exceto algumas interrupções em que foi à Bahia, à Congregação Provincial e
1592, ou ao Rio de Janeiro, como Visitador, em 1593 e 1594. Estando em Vitória e sentindo-se mais doente do que o costume, pediu
o levassem à Aldeia de Reritiba, onde faleceu santamente no dia 9 de junho de 1597. Assistiram-lhe alguns Padres, que logo
trataram da sua condução para a capital do Espírito Santo, onde o recebeu toda a terra, com as autoridades civis à frente.
Aos ofícios solenes pregou Bartolomeu Simões Pereira,
Administrador do Rio de Janeiro, que chamou Anchieta "Apóstolo do Brasil". [20]. Epíteto certo, sem contestação possível, tal a sua conhecida apostolicidade de Norte a Sul do País por ele
evangelizado durante 44 anos ininterruptos (1553-1597).
Reritiba chamou-se Vila Nova de Benevente, elevada a essa
categoria (1º de janeiro de 1584); hoje é Anchieta, homenagem ao taumaturgo.
Foram, realmente, muito cordiais, educadas e amistosas as relações
entre Anchieta e o clero. Era preciso lembrar nesta comemoração monumental o aspecto inédito da notável atuação anchietana no
meio clerical circundante em que viveu. A vida íntima do religioso jesuíta está focalizada por vários autores e será ainda tema
a muitos livros destinados a maior divulgação, em vista da desejada canonização pela Igreja.
Espera-se milagre real provado, embora as graças
sejam infindas até hoje. O licenciado Lourenço da Cunha, ex-comissário geral da Bula da Cruzada em Pernambuco, conseguiu uma
relíquia de Anchieta e com a água nela tocada "curou milagrosamente mais de duzentos enfermos" [21].
Houve várias tentativas de arrolamento de testemunhas:
1617, na Bahia, 1619-1622 em Olinda, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo: oitenta e cinco testemunhas. Na Bahia depuseram Cônego
Gonçalo Rodrigues e Padre Barnabé Soares. No Rio de Janeiro, além de outros, o Padre Francisco da Silva, natural de São Vicente.
Todos os processos relatam fatos interessantes [22].
Houve outros muitos processos. No tempo do 5º bispo da Bahia, D.
Marcos Teixeira, foi introduzida a causa em Roma (1624). Delegados João Coccino, decano do Tribunal da Rota; Afonso Manzanedo de
Quiñones, Patriarca de Jerusalém, lugar-tenente auditor; e Felipe Pirovano, auditor.
Com a morte do prelado baiano, ficou transmitido o cargo ao
licenciado Pedro Velho, Arcediago da Sé e provisor da diocese, ao licenciado Diogo Lopes e ao Cônego Belchior Pereira (7de
outubro de 1624).
Foi nomeado juiz comissionado, em São Paulo, o Padre
João Pimentel, Vigário da Paróquia e da Vara para inquirir as testemunhas arroladas (1º de fevereiro de 1627). Procurador da
causa o jesuíta Padre Salvador da Silva, Superior da casa de Santo Inácio, nomeado pelo Vice-Provincial Padre Manuel Fernandes
[23].
No século seguinte ainda se tratou do mesmo assunto em Roma. A 31
de junho (N.E.: SIC. Data correta é 31 de julho) de 1736 o Papa
Clemente XII presidiu a Congregação Geral dos Ritos, quando o Cardeal Imperial propôs a causa de beatificação e canonização do
Venerável Servo de Deus Padre José de Anchieta, religioso professo da Companhia de Jesus. Foi então proposto: "Se consta das virtudes teologais e cardeais do Venerável Servo de Deus, no caso e para o efeito do que se trata". O Santo Padre resolveu adiar a resposta para, com mais tempo, poder invocar o Pai das Luzes.
No dia de São Lourenço (10 de agosto), o Papa
chamou o Padre Luís de Valentibus, Promotor da Fé e o Secretário da Sagrada Congregação dos Ritos, A. F. Card. Zondadari, Pref.
T. Patriarca de Jerusalém e lhes ordenou que declarassem: "Constar das virtudes do Venerável Servo
de Deus, José de Anchieta, em grau heróico, no caso e para o efeito de que se trata, tanto das virtudes teologais, a saber: fé,
esperança e caridade; como das cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança"
[24].
