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DIA DE ANCHIETA
O taumaturgo no Rio de Janeiro

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o seguinte texto:

Presença de Anchieta em terras fluminenses

Padre João Batista Selvaggi [1]

Se as terras paulista e capixaba disputam com direito a primazia das glórias anchietanas, há outras regiões brasileiras que também se ufanam da presença de Anchieta nos dias épicos de seu descobrimento e primeiras conquistas. O Salvador foi o torrão que ele primeiro pisou ao chegar à Terra de Santa Cruz; a Guanabara conta-o entre os fundadores de sua Cidade Maravilhosa, ao lado de Estácio e Mem de Sá.

Não últimas, por certo, também as terras fluminenses podem assinalar a presença do Taumaturgo do Novo Mundo nas suas matas, nas suas lagoas, nos seus rios, dando um fulgor lendário a estas terras onde agora vivemos.

Não pretendemos apresentar um estudo acabado, um arrolamento exaustivo de todas as vezes que Anchieta esteve em nosso território, ou de todas as maravilhas que aqui realizou; apenas salientaremos alguns fatos mais interessantes.

Anchieta desembarcando no Rio com os fundadores da cidade, gravura em relevo de Mastroiani
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Uma pergunta inicial espontaneamente nos ocorre: quando e onde o Padre Anchieta tocou pela primeira vez a terra fluminense? Difícil seria dizê-lo com certeza; mas ele mesmo, em carta de 9 de julho de 1565, nos sugere uma resposta, ao descrever a viagem que fez de S. Vicente ao Rio de Janeiro, com o Padre Gonçalo de Oliveira e Estácio de Sá, para a derrota definitiva dos franceses e fundação da cidade de São Sebastião [2].

Enquanto o capitão-mór viajava em sua capitânia Santa Maria, Oliveira e Anchieta vinham num dos cinco navios pequenos que formavam a diminuta esquadra que ia conquistar o Rio; estes, bem como as oito canoas de índios e mamelucos, navegavam perto do litoral "e era necessário cada dia pousarem em terra em algumas ilhas" [3]. Seriam possivelmente as terras do atual município de Parati as primeiras atingidas; mas a que Anchieta primeiramente nomeia, após a ilha de S. Sebastião do litoral paulista, é a Ilha Grande, "onde estiveram muitos dias esperando pela capitânia".

E acrescenta: "E aí dissemos também muitas vezes missa e se confessou e comungou muita gente, aparelhando-se para as guerras que esperavam no Rio de Janeiro" [4]. Assim estaríamos celebrando este ano (N.E.: em 1965) também o 4º centenário da chegada de Anchieta à terra fluminense.

Breve foi a permanência do Irmão José nas margens ocidentais da Guanabara, seguindo logo para a Bahia a fim de receber a ordenação sacerdotal. Nos 30 dias que permaneceu no Rio não cremos que tivesse ocasião de visitar as terras fluminenses, ocupadas ainda pelo gentio inimigo. Nem maiores oportunidades teria quando em janeiro de 1567 voltou já sacerdote, em companhia de Mem de Sá e do Beato Inácio de Azevedo, Visitador da Província do Brasil, viajando logo para S. Vicente.

Mas, regressando em julho do mesmo ano com o Padre Nóbrega, Reitor do novo Colégio do Rio, sua estadia foi mais prolongada: neste tempo, as forças portuguesas já ocupavam as margens orientais da Guanabara; é bem provável portanto a presença do Taumaturgo em terras da atual Niterói no segundo semestre de 1567. Diz o povo que foi o mesmo Anchieta que dirigiu a construção da igreja de S. Lourenço, que, embora várias vezes reconstruída, ainda existe no coração da capital fluminense, no morro do mesmo nome [5].

Mas a escritura de renúncia das terras de Antônio de Mariz a favor de Martim Afonso e seus índios, para se edificar a nova aldeia de S. Lourenço, é de 16 de março de 1568, enquanto o Padre José, em fins de 1567, já era Superior de S. Vicente, conforme a carta do P. Baltasar Fernandes a 5 de dezembro do mesmo ano [6].

Aldeia e igreja de S. Lourenço contaram sim com a presença de Anchieta em mais de uma ocasião, mas em anos posteriores.

Célebre entre outros foi o caso da representação do Auto da festa de São Lourenço pelos alunos do nosso Colégio do Rio, em 1587, sendo Superior da Aldeia o P. Gonçalo de Oliveira [7].

Conta-nos o P. Simão de Vasconcelos:

"Era o dia de S. Lourenço, celebrava-se a sua festa numa aldeia, distante uma légua da outra parte da cidade; o irmão Manuel do Couto tinha preparado uma comédia, em louvor do Santo, a que acudiu todo o povo; mas quanto mais se via empenhado em hóspedes, tanto sentia mais o tempo, que estava metido de chuvas sem cessar; queixou-se a José, que estava presente, que não poderia fazer o ato. Riu-se o Padre de seu cuidado e disse: 'irmão, mandai vós buscar muitas palmeiras, que façam sombra aos ouvintes, porque haveis de ter muita calma'. Não quis mais ouvir o irmão, mandou buscar cópias de palmas ... e todas não foram bastantes a defender do sol que feria, enquanto se representou a comédia; foi o caso célebre em todo o Rio de Janeiro, qual lá a suspensão da chuva da outra comédia de S. Vicente, mormente por más circunstâncias, porque não só parou a chuva dentro de três ou quatro horas que durou o passo, senão que, acabado ele, continuou perene, durante aquele dia todo e o outro seguinte sem cessar. E o que mais é, que afirmou o auditório que, enquanto estavam à comédia em bela paz, viam chover por todo o recôncavo, como se só para a comédia do Santo estivesse reservado o lugar da representação". [8]

"Na mesma aldeia de S. Lourenço estava (noutra ocasião o Padre José) quando, no meio de uma tormenta horrível, foram vistos andar os navios desamarrados do porto, no braço de mar entre a aldeia e a cidade, e com perigo evidente, porque o vento impetuoso os levava à costa com violência grande e prometia fazê-los em pedaços nos penedos da praia; compadecido José do caso, recolheu-se à igreja em oração e, depois de algum breve tempo, tornou alegre e disse aos padres que ali se achavam, Gonçalo de Oliveira, Manuel Fernandes e outros: 'não há que temer, não há de haver dano algum'. Escassamente acabou de dizer, quando de improviso parou o vento e ficaram os navios em paz". [9]

Mas, entre todos os episódios anchietanos que tiveram por cenário as terras fluminenses, foi celebérrima a pescaria de Maricá do ano de 1583, chamada por antonomásia a "pescaria dos milagres". Nota o Padre Vasconcelos: "parece que nela quis o autor da graça representar uma como comédia de toda a variedade de ações e figuras ao divino" [10].

Encontrava-se Anchieta na cidade de S. Sebastião, ou talvez na mesma aldeia de S. Lourenço, quando o nosso Colégio do Rio enviou o irmão Pedro Leitão com alguns serventes de casa a fazer pescaria para o sustento da comunidade. Acompanhou-os Anchieta. A ida foi por terra, passando por Itaipoi, como nos informa o mesmo Padre Pedro Leitão, no seu depoimento jurado, do Processo Informativo da Bahia, em 1619 [11]. Itaipoi é o nome que ainda em começos de 1800 conservam a serra e a lagoa chamada hoje Itaipu [12].

Logo ao fim  do primeiro dia pernoitaram ao pé dum penedo numa choupana de palha: "é o lugar suspeitoso de onças e tigres feros, que por ali assaltam os que passam - diz Vasconcelos -; eis que alta noite, sentiu o companheiro que José saía fora... e, entrando depois de largo tempo, tomou um cacho de bananas, e lançando-as a pouco e pouco para fora, dizia; 'tomai, tomai vós outras vossa porção', ...; saiu o irmão e perguntou-lhe: 'Vossa Reverência, a quem lança estas bananas?' Respondeu-lhe: 'a estas minhas companheiras'; ... vindo a manhã, notou e viu o rasto de duas onças, que chegavam até à porta da choupana...; e verificaram mais os índios, que viram na areia o rasto do padre juntamente com o daqueles animais..."

Chegados à lagoa de Maricá e começada a pesca, Anchieta ia indicando os postos em que haviam de lançar as redes e lhes dizia antes a casta de peixe que haviam de tomar, "como se ali os tivera em viveiro, sem que nunca se tivesse achado outra vez no tal sítio"; e a quantidade foi tão grande que a todos pareceu milagre.

Ao cheiro de tanta quantidade de peixe corriam bandos de aves de rapina, marítimas e terrestres, que, sôfregas e vorazes, impediam a salga. Acudindo então o Padre José à queixa dos pescadores, mandou às aves que se afastassem, "pois no fim da pescaria encontrariam o seu quinhão". E à vista de todos se despediram pelos ares, até que, terminado o trabalho, tornaram em bandos buscar sua prometida porção.

"Persistindo na pesca misteriosa, continua narrando o P. Vasconcelos [13], apareceram da parte contrária duas onças medonhas, lançando os olhos cobiçosos aos que trabalhavam; não parecia bem a estes tanta vizinhança, porém seguro o irmão com a companhia de José, lhe disse que folgaria vê-las mais de perto... E Anchieta, falando com as onças, mandou que voltassem mais tarde. Assim o fizeram as feras, porque, acabado o trabalho daquele dia, embarcados numa canoa José com sua companhia, foram correndo aquela praia muito perto da ribeira, e aqui então saíram de suas brenhas as onças e, como obedecendo à risca, vieram junto à água e se mostraram aprazíveis e muito de espaço, aos olhos de todos os que iam por mar, com alegria e sem perigo, como tinha prometido José".

Mas como as aves e as feras, também o mar respeitava o nosso taumaturgo. Certo dia, enquanto os índios pescavam, retirou-se para orar num rochedo da praia; terminado o trabalho, o irmão Pedro Leitão deu pela sua falta e, guiando-se pelas pegadas, foi encontrá-lo sentado no meio das ondas que tinham crescido com a maré, mas, qual nova maravilha do Mar Vermelho, erguiam-se como paredes em volta de Anchieta, deixando-lhe o caminho aberto para a praia. Não se atrevendo o irmão a ir buscá-lo, chamou-o em altas vozes; mas o Padre estava tão absorto em Deus que nada ouviu. Animou-se por fim o irmão e foi despertar o santo de seu celestial enlevo.

"Esperou José e pôs-se a caminho, porém - observa o Padre Vasconcelos - aqui é de ver um entremez divino gracioso, porque o irmão quis usar polícia com o seu Superior: deixou-o ir diante, ficando-se atrás, mas custava-lhe caro a cortesia, porque a água vinha seguindo seu natural caminho, assim e da mesma maneira que José ia desimpedindo, e por conseguinte ia molhando o irmão, que ficava detrás, e a quem não reconheciam império, até que houve por bem arrepender-se com o medo; porém José, que de propósito o deixara cair na desconfiança, olhando para ele, lhe disse como repreendendo-o: 'Irmão, não sabeis que o mar e o vento obedecem a Deus?'"[14].

A pescaria continuou entre prodígios e "como era tão grande a cópia de cargas, foi necessário conduzi-las à aldeia dos índios, que distava três léguas, chamada de S. Barnabé, para que estes ajudassem a levá-las ao colégio" [15].

A aldeia de S. Barnabé achava-se então ainda no seu primitivo sítio, no Cabuçu: não onde está hoje a vila do mesmo nome, mas perto da confluência do Rio Cabuçu com o Rio da Aldeia; foi este rio que o Padre Anchieta navegou com os índios e a vultosa pescaria, até alcançarem o Rio Macacu, que então, muito mais caudaloso do que hoje, se lançava na Guanabara por vasto estuário ou braço de mar. Aí se deu a última maravilha desta já tão maravilhosa viagem. Assim no-la descreve o Padre Simão em seu pitoresco estilo seiscentista:

"Chegava já embarcado em sua canoa a certa paragem do rio da aldeia, que desemboca num braço de mar, sítio alegre, cercado de mangues e ordinariamente povoado de aves, que por ali nascem, a que chamam guarazes, do tamanho de uma galinha e de cor carmesim finíssimo que tira para roxo: ... Aqui tinham chegado os nossos navegantes; mas, quando haviam de gozar de tão formosa vista, alegre a todos os que passam, os raios do sol eram demasiados, e custava-lhe caro ao companheiro o alívio dos olhos, quando o corpo todo suava, e se abrasavam os remeiros; propôs a José sua necessidade e não foi novo nele o remédio. Viu três ou quatro destas aves postas sobre um mangue; chamou-as pela língua brasílica entendida dos índios, que remavam, dizendo-lhes: "ide vós outras, chamai vossas companheiras e vinde aqui fazer sombra a estes encalmados servos do Senhor"; estenderam as aves o pescoço, como obedecendo, e logo voando foram buscar as outras, e em breve espaço voltaram feitas uma nuvem graciosa, e fizeram reparo à canoa uma boa légua de mar, até que, entrando viração fresca, as tornou a mandar a seus usos comuns, despedindo-se elas com estrondo de vozes toscas, mas festivas, entendidas somente do Autor da natureza, que as criara". [16].

E ao longe ia ficando a Serra dos Órgãos, com seus píncaros esguios...

A sesmaria jesuítica de Macacu, que eles então acabavam de atravessar, estendia-se por quatro léguas pela terra adentro até o pé da serra. É bem provável que Anchieta, como Provincial, a visitasse e percorresse mais de uma vez até além de Japuíba; mas nunca galgaria a nossa serra de Friburgo, que só foi penetrada e povoada em épocas posteriores.

Por certo, porém, muitas e muitas vezes contemplou e abençoou estas serranias verdejantes, que lhe apareciam ao longe, ora envoltas em densas brumas, ora recortando seu perfil fantástico no último horizonte...

E viu, talvez, em visão profética, um colégio que se honraria de seu nome, e transmitiria seu espírito às novas gerações, formando legiões de jovens, de apóstolos, de novos Anchietas.

E que hoje comemora jubiloso o dia de seu epônimo e celestial padroeiro - JOSÉ DE ANCHIETA.


Monumento sacro, em Magé, no Estado do Rio de Janeiro, 
junto ao poço cuja água foi abençoada pelo Padre José de Anchieta
Foto: reprodução do livro Anchietana


NOTAS:

[1] Padre João Batista Selvaggi, Superior Jesuita (S.J.), professor da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro. Alocução pronunciada no salão nobre do Colégio Anchieta de Nova Friburgo, em 9 de junho de 1965, comemorando o Dia de Anchieta.

Serviram de fontes para o presente trabalho, além da bibliografia citada nas notas, informações orais gentilmente prestadas pelo R. P. Hélio Abranches Viotti, S.J., bem como o Processo Informativo da Bahia, 1619-1620, que se encontra ainda manuscrito no Arquivo Secreto Vaticano (Congr. Rit., nº 303), e do qual possui cópia em microfilmes o mesmo P. Viotti, que nos facilitou a consulta, e a quem penhoradamente agradecemos.

[2] Monumenta Historica Societatis Iesu - Monumenta Brasiliae, vol. IV, pgs. 240 ss.

[3] Ibidem, pg. 244.

[4] Ibidem, pg. 245.

[5] M. de L. de Paula Martins, Auto representado na festa de São Lourenço, S. Paulo, 1948, pg. 3.

[6] Monumenta Brasiliae, IV, pág. 424. Conforme Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. I, pg. 424; Rev. do Inst. Hist. e Geogr. Bras., vol. 17 (1854), pg. 301.

[7] Devemos estes dados a comunicação oral do Pe. Viotti.

[8] Simão de Vasconcelos, Vida do Venerável Padre José de Anchieta, Porto, 1953, pg. 261. Pudemos conferir a narração de Vasconcelos com o depoimento jurado da testemunha ocular, Padre Pedro Leitão, então ainda irmão, consignado no Processo Informativo da Bahia, acima citado, e verificamos a exata concordância, sem nenhuma amplificação.

[9] Vasconcelos, livro citado, pg. 261-262.

[10] Idem, livro citado, pg. 267.

[11] Arquivo Secreto Vatiano, Congr. Rit., nº 303.

[12] Pizarro, História do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1946, vol. 4º, pg. 81 ss, vol. 7º (1948), pg. 103.

[13] Vasconcelos, livro citado, pg. 269.

[14] Idem, livro citado, pgs. 270-271.

[15] Idem, livro citado, pg. 272.

[16] Idem, livro citado, pg. 274.

A fundação do Rio de Janeiro, óleo de Firmino Monteiro,
no acervo da antiga Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

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