De Rerum Anchietarum
Sebastião Pagano
Escrever sobre o Venerável José de
Anchieta é difícil. Sua memória foi louvada por brasileiros e estrangeiros, em prosa e verso, na oratória e onimodamente. Mas
algo se poderá frisar. Nobre de Espanha merece culto pelas suas virtudes cristãs e piedade heróicas. Deixou seu lar na
Grã-Canária, Tenerife, San Cristobal de la Lacuna (Biscaia, dizem uns), onde nasceu a 19 de março de 1533, filho do rico Don
Juan de Anchieta, parente dos Loyola e dos Guipuscoa (o padre Francisco Mateus, que não é genealogista, negou isto) e de dona
Mencia Diz de Clavijo y Llerena - que pretendem ter ascendência cristã-nova; sua família era católica sincera.
Tive ocasião de reproduzir o brasão do padre Anchieta utilizado
pela ASIA no convite de um banquete que realizamos. Seu pai não chegou em 1532 às Canárias porque antes de José haviam nascido
outros seus irmãos. Faleceu no Espírito Santo em Irirityba ou Reritiba a 9 de junho de 1597 aos 64 anos, depois de vida toda
voltada para Deus e salvação das almas. Sua canonização é questão de tempo e depoimento.
A política religiosa da Coroa e o Apóstolo do Brasil -
Indubitavelmente foi Eduardo Prado quem, em 1897, comemorando o terceiro centenário da morte de Anchieta, levantou o nome
jesuíta que por mais de um século estava olvidado e escarnecido. Convocou figuras das maiores do Brasil, aplaudidas por todos,
mesmo por Capistrano de Abreu, para as "Conferências Anchietanas", como hoje as realiza Júlio de Mesquita Filho,
presidida por Campos Sales; e realmente renovaram nossa História. Católicos, especialmente os jesuítas, jamais poderemos
ser-lhes suficientemente gratos.
Reabilitados os jesuítas das injustiças que lhes cometeram, com
isto, um sopro de catolicidade menos arredia se fez sentir depois da primeira década de exílio republicano, agnóstico e
agressivo. Quem o negará? A conferência de Eduardo Prado, de umas cem páginas, A Companhia de Jesus e a colonização do Novo
Mundo, é antológica: primor de erudição e arte. É Júlio de Mesquita Filho quem hoje renova essa consagração dos Jesuítas que
a severidade do marquês de Pombal proscrevera e graças a Dom Pedro II - narro-o no meu livro inédito Dom Pedro II e a questão
religiosa -, voltaram ao Brasil em profícua ação como Sociedade Brasileira de Educação.
Santo Inácio de Loyola, esse nobre de Guipuscoa que a Inquisição
perseguiu pelo modo ardente como pregava aos pobres, unindo um pugilo de nobres formou a Societas Jesu seguindo os ditames da
cavalaria, imitando os Estatutos da Ordem dos Hospitaleiros de São João ao tempo de Carlos V, "dar
um braço às armas feito para servir aos pobres Nossos Senhores" - aliás a nobreza deu 80% dos
santos da Igreja.
José de Anchieta, para servir aos pobres, pediu sua inclusão na
Companhia dos Soldados de Cristo sob o voto especialíssimo da defesa da autoridade do Sumo Pontífice. Sociedade monárquica,
fê-la Santo Inácio para evitar a "controvérsia" liberal. Princípio unitivo de doutrina e de ação, o Papa sempre foi, para os
Jesuítas em particular, o ponto de apoio da autoridade espiritual que se completava com a autoridade do Rei ungido, no binômio
Igreja e Monarquia. Era o espírito de Anchieta. E Dom João III, para dar doutrina unívoca ao Brasil, chamara a si os Padres da
Companhia nos seus estados, pois ajudara-a no reconhecimento canônico, e a ele os padres davam conta, sustentando-os do seu real
"bolsinho" que só depois disso foi possível os dízimos completarem.
Reis Missionários que eram os de Portugal (não se trata de um
título, mas de uma função de que o Papa incumbiu os Reis de Portugal e da Espanha, com o Padroado, e se séculos depois surgiu
algum regalismo que críticos jeremiosos exorbitaram contra a verdade histórica, fazendo disso um drama que a diplomacia vaticana
deveria ter modificado, de comum acordo, em tempo, o benefício anterior foi incomensurável) o santo encargo foi levado a efeito
com os proventos da Ordem de Cristo (continuadora dos Templários), da qual os reis eram os grão-mestres, e foi esta a Ordem que
custeou a colonização do Brasil e fez a conquista e catequese de além-mar. A Ordem permitiu tudo, até a criação do Bispado de
São Paulo. A fé e o império andavam esses reis dilatando, conquistando terras para a difusão da fé em Cristo.