Este foi até hoje o pronunciamento da Santa Sé, dando sentença
afirmativa sobre a heroicidade das virtudes do imortal Padre José de Anchieta. Ainda a 17 de janeiro de 1758 o bispo de Mariana,
D. Frei Manuel da Cruz, recomendava orações para a canonização de Anchieta.
Em 1883 foi reaberta a causa, em Roma, copiados os autos da Bahia
(1743-1751). No Brasil, ainda em 1897, comemoração do III centenário da morte de Anchieta, 16 Arcebispos e Bispos residenciais,
um titular e o Vigário Capitular do Rio de Janeiro, pediram ao Papa Leão XIII a canonização de Anchieta.
A 20 de março de 1900 foram expedidas ordens para o
processo em São Paulo e este se prolongou até 1910, sem efeito algum. O milagre apresentado de maior valor foi a imunidade
contra a picadura das cobras, que Anchieta prometeu aos irmãos de hábito e aos que dele dependessem. A Sagrada Congregação dos
Ritos não julgou convincente aquela profecia, para total canonização [25].
Esperamos um novo pedido dos Bispos do Brasil, já também feito em
1954 agora com o mesmo fim, no IV Centenário da morte do Padre José de Anchieta, que será celebrado oficialmente em todo o País
pelo clero amigo e admirador de suas virtudes heróicas.
O povo dará seu veredicto devocional, embora agora só o conheça
pelas biografias inumeráveis e, principalmente, pelas graças que dele recebe com extraordinária exuberância concessória de
taumaturgo amigo sincero.
Escreveu Fagundes Varela
[26]: "Alma
inspirada de Anchieta, ilustre espírito de Apóstolo das selvas. Sábio cantor, luzeiro do futuro!"
Sim, fora no passado a glória do Brasil, será no porvir a edificação e o exemplo dos brasileiros agradecidos.
Teto da sacristia da Catedral de
Salvador, Bahia, retratando os jesuítas
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Notas:
[1] Serafim Leite - História da Companhia de Jesus no Brasil, II, 627.
[2] Padre Miguel de Oliveira - História Eclesiástica de Portugal, Lisboa, 1940, 388.
[3] Padre Simão de Vasconcelos - Vida do Venerável Padre José de Anchieta, Porto, 1953, 10, nº 8.
[4] Serafim Leite - obra citada, II, 481.
[5] Simão de Vasconcelos - obra citada, 11.
[6] Wanderley Pinho - Conferências, Porto Alegre, 1936, 60.
[7] Cartas Jesuíticas, III, 309.
[8] Arquivo Nacional - De Gestis Mendi de Saa, Rio, 1958, 149.
[9] Padre Simão de Vasconcelos - Crônica da Companhia de Jesus, 2ª edição, 64.
[10] Primeira Visitação do Santo Ofício - denunciações da Bahia, 331.
[11] Cartas Jesuíticas, III, 309.
[12] Vida de Anchieta - Saint-Foy - São Paulo, 1878, 67.
[13] Southey - História do Brasil, 488, 489 - Martin del Barco Centenaro - Argentina e
Conquista del Rio de La Plata 1502/54, 56.
[14] Charles Sainte Foy - Vida do Venerável P. José de Anchieta, S. Paulo, 1878, 88.
[15] Serafim Leite - História da Companhia de Jesus no Brasil, 493.
[16] Maria Eugênia Celso - Anchieta - Conferências - ed. Globo, Porto Alegre, 1936, 225.
[17] Padre Hélio Abranches Viotti - Rev. de História, S. Paulo, 49, 53.
[18] Cartas Jesuíticas, III, 309.
[19] José de Anchieta, S. J. - Poesias - Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo,
1954, 414 a 416. Nas páginas 412 e 413 há outra poesia dedicada ao mesmo prelado.
[20] Serafim Leite - obra citada, II, 482, 483.
[21] Charles Sainte-Foy, obra citada, 219.
[22] Vide Padre Hélio A. Viotti - A Causa de Beatificação do Padre José de Anchieta.
[23] Vide Padre Hélio Abranches Viotti, 1. 2 - Canonização de Anchieta - Rev. Arquivo Municipal,
São Paulo - CLIX.
[24] Charles Sainte Foy - Vida do Venerável P. José de Anchieta, S. Paulo, 1878, 228, 229.
[25] Vide Padre Hélio Abranches Viotti - A Causa da Beatificação do Padre José de Anchieta -
Rio de Janeiro, 1953 - Mensageiro do Coração de Jesus.
[26] Evangelho das Selvas. |