A fundação de São Paulo e José de Anchieta
T. O. Marcondes de Souza
Três datas são indicadas como a da
fundação de São Paulo de Piratininga: 1532, 29 de agosto de 1553, e 25 de janeiro de 1554.
Tratando-se da vila que teria Martim Afonso de Souza
fundado no planalto em 1532, discute-se onde tenha sido o local para isso escolhido. Uns opinam que foi em lugar incerto às
margens do Rio Pinheiros; outros, como Afonso de Freitas, em uma área situada entre os bairros da Luz, Bom Retiro e Campos
Elíseos [1]; e finalmente há os que sustentam que essa
vila ocupou parte da colina onde hoje está edificado o centro urbano de SÃo Paulo. No que todos estão de acordo é que essa vila
não teve vida municipal efetiva, ou se a teve, foi efêmera, dispersando-se os seus moradores.
Para nós, a vila martim-afonsina desapareceu de todo e isso
durante a própria estadia do donatário em São Vicente. Como sabemos, partiu Martim Afonso depois de 4 de março de 1553 - a
monção para o Norte começava em fins de março -, e chegou a Portugal mais ou menos em agosto. Deste país seguiu, logo no ano
seguinte, para a Índia, e nunca mais tornou à sua Capitania que, de resto, só lhe foi doada depois de sua partida.
Na escola de Piratininga,
gravura em relevo de Mastroiani
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Pois bem. Antes de partir de São Vicente, vedou Martim Afonso o
acesso ao planalto aos colonos de São Vicente! Palavras de Nóbrega, não exatamente as da carta ao rei D. João III, mas as de
uma outra a Santo Inácio de Loiola, mais ou menos entre janeiro a 23 de maio de 1556, encerram decisiva confirmação para o
raciocínio de Frei Gaspar da Madre de Deus, menos, já se vê, quanto à negativa da fundação e brevíssima existência da Vila de
Piratininga durante a permanência de Martim Afonso em São Vicente.
"Se Martim Afonso
tivera fundado a Vila de São Paulo - escreve Frei Gaspar (nós diríamos: se a povoação fundada por
Martim Afonso não tivesse sido por ele extinta, após a deserção de seus povoadores) -, seria
desnecessária a referida permissão (de poderem os colonos de São Vicente subir ao planalto) de sua Procuradora (D. Ana Pimentel,
em 1554). Em tal caso poderiam entrar e sair quantos portugueses quisessem subir aos Campos de Piratininga, por não caber no
juízo de pessoa alguma, que naquela paragem se havia de criar uma vila inacessível aos compatriotas de seus moradores" [2].
Eis as palavras de Nóbrega: "Ali (onde os jesuítas 'têm casas e igrejas' ... 'perto da Vila de Santo André', e onde 'todos os cristãos desejam... viver se lhes dessem licença') foi a primeira povoação de cristãos, que nesta terra houve em tempo de Martim Afonso, e vieram viver ao mar,
por razão dos navios, de que todos se arrependeram, e todavia a alguns deixaram lá ir viver"
[3]. Logicamente está aqui
subentendida a proibição feita aos portugueses de viver naqueles lugares, proibição de que apenas João Ramalho foi isento,
conforme assevera o mesmo Frei Gaspar.
Os cristãos encontrados em 1550, "derramados" pelo Campo, juntou-os Leonardo Nunes em duas etapas. Os últimos foram
os que viviam nas "Aldeias dos Índios" distantes em média "quatro a cinco léguas" do lugar onde logrou que erguessem a Ermida de Santo André, como se pode crer. Tais cristãos só
poderiam ter ido para lá, pelo menos legalmente, após a permissão concedida, com restrições ainda, por D. Ana Pimentel, conforme
o documento publicado por Frei Gaspar. E diz Leonardo Nunes dos portugueses, encontrados nas sobreditas aldeias: "acabei com eles que se tornassem aos cristãos"
[4].
Por sua vez, afirma Simão de
Vasconcelos: "Esta foi a origem da Casa; vejamos agora a das Aldeias. Tanto que os índios viram os
portugueses com residência feita naquelas suas terras, que estavam metidas da beira-mar para o sertão coisa de 12 léguas,
lugar então desabitado totalmente dos portugueses, desceram de boa vontade"...
[5]. Ora, aí mesmo diz ele que está
acompanhando quase literalmente os Apontamentos de Anchieta. Este, na sua Quadrimestre de maio a setembro (os
Apontamentos atualmente andam perdidos) escreve: "Outro (índio), que
havia muito tempo se tinha feito cristão com os portugueses que outrora moraram nesta aldeia (de Piratininga)" [6].
Assim, pois, não deixa de ser
uma extravagância a opinião de Jaime Cortesão [7] erigindo
Martim Afonso de Sousa em precursor genial da "Geopolítica Portuguesa", de vez que a importância que ele dava ao Brasil e à sua
própria Capitania está nitidamente expressa no seguinte tópico da carta que de Diu (Índia) escreveu a 14 de dezembro de 1535 ao
conde de Castanheira: "Pero Lopes me escreveu que vossa senhoria queria um
pedaço dessa terra do Brasil que eu lá tenho, mande-a tomar toda ou a que quiser que essa será para mim a maior mercê e a
maior honra do mundo" [8].
Diz o padre Serafim Leite (página 78) que a 29 de
agosto de 1553, após três meses da sua chegada ao planalto, tendo escolhido Nóbrega Piratininga para reunir três tabas de
selvícolas, fundou a aldeia, reunindo os índios pelo vínculo solene do catecumenato "no melhor
lugar que se podia escolher". E acrescenta: "A fundação da aldeia de
Piratininga é a certidão de idade de São Paulo, não ainda a do seu batismo, porque a nova povoação só 'daí a alguns meses se batizaria'. A certidão de batismo é de 25 de janeiro de 1554,
em que a Casa-Colégio se inaugurou e se dedicou a São Paulo, nome que prevaleceu ao de Piratininga"
[9].
Em que documento se baseia o padre Serafim Leite para fazer tão
arriscada afirmativa? No seguinte tópico da carta que Nóbrega escreveu de São Vicente a 30 de agosto de 1553 ao padre Luiz
Gonçalves da Câmera, provincial dos jesuítas em Portugal: "Ontem que foi dia da degolação de São
João Batista, vindo, a uma aldeia, onde se ajuntam novamente e apartam os que se convertem e onde pus dois irmãos para os
doutrinar, fiz solenemente uns 50 catecúmenos dos quais tenho boa esperança de que serão bons cristãos e merecerão o batismo e
será mostrada por obras a fé que tomaram agora".
Ora, como se pode facilmente notar, Nóbrega não faz a menor alusão
a ter sido celebrada a missa que, para o padre Serafim Leite, é condição sine qua non para que a Aldeia de
Piratininga tenha sido fundada a 29 de agosto de 1553. Em abono desta nossa opinião, citamos o seguinte tópico de um magnífico
trabalho do padre Hélio Viotti S.J. publicado a 31 de janeiro de 1953, no Diário de São Paulo sob o título A fundação
de São Paulo pelos jesuítas: "Quanto ao que pretendeu Nóbrega exprimir ao dizer 'Fiz solenemente uns 50 catecúmenos' pode-se discutir. Terá a solenidade consistido
nas cerimônias do ritual antigo, que ainda a esse tempo andava impresso, por exemplo, no missal de Bérgamo? Teria sido apenas
exterioridades outras, mais ou menos aparatosas, sem cunho propriamente litúrgico? Missa é que nunca foi cerimônia de
recepção de catecúmenos. Isto é certo. Se aí a tivesse aliás celebrado Nóbrega, não se explica como Anchieta que cinco meses
depois tratou com esses mesmos índios e teve como discípulos aos companheiros de Nóbrega nessa excursão, pudesse repetidamente
afirmar que a missa de 25 de janeiro de 1554, com que se inaugurou o Colégio de São Paulo, fosse a primeira que se celebrou
em Piratininga".
J. Polanco, secretário de Santo Inácio de
Loiola, resumiu as cartas de Nóbrega e de outros membros da Companhia de Jesus, recebidas de São Vicente, no que diz respeito a
pretensa Aldeia de Piratininga, fundada por Nóbrega, escrevendo: "Num certo campo, doze
léguas distante de São Vicente, três aldeias de brasis haviam determinado reunir-se e fixar sua morada para poderem ser,
todos, catequizados pelos nossos e mostravam grande vontade de ouvir a palavra de Deus e aprender as coisas da fé. Depois que os
brasis das sobreditas aldeias se reuniram em um mesmo lugar, antes que o padre Nóbrega deixasse a vila de São Vicente, a
eles se dirigiu no mesmo dia da degolação de São João Batista, chegando a esse lugar, onde habitavam separadamente os que se
convertiam à fé de Cristo" [10].
Portanto, os frágeis argumentos de que se serve o
padre Serafim Leite para emprestar a Nóbrega o título de fundador da Aldeia de Piratininga esboroam-se como um castelo de
cartas. Aliás, esse aldeamento de índios - que, como já vimos, não se realizou pelos esforços de Nóbrega - desfez-se em 1556
[11].
Os panegiristas de
Nóbrega lhe atribuem a tomada de uma série de acertadas providências, tudo com muita antecedência, visando a fundação do
Colégio. Porém, nada há que prove que a idéia da fundação deste tenha precedido à chegada do reforço de membros da Companhia de
Jesus, em que veio para São Vicente o jovem José de Anchieta. Tanto Vasconcelos [12] como A. Franco [13], claramente relacionam
essa resolução com essa chegada a notícia da ereção da Província, que não podia ser conhecida antes dessa oportunidade.
Vasconcelos dá notícia de uma consulta realizada por Nóbrega em São Vicente após o Natal de 1553. Essa consulta está confirmada
no De prima Collegii Fluminis Januarii Institutioni, c. 2º do P. Antônio de Matos, trecho publicado pelo padre Hélio
Viotti S. J. no suplemento do Correio Paulistano de 23 de agosto de 1953. Com essa exposição dos fatos concorda o texto
anchietano da Quadrimestre de maio a setembro [14].
Não nega o padre Serafim Leite e nem poderia
negar, diante dos documentos que conhecemos, que a ida de Nóbrega a Maniçoba tinha em vista explorar o caminho do Paraguai, pois
a missão aos Carijós, ou a "empresa do Paraguai" era o projeto que então o obsessionava: "São Paulo
de Piratininga e Maniçoba... eram marcos avançados, postos no interior, a caminho do Paraguai, onde resolutamente tencionava ir" [15].
A resolução de fundar em Piratininga
o Colégio, foi coisa de última hora, e não tinha para Nóbrega o caráter de uma medida definitiva. Prova-se pelo fato de que para
a instalação do mesmo, nada se preparara senão uma misérrima choupana: só em setembro ficou decidido construir nova habitação
[16]; a base agrícola, para a manutenção do Colégio, só é
mencionada em carta de Nóbrega do ano de 1556 [17].
Carta do mesmo Nóbrega dirigida a Luiz da Grã, de que este nos dá notícia, como recebida na Bahia em outubro de
1554 [18], lhe significava ser "determinação" sua conservar no Brasil apenas duas casas: Bahia e
São Vicente [19], esta
última por ser a porta para Guaira. Ainda em 1557, "continuava a insistir em
Lisboa pela ida ao Paraguai" [20]. E mesmo depois de se ter decidido a mandar pedir terras para a manutenção do Colégio, ainda em 1559 escreve: "estou muito arrependido de não haver já tirado meus irmãos de lá",
isto é, da Capitania de São VIcente, portanto também de São Paulo de Piratininga
[21].
A ausência de Nóbrega a 25 de janeiro de 1554, quando
de fato se fundou São Paulo, é suficientemente expressiva da importância muito secundária que, para ele, revestia esse
acontecimento. Essa ausência se deduz claramente da interpretação óbvia de todos os documentos que se referem à fundação. J.
Polanco, aliás, na sua Crônica (IV, 262), texto citado pelo padre Hélio Viotti S. J. no suplemento do Correio
Paulistano de 6 de setembro de 1953, afirma expressamente - e ninguém devia estar melhor informado sobre isso que o
secretário de Santo Inácio - que a residência de Nóbrega nesse ano de 1554 continuava a ser em São Vicente, donde por vezes ia
em visita a Piratininga. O primeiro documento que o menciona como presente pouco antes em Piratininga, é a carta de Pero
Correia, de 18 de julho, escrita em São Vicente [22].
Recapitulando tudo, temos:
a) que em 1532 Martim Afonso de Souza fundou uma vila em lugar
incerto no planalto e que disso logo se arrependeu, tanto assim que, antes de partir para Portugal em março de 1533, vedou o
acesso ao planalto aos habitantes de São Vicente;
b) que ao contrário do que o padre Serafim Leite sustenta, em 29
de agosto de 1553 não fundou Nóbrega nenhuma aldeia nos campos de Piratininga, mas sim encontrou nesse local reunidos os
silvícolas de três tabas;
c) que a 25 de janeiro de 1554 é que foi inaugurado o colégio
erigido por ordem de Nóbrega e celebrada a primeira missa nos campos de Piratininga.
Para os que cuidam da História com carinho e sem se deixar
contagiar pelo que escrevem ou dizem os aventureiros da erudição, a fundação do Colégio que inegavelmente teve o poder de atrair
como um imã ao seu derredor a população dispersa pelos campos de Piratininga, foi o resultado de magnífico trabalho de uma
selecionada equipe de membros da Companhia de Jesus, posteriormente auxiliada por João Ramalho, que, entre o muito que fez pela
prosperidade da povoação, a defendeu em julho de 1562, quando foi assaltada pelos silvícolas sob as ordens de Ururai.
Dessa equipe, os que mais se salientaram foram os seguintes:
Leonardo Nunes, inegavelmente o pioneiro dos catequistas, aquele que palmilhou continuamente todo o planalto convertendo ao
cristianismo inúmeros aborígines e preparando, por assim dizer, o terreno para que a boa sementeira germinasse; Manuel de Paiva,
superior da equipe, que a 25 de janeiro de 1554, na improvisada choupana de 14 passos de comprimento por 10 de largura, feita de
pau a pique e coberta de sapé, celebrou a primeira missa em São Paulo de Piratininga; e o inconfundível padre José de Anchieta
que, embora jovem, pela sua elevada cultura humanista, foi escolhido para o cargo de mestre do Colégio, tendo sido seus
discípulos os irmãos Afonso Braz, Vicente Rodrigues, Diogo Jácomo, Pedro Correia, Manuel de Chaves, Leonardo do Vale, Gaspar
Lourenço, Gonçalo de Oliveira, Fabiano de Lucena, Antônio Rodrigues, Simão Gonçalves e outros.
Permaneceu Anchieta durante 12
anos à testa do Colégio, esforçando-se por torná-lo cada vez mais eficiente, sabendo que dessa eficiência dependia a vida de São
Paulo de Piratininga. Após 44 danos de permanência ininterrupta no Brasil, aqui morreu esse taumaturgo, deixando aos seus
pósteros o maior exemplo de amor à raça aborígine, de apurado ascetismo e de inimitáveis abnegações, sendo por justo motivo
apelidado O APÓSTOLO DO NOVO MUNDO.
Notas:
[1] J. P. Leite Cordeiro, Frases Esparsas, primeira série, São Paulo, 1952, página 158.
[2] Frei Gaspar da Madre de Deus, Memórias para a História da Capitania de São Vicente.
Terceira edição cf. Idem, ibidem, 177-178 e 217-218.
[3] Cartas Jesuíticas, I, 154.
[4] Cartas Jesuíticas, II, 61-62.
[5] Vida do Padre João de Almeida, página 73.
[6] Cartas Jesuíticas, III, 49.
[7] A Fundação de São Paulo Capital Geográfica do Brasil, Rio de Janeiro, 1955.
[8] História da Colonização Portuguesa do Brasil, volume III, página 107.
[9] Nóbrega e
a fundação de São Paulo, Lisboa, 1953.
[10] J. Polanco, Chronicon S.J. III, 472.
[11] Anchieta, Cartas, 92-93; Luiz de Grã, Novas Cartas Jesuíticas, 182-183; Nóbrega,
Novas Cartas Jesuíticas, 105.
[12] Crônica da Companhia de Jesus, L. 1 nº 148.
[13] Imagem de Coimbra, 11, 232.
[14] Anchieta, Cartas, 38.
[15] Serafim Leite S.J., História da Companhia de Jesus no Brasil, I, 339.
[16] Anchieta, Cartas, 43.
[17] Cartas do Brasil, 153.
[18] Novas Cartas Jesuíticas, 161, N.; a data si indicada foi posteriormente retificada por
Serafim Leite S. J. para essa de 1554.
[19] Ibid., 163.
[20] Serafim Leite S. J., obra citada, I, 342.
[21] Cartas do Brasil, 218.
[22] Novas Cartas Jesuíticas, 176. |