A missão evangelizadora e civilizadora da Coroa se fez em bom
acordo com os loyolistas para que as idéias dissidentes dos reformados ou progressistas da época não fizessem caos nas
terras a ganhar para Cristo e a Civilização, pois grave dispersão doutrinária verificava-se com os padres progressistas
antes da vinda do primeiro Governador Geral do Brasil, em 1549, com os primeiros Padres da Companhia. Pensem os afoitos
progressistas hodiernos: o Brasil sob a controvérsia mental não seria católico.
Podia dizer-se que, em consonância com o Papa e com o Rei, os
Jesuítas estavam oficialmente incumbidos de esteiar a unidade espiritual brasílica que o Governo Geral devia preservar. Daí
darem a El-Rei conta os Padres, pois a Missão era comum. O princípio unitivo religioso e político fez prevalecer a unidade
filosófica, moral e social que implicou na lealdade de ação de portugueses e brasileiros aliados no mesmo fim de
engrandecimento desta terra.
Na dispersão das idéias contemporrâneas em que católicos há que
rendem homenagem aos erros filosóficos de outrem, sob pretexto de axiologia, nada há que se construa em união e em paz;
embora vendo que errados, os comunistas vencem por unidade de princípios e de ação. Foi por esse motivo que o saudoso padre
Arlindo Veira, S.J., numa formosa conferência sob o nome de Anchieta a serviço de Deus e de El-Rei Nosso Senhor, começou
dizendo que "o santo Rei Dom João III" foi o grande evangelizador do Brasil em conjunção com os padres da Companhia, que
pessoalmente protegeu na sua ação.
José de Anchieta, mais que outros irmãos de hábito, timbrou em
demonstrar esse sentido unitário e serviu a alguns Reis de Portugal e a um Rei de Espanha e de Portugal, Felipe II, que o grande
El Greco no Entierro del conde de Orgaz pôs entre os santos. Se o "armistício de Iperoig" levou os franceses à derrota,
recuando na sua ambição, voltando à porfia no Maranhão e à liça política com Portugal na sucessão do cardeal-rei Dom Henrique -
em franca disputa genealógica, não de intriga, em que se empenhara a sobrinha do Papa, a nobre rainha Catarina de Medicis -,
Felipe II ganhou não por claros direitos que pertenciam aos Braganças, especialmente a Dona Catarina e não ao Prior do Crato,
Dom Antônio (v. O Conde dos Arcos e a Revolução de 1887 de Sebastião Pagano) apoiado por Catarina de Medicis desde que
lhe desse o Brasil.
Os primeiros na sucessão eram os Bragança, mas triunfaram os
Habsburgo, por conveniência internacional apoiada pelo Papa, na continuação da "política do sigilo" pró-espanhola do Vaticano.
Anchieta serviu Felipe II, o campeão católico do século, com a mesma dedicação, porque a obra era a mesma e os princípios
também. Nada mudou senão a dinastia numa monarquia dualista. Não se vêm motivos para a possível remoção de Anchieta. Ao
contrário, ficou onde estava. Nem se cogitara disso. O rei seguia a mesma política católica. E se a linha genealógica de
sucessão tivesse, pelo Direito dinástico, dado precedência à França - que não tinha possibilidades, pois disso estava muito
distante - como os princípios eram os mesmos, nada mudaria.
Sabia Anchieta que dos princípios é que adviria a grandeza do
Estado do Brasil. Era um soldado. Dedicado à sua aldeia, profetizou que São Paulo de Piratininga seria grande metrópole, como é.
Não fora sua persistência, bondade imensa e inteligência esclarecida que descobria soluções para dificílimos casos, São Paulo
não teria subsistido. Vã é a tentativa de diminuir Anchieta para alçar Nóbrega; nem este imenso demiurgo precisa na sua glória,
e sentiria injusto, desse estratagema, apenas por espírito de lusitanismo ou espanholismo, porque esses santos homens, um
português e outro espanhol, estavam a serviço da Igreja Universal, entidade etnárquica, para a qual todas as nações são iguais
no seu amor; e a serviço de Reis-missionários, que "a Fé e o Império andavam dilatando".
El-Rei, Inácio de Loyola e o Papa eram os chefes hierárquicos e
hieráticos desses titãs. Deu-se Anchieta como refém para salvar povos, uniu índios para repelir invasores, abriu caminhos para
unir a terra e impavidamente realizou tudo o que se depreende da epopéia de Colombo e dos Reis Católicos ciosos de
corresponderem à promessa divina de que os confins da terra pertenciam à Igreja Católica, ante a tempestade reformista que se
aproximava, o que foi perfeitamente atingido. Os últimos desvãos do mundo unidos à Igreja Universal.
Deve-se atribuir ao sistema político de então, em plena harmonia
com a Santa Sé (Liga das Nações Cristãs) o êxito da catequese em tão grande unidade. O preconceito anti-monárquico,
anti-histórico (v. Louis Dumir, Les prejugés enimis de l'Histoire) quer negar esta verdade histórica que se reproduz numa
conversão de Constantino, de Clovis ou outros príncipes que "facilitaram" a propaganda fide, salvo casos de enormes
esforços posteriores.
Conhecer o sistema da época é conhecer o porque da ação. Os índios
eram os "autóctones" do Brasil e o espírito do povoamento ou colonização foi o espírito cristão da Monarquia Portuguesa, no
modelar humanitarismo que a profunda caridade dos Reis de Portugal daquela dinastia que acabou em Dom Sebastião o último cruzado
e num cardeal fez com que o silvícola, longe de ser combatido, fosse integrado à civilização cristã.
Esse foi o grandioso trabalho da catequese em que os Padres se
desdobraram e dentre eles Anchieta. Daí a razão porque a Metrópole fez Regulamentos magníficos - hoje esquecidos - que
são estupendas páginas filosóficas e jurídicas num admirável esforço para melhorar a vida dos pobres índios nus e rudes,
incultos e pagãos. E essa incorporação verificou-se tão bem que, dentre eles, saíram padrões de cultura e dedicação, como um
Felipe Camarão ou um Rondon que, não fosse a catequese de seus pais, não seria o que foi, não obstante recusar-se a morrer
católico e no momento extremo exclamou "Viva a República". A liberdade dos índios foi a página mais bela da Colonização. Por ela
lutaram gênios como Nóbrega, Anchieta e outros como o incomparável Padre Antônio Vieira.
A política do sigilo não trouxe à tona, na época, o porque de
arrancar-se Cabral às terras africanas para acostar nestas partes da América que antes foram cautelosamente sondadas. A política
do sigilo da Coroa mandou destruir Santo André da Borda do Campo e fundar São Paulo no ponto lindeiro das terras portuguesas com
as castelhanas. E a política do sigilo fez com que a pequena capela inicial da catequese missionária viesse a transformar-se em
núcleo demográfico para servir de sede ao Bandeirismo que "alargaria" o chamado meridiano de Tordesilhas que deixou os
portugueses, então senhores da ciência náutica, com menor quinhão que os castelhanos. Na política do sigilo loyolistas em
harmonia com a Coroa realizaram a grande programática que o futuro engrandeceu e deu-lhes imensa glória e gratidão.
Em primeiro, a conquista dos índios, pacificando-os em Deus e com
os homens. Depois, a cultura, povoamento cristão moralizado, dando forma jurídica associativa e aproveitamento das riquezas
nativas pelo trabalho estimulado para frutificar num incomparável futuro. Se não foram os Jesuítas nem o Padre Anchieta os
fautores de toda a unidade nacional, dando-lhes caráter contínuo territorial homogêneo, porque a Coroa é que tinha em mira tal
empresa, para a qual enviara à Nobreza Militar e dera planos aos Bandeirantes, contudo, os Padres seus colaboradores fizeram a
paz, unidade moral e espiritual, pois o sacerdote não visa unir territórios mas salvar almas. Mas agiam segundo um programa de
El-Rei que lhes dava meios e garantia de ação.
O grande missionário e seus feitos - Não se esqueça na
simplicidade, bondade e humildade de Anchieta, como nos santos, a energia de ação, o vigor das realizações audaciosas, a coragem
enfrentando problemas difíceis cuja solução atingiu com grande disposição pessoal, não apenas pela proteção régia verificada no
conjunto. Não foi ele o místico quietista; sua vida contemplativa era vivida na caridade sob a total certeza que tinha da divina
proteção entregando-se à inteira vontade de Deus. Não quis os enganos da carne e os desenganos do espírito, mas a obediência
religiosa com suas virtudes. Chegava a ajudar oito missas por dia, narram Simão de Vasconcelos, Pero Rodrigues e outros, e é
certo. Sofria com isso mas, imitando os santos, "não pode o corpo receber mal quando a alma recebe tanto bem". O corpo é sombra
da alma, mostra-o o abbé Th. Moreux no seu Que deviendrons nous après la mort?
Resistiu ao conflito. Soube sofrer no amor. O mal agravou-se,
contraindo "lesão disforme no espinhaço e costelas" acurvado a um lado. Não foi queda de escada, nem exagerada lesão. Na
Iconografia de Anchieta Aureliano Leite fala disto, e o mais antigo e melhor retrato de Anchieta mostra-o de olhos grandes e
profundos, de bigodes e embuçado numa capa, não tão miudinho como geralmente o representam. Seu sofrimento foi a ascensão na
espiritualidade; seu cilício.
DÚVIDA - Anchieta jovem, em óleo de
Maria Luísa? Na obra de onde foi reproduzido, uma errata indica que na verdade seria o retrato de Manuel de Paiva, exposto na
Casa de Anchieta/Pátio do Colégio, na capital paulista. Outra fonte (História do Brasil, ed. Folha de São Paulo,
1997) mostra a imensa imagem, espelhada, afirmando ser de Anchieta, ignorando ou desmentindo a errata da enciclopédia Grandes
Personagens..., que foi usada como fonte de consulta para a obra de 1997
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Temeu não ser aceito na Companhia. Provincial em Portugal, o Padre
Simão Rodrigues de Azevedo, seu amigo, dissuadira-o, entristecendo-o. Aceito, a doença continuou por três anos e os médicos
recomendaram que fosse mandado para os benignos climas do Brasil, cuja alimentação era mais sadia. Com o favor de El-Rei Dom
João III, como Irmão partiu de Lisboa a 8 de maio de 1553, chefiado pelo padre Luís de Grã, reitor do Colégio de Coimbra, e os
padres Braz Lourenço, Ambrósio Peres e três Irmãos, João Gonçalves, Antônio Blasques e Gregório Serrão. Acompanhavam o 2º
Governador Geral do Brasil, Dom Duarte da Costa, filho do fidalgo Dom Álvaro da Costa que fora embaixador de Dom Manuel junto a
seu cunhado Carlos V. Era o terceiro grupo de jesuítas.
Discute Simão de Vasconcelos a data da partida, contestando Pero
de Maris na Vária História livro 5º, cap. 2, que diz ser de 1552, pois o próprio Anchieta da sua pena afirmou ser 1553,
chegando à Bahia a 13 de maio de 1553; confirmam-no Nicolau Orlandino nas Crônicas Gerais da Companhia livro 13 nº 68, o
Padre Estevão de Paternina na Vida do Padre José pg. 23 § 44 e o Padre Baltazar Teles nas Crônicas de Portugal
parte 2 L. 5 cap. 6.
Inácio de Loyola, o elegante fidalgo e audaz capitão, depois de
coxo foi correr mundo arrebatando almas. Anchieta, depois de acurvado, carregou a Cruz de Cristo nas selvas e suas nobres mãos
serviam na cozinha, despensa, feitura de sandálias e outros rudes trabalhos feitos com amor e alegria. Navegantes, religiosos,
índios e fidalgos por ele foram servidos, acolhendo às vezes vinte pessoas na sua casinha de barro e palhas como escola,
enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha, despensa, ao contrário do solar onde nascera.
Quando necessário, era calorosa sua ação. Movimentado, vivo, todo
trabalho nos dias 9 e 10 de julho de 1562, quando os índios invadiram São Paulo. Audacioso e astuto quando salvou o jovem
guaianás que com Tibiriçá à frente, convertido mas voltado ao canibalismo, estava para ser imolado diante das feiticeiras. Quase
temerário, não fossem suas virtudes, enfrentou o cacique para impor-lhe e aos seus conduta cristã sem temer ser morto. Estrátego
na defesa do futuro Rio de Janeiro sob a Confederação dos Tamoios, foi talvez o primeiro a organizar um serviço secreto no
Brasil, enviando mensagens e apoiando-se com segurança nos índios fiéis.
Notável ação teve, com vigor, em ocasiões várias. Ria das comédias
que inventava para os índios e cantava com eles ou marchava esportivamente para Santos pelos sendeiros do Padre José, a atual
Via Anchieta que lhe seguiu o rumo. Resoluto, sem medo, enfrentou feras ou as fúrias do mar, como no naufrágio que sofreu, e é
incompreensível que dormisse sossegado, confiando nos índios, naquela pedra perigosíssima que se chama "cama de Anchieta", num
ponto agitado do mar de Itanhaém onde muitos encontraram a morte.
Formação rochosa conhecida como Cama de Anchieta, em Itanhaém/SP
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História,
Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Se Nóbrega em 1554 fundou a capela da Missão, foi Anchieta quem, em 1558,
fundou o Colégio que atraiu os índios, e sem eles São Paulo teria sido ponto efêmero. Com uma vintena de catecúmenos conseguiu a
fixação. Era a política do sigilo em ação, fazendo sempre presente a dedicação da Coroa somada à evangelização apostólica desses
primeiros padres que deram força à Companhia de Jesus para chegar a ser o que foi e realizar o que conseguiu.
Ensinando, cantando, representando, o primeiro mestre-escola de
São Paulo fixou a população e a aldeia fez-se vila, cidade, metrópole. Em seu embrião, o esforço missionário, catequético,
pedagógico, deteve as forças dispersivas. Nesse primeiro período houve muita compreensão, aliada à ação persuasiva do mestre
Anchieta, que estabeleceu a mútua confiança entre brancos e índios.
O historiador Lopes Herrera, falando disso, citou a carta de
Anchieta a Inácio de Loyola, de agosto de 1554, relatando aspectos da fundação da aldeia, documento que encontrou no arquivo da
Província de Toledo, guardado pelos Jesuítas em Chamartin de Toledo. Anchieta ficou só entre os índios. Tinha vinte anos.
Exemplo para a imensa mocidade sem ideal e sem espírito de sacrifício de hoje!
Ademais, deve-lhe São Paulo, em seu crescimento, pontos de
ligação: as aldeias de Pinheiros e de São Miguel, convergindo-lhe como ponto de interação entre dois novos refúgios de índios,
abrigo certo contra silvícolas e intrusos. E foi Emboaçaba, em Pinheiros, o fortim de defesa distante de São Paulo caminho do
Interior, como São Miguel caminho do Rio de Janeiro.
Nem teve Anchieta tempo para ordenar-se sacerdote. No Concílio de
Trento (fins de 1545 a dezembro de 1563) indagou-se de Manoel da Nóbrega a razão, respondendo - "porque não há quem o
substitua". Só em 1566, com 33 anos, recebeu ordens. vocação certa; integração total às verdades religiosas e à graça divina;
servo da Virgem Maria - de outro modo não se compreende que diante da provocadora nudez íncola, sua castidade fosse um castelo
blindado com defesas invulneráveis. Quando da paz de Iperoig, dando-se como refém, a Nóbrega e Anchieta os tamoios ofereceram
filhas e irmãs. Recusaram, e Anchieta era apenas Irmão! Escreveu então o poema à Virgem.
Nem pretendeu abandonar a selva, a montanha, o mar e todos os
perigos e descomodidades, trocando-os pelas pequenas regalias urbanas. De sotaina rota e suja às vezes e pés no chão, conquistou
grandes partes do Brasil para Deus, longe de algum sibaritismo hodierno dos que com fáceis meios deixam perder almas com culposa
indiferença.
O payé-guassú (pagé-guaçú), pai grande, o "amarra
mãos" dos índios, entrou logo a conhecer-lhes e falar-lhes a língua na qual poetou publicando em 1595 uma Arte da gramática
da língua mais usada na costa do Brasil, além de diálogos espirituais, Comédias ou Conservações que
moralizavam e instruíam ao serem representadas diante do povo com o qual ria e doutrinava.
Aos 14 anos ingressara na Universidade de Coimbra, então em grande
fastígio, e brilhou entre seus condiscípulos, mesmo seu Irmão. Aprendeu tudo com impressionante rapidez: Filosofia, Dialética,
Latim, Letras e a língua portuguesa. Sua memória era prodigiosa. Exímio em Latim, ensinou-o a companheiros de hábito; escreveu
uma Gesta de Mem de Sá e seu poema De beata Virgine Dei Matre Maria (5.000 versos) publicado em 1940 pelo Arquivo
Nacional com excelentes comentários, é verdadeiro tratado de Mariologia e História da Sagrada Família.
Purista no vernáculo, mostra-o sua Correspondência, e sua
Dissertação sobre a história natural do Brasil, importante contribuição que admirou Saint-Hilaire; sua Vida dos
religiosos da Companhia dos Missionários no Brasil são biografias que revelam o historiador conciso e autêntico. E em que
desconforto produziu isso tudo, sem auxílio de livros!
Biografias - Jean de Bolés - João de Almeida - Em nota que
enviou de Lisboa a 10 de maio de 1897, disse Eduardo Prado referindo-se à Vida do Padre José de Anchieta do Padre Pedro
Rodrigues: "Na Biblioteca Nacional de Lisboa (no fundo de Alcobaça) há uma cópia desta
Vida de Anchieta com muito maior número de capítulos e com grande variante e mais notícias. Consta de 59 páginas, e de uma
nota do fim vê-se que foi copiada no ano de 1620 por Cristóvão de Souza Coutinho (?). É precedida de uma carta do Provincial P.
Fernão Cardim, ao Geral Cláudio Aquaviva, da Bahia, de 8 de maio de 1608, de uma dedicatória-prefácio do P. Pedro Rodrigues aos
Padres da Companhia e da aprovação de Mateus da Costa Aborim, administrador da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de 10
de maio de 1608. É dividida em quatro livros. O livro I tem 15 capítulos; o livro II, 9 capítulos; o livro III, 9; o livro IV,
9. É seguido de uma lista dos Governadores Gerais do Brasil do ano de 1549 até o ano de 1609, e dos Provinciais da Companhia no
Brasil no mesmo período e dos Visitadores Gerais desta Província. Não está datado como esta cópia. Lisboa, 10 de Maio de 1897
(ass.) Eduardo Prado".
"Na antiga numeração deste fundo
o ms. figurava sob o nº 431 e na moderna séc. XVII nº 306. (ass.) E. Prado".
Publicou-a o volume XIX, 1897, pg. 49 e seguintes dos Anais da
Biblioteca Nacional. Deve o Brasil ao monarquista Eduardo Prado a cópia, às suas expensas, como sempre o fazia enriquecendo
nossos arquivos, bibliotecas e mapotecas, desses documentos, dessas cartas, da nova Vida do Padre Anchieta e das
Relações aludidas.
A Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. Quinto
Provincial que foy da mesma Companhia no Estado do Brasil é o primeiro registro da santidade heróica do grande Apóstolo do
Brasil, sobre a qual foram calcadas todas as outras biografias dele. E o diretor da Biblioteca Nacional, Manoel Cícero Peregrino
da Silva, declara-o em nota à página IX do volume XXIX de 1907 dos Anais aludidos: "conforme
havia observado Eduardo Prado em nota de que fez acompanhar a cópia do manuscrito da Biblioteca de Évora Vida do Padre
Anchieta pelo Padre Pedro Rodrigues publicado no volume XIX destes Anais, há notáveis diferenças entre esse códice e
o que com o mesmo título existe na Biblioteca Nacional de Lisboa".
"Além das repetidas variantes do
texto, há na cópia de Lisboa, feita a 6 de maio de 1620 por Cistóvão de Souza Coutinho, vários trechos e capítulos que não
figuram no Códice de Évora, visivelmente incompleto". O Códice de Évora (lod. ex/117) é dividido em
três livros com 25 capítulos, tendo ao fim a data: "na Bahia a 30 de janeiro de 1607".
Resumo aqui algo do que escrevi a respeito, mas lembro que os
biógrafos referem-se a inúmeros milagres anchietanos, que a Igreja está julgando. Infelizmente, o racionalismo e a balbuciante
Parapsicologia reduzem o sobrenatural a nada. Deixarei minhas observações a respeito para outra ocasião.
As conversões que fez impressionam, especialmente a de João de
Bolés, que depois de contaminar a fé popular pela sua inteligência, acabou sendo enviado pelo Padre Luís de Grã para a Justiça
Eclesiástica do Bispo da Bahia. Em 1567, porém, o Padre Anchieta converteu-o. O Bispo não procedeu contra ele, remetendo-o para
o Rio de Janeiro a fim de responder por graves delitos civis que cometera. Julgado e condenado à morte pelo governador Mem de
Sá, o Padre Anchieta correu a aliviá-lo nesse transe exprobrando o algoz imperito que o torturava. Não queria, ao fim, que o
convertido no momento extremo renunciasse à Fé católica, e a caridade nesses casos deve exceder-se. Não pediu que apressassem a
morte, mas que a dessem humanamente. As penas eclesiásticas, conhecia-as, pois suspendem de ordem o sacerdote que acelera a
execução da morte em qualquer ocasião que seja, ainda piedosa. Nem o assassinato nem a eutanásia. A suspensão teria remédio pela
absolvição da Igreja, mas a perda daquela alma encolerizada não. Se por isso, "vivesse eu suspenso a vida inteira", dizia.
Como os mal informados narraram o fato é bem sabido. Dizem uns que
Anchieta puxou o condenado pelos pés para acelerar-lhe a morte. Fora enforcado? Que espécie de tortura lhe fizeram? Outros, que
de Bolés foi posto em liberdade e voltou convertido para a França. Inimigos da Fé católica incriminam Anchieta. Ora, fosse
provado, a Igreja não o teria declarado Venerável.
Simão de Vasconcelos, no volume 2º, página 125, edição da Imprensa
Nacional em 1943 (a primeira edição é de 1673) da Vida de Anchieta relata que um dia saiu Anchieta do seu cubículo
dizendo ao porteiro que logo viria correndo um homem que cometera um homicídio; que a ele deixasse entrar mas não aos ministros
da Lei. Mal saiu, pela porta entrou alguém fugindo ao Alcaide e à pena infalível. Que gosto tinha Anchieta em salvar os homens e
socorrer os fugitivos e condenados! Por que ao pobre arrependido João de Bolés daria diverso tratamento?
Sua rara humildade, suas virtudes paulinas de cansaços, fomes,
sedes, frio, estorvos, chuvas e calores, padecimentos mil, ingratidões, perigo de vida em meio a gente bruta, irritada,
queixosa, comendo maus alimentos, recebendo tudo com sublime caridade, oportuna energia, coragem, fidelidade, compreensão,
simplicidade, amor a Deus, confiança na Virgem, temor ao pecado, prática das mais acrisoladas formas de piedade, tudo por amor a
Cristo, não o levariam a tal duplicidade criminosa.
As conversões formidáveis que operou como a do índio Adão
juntam-se à santidade que soube incutir noutros. Um santo há que foi formado da imitação das suas virtudes: o Padre João de
Almeida, como ficou conhecido o inglês John of Meade nascido em Londres em 1572, falecido em 1654. Simão de Vasconcelos,
edificado pelas suas virtudes, escreveu-lhe duas biografias. A Vida do Padre Joam de Almeida da Companhia de Jesus na
Província do Brasil, publicada em Lisboa em 1658 in. f. pp. 406 na Imprensa Crasbeekiana com um retrato gravado por Richar
Collin, de Anvers. Outra, a Continuação das maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil, por intercessão do mui
religioso e penitente servo seu o venerável P. João de Almeida da Companhia de Jesus, impressa em Lisboa em 1662, com 16
páginas in. f. sem numeração, na oficina de Domingos Carneiro.
Conta o Padre Serafim Leite que o Padre Antônio de Macedo
utilizou-se dela na sua obra latina Vita Ioannis de Almeida e Foley nos seus Records of the English province tomo
VII, 1321-1339.
Edificado com João de Almeida, escreveu Vasconcelos, depois, a sua
Vida do Venerável Padre Joseph de Anchieta da Companhia de Jesus, Taumaturgo do Novo Mundo na província do Brasil,
dedicada ao coronel Francisco Gil de Araújo, grande admirador de Anchieta, e publicada em Lisboa na oficina de Ioam da Costa,
MDCLXXII, in. f. pp. 593, reproduzindo nesse volume, pela primeira vez, o poema de Anchieta De Beata Virgine Maria, com
sua Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil: e do que obrarão seus filhos nesta parte do novo Mundo, dedicada
a El-Rei de Portugal porque, sem ele, é impossível imaginar que a fé católica tivesse pegado no Brasil, graças à unidade do
poder e a fé católica da Monarquia Portuguesa em consonância com o Papa, vingou e é estranhíssimo que nada se fale desse fator
preciosíssimo!
Fazedor de santos foi Anchieta. E a Santa Igreja reconheceu-o, a
João de Almeida, Venerável. Com nove para dez anos, seus pais, nobres empobrecidos, passaram-se para Portugal, quando fervia a
ferocíssima perseguição aos católicos na que fora chamada "ilha dos santos". O senhor Bento da Rocha, que viajava no mesmo
navio, afeiçoou-se à pureza do menino e o fez convenientemente educar. Em 1589 esse benfeitor careceu vir ao Brasil e trouxe
João de Almeida, com 17 anos. Em Pernambuco, Almeida ficou na Companhia de Jesus, que o enviou a Bahia a fazer noviciado de um
ano. Seguiu para a Capitania do Espírito Santo, "lugar onde muito se padecia no serviço das almas" e aí teve por mestre o Padre
José de Anchieta, então com 56 anos, no esplendor da sua santidade e já quinto Provincial da Companhia de Jesus.
Ambos foram pelos sertões brasílicos, iniciando Almeida, com raros
intervalos, uma profícua vida de missionário na espinhosa dedicação de conquistar almas para Deus. Sua palavra inflamou-se,
dotado do Espírito Santo, e as prodigiosas conversões que operou são verdadeiros milagres. Faleceu cheio de dias em 1653 (outros
dizem 1654) e, inspirado nesse exemplo, Simão de Vasconcelos narrou-lhe minudentemente a vida com tudo o que considerou, e assim
era tido, como miraculoso. Força Provincial da Companhia.
O Padre Anchieta formou doze discípulos, perfeitos todos na fé e
zelo da salvação das almas, mas Almeida foi o maior, praticando profecias, curas, milagres, adivinhações e portentos. Carregou
lenha, ajudou na cozinha, varreu chãos, serviu como escravo nos humildes e desagradáveis serviços. Abrandou as fúrias do mar,
domou um monstro marinho, fez brotar água em campo estéril, à índia Grimanesa cobrou a vista e a vida; consertou miraculosamente
um braço quebrado e outros portentos obrou. Seguiu o mestre.
Sua rara pureza de anjo confundia "os mais cuidadosos amadores
desta virtude", sopesando suas carnes com rigores e duras penitências; amou a Deus que fez do seu coração um céu; amou o próximo
de forma ultra humana; amou o Padre Anchieta de tal maneira que repetia tudo dever das maravilhas do seu mestre. Por vezes fatos
menos importantes são levados à conta de milagres ou mesmo são apontados fatos naturais como sobrenaturais do que os verdadeiros
santos nunca fizeram idéia, porque a santidade não se vê a si mesma nem o santo a constata, sempre acusando-se de "mísero
pecador". Há cuidadosa prudência nesse julgamento. Suas virtudes foram heróicas, o que é condição de santidade. O Papa Bento XIV
deixou rigorosas instruções para os processos canônicos. Voltaire considerou esse Papa uma das maiores inteligências do seu
tempo.
Foi o Papa Clemente XII quem, a 31 de julho de 1736, confirmou as
Virtudes Veneráveis do Servo de Deus José de Anchieta. Empenhou-se muito o rei Dom João V, na sua grandeza e bondade tão pouco
conhecidas no Brasil, e a ele já se faz justiça histórica em Portugal.
Mandou El-Rei para Roma 188 mil cruzados para indulgências, bulas
e canonizações, criação do Patriarcado de Lisboa, despendendo ainda mais do triplo disso em conventos, obras religiosas,
dotações a cardeais, núncios e igrejas, gastando nessas obras religiosas e públicas todo o dinheiro que recebeu do quinto do
Brasil (que, aliás, pelas estatísticas e documentos, sabe-se que o Rei não recebeu nem um terço do que deveria receber pelo
Estatuto da Colonização, e Roberto Simonsen, em sua História Econômica do Brasil, prova que era a primeira vez, depois de
dois séculos, que do Estado do Brasil - como Simão de Vasconcelos e todos o chamavam - se começava a ressarcir a Metrópole com
seu heroísmo e enormes gastos feitos para a criação do Brasil, que não foi gratuita ou fácil empresa).
Há despesas numa beatificação, mas sobretudo foi uma demonstração
de apego religioso e gratidão do Rei. Fez também D. João V grande honra a São Paulo fazendo erigir-lhe o Bispado, dotando de
tudo a sua catedral (v. a respeito o livro de José Pedro Leite Cordeiro) - ainda lá estão lampadários e banquetas de prata
doadas pelo Rei e seus sucessores.
Foi esse mais um dos intensíssimos serviços que a Monarquia
portuguesa prestou ao Catolicismo que, graças ao seu amparo, fixou-se no Brasil. E isso é deploravelmente esquecido por
católicos e parte do Clero. Colhem-se os frutos e esquece-se a árvore que Anchieta tão lealmente serviu. O pedido mais
expressivo dos últimos tempos foi feito em 11 de junho de 1877 pelo Episcopado Brasileiro através da Princesa Imperial Regente
Dona Isabel. O processo tinha dormido na Sagrada Congregação dos Ritos e o grande Papa Pio IX, tão cheio de virtudes em parte
também esquecidas com seus imensos méritos, mandou reabri-lo.
Em quatro séculos não há um santo declarado no Brasil, não
obstante os 40 mártires e o crédito obtido nos Céus pela repulsa ao invasor luterano (30 anos, na Bahia e em Pernambuco) e
calvinistas no Rio de Janeiro, por causa da Fé católica.
Conta Barleus quanto sofreram os católicos com os luteranos no
Nordeste. Os Estados Unidos, com tanta heresia, já os tem. Mas, na terceira sessão do Concílio Vaticano II, muitos bispos
pediram menos canonizações de religiosos e maior rapidez no exame das causas. Não se deve excepcionar por ser religioso o santo.
Leigos e religiosos que merecerem ser declarados santos por vezes esperam séculos, como Santa Joana d'Arc. É a segurança dos
exames que prudentemente pede alguma demora e o juízo humano sempre é inclinado ao panegírico nesses casos.
Excluído o que não é, é um direito da Igreja tratar desses
assuntos com o devido rigor. Uns, aliás, são declarados com rapidez. Pelos manuscritos e virtudes heróicas afirma-se que ainda
há insuficiência para a beatificação e canonização de Anchieta. A obediência faz calar, mas a glória de Anchieta, disse Simão de
Vasconcelos, com algum exagero, talvez, "no orbe todo não cabe". E dele jamais se dirá suficientemente, e é o limite de espaço
que nos faz parar aqui ao tratar "das cousas de Anchieta" - de rerum Anchietarum. |