Era em Ubatuba a aldeia tamoia de Iperoig
Leão Machado
Aproveitando a oportunidade em que
se comemorou a passagem do quarto centenário do Armistício de Iperoig, o Reverendíssimo Padre Hélio Abranches Viotti, S. J.,
escreveu magnífico ensaio para a Revista do Arquivo Municipal, na edição comemorativa do referido centenário,
demonstrando - com abundante documentação histórica e notável espírito crítico - que a aldeia tamoia de Iperoig situava-se onde
hoje existe a cidade de Ubatuba.
Não é de admirar que houvesse o eminente historiador chegado a
essa conclusão, pois é um dos nossos estudiosos que melhor conhecem o assunto e a documentação que coligiu e apresentou é
suficientemente elucidativa. Tão convincente é a conclusão a que chegou, que nos parece não haver mais necessidade de voltar ao
problema, que, depois dessa publicação, se tornou definitivamente resolvido.
No entanto, ainda que possa parecer descabido tratar do mesmo
tema, tão magistralmente versado pelo ilustríssimo historiador, tivemos a idéia de escrever estas linhas, com o propósito de
trazer modestas achegas ao mesmo assunto. Não possuindo o saber especializado do Padre Hélio A. Viotti, o que podemos oferecer é
apenas um conhecimento pessoal e direto da região de Ubatuba, que freqüentamos com assiduidade há quase vinte e cinco anos.
Embora as conclusões do Padre Viotti não necessitem de confirmação, trazemos estas achegas para tentar confirmar, pela geografia
física da região, a tese a que chegou o eminente historiador pelo exame da documentação histórica.
Não usaremos, para os propósitos deste trabalho, senão a carta de
8 de janeiro de 1565, que Anchieta escreveu em S. Vicente, que vem publicada no mesmo número especial da Revista do Arquivo
Municipal, enriquecida com notas eruditas e elucidativas do Padre Viotti e de dois mapas, um de parte do município de
Ubatuba e outro da costa, desde o Rio de Janeiro até a ilha de São Sebastião, ambos da Marinha Brasileira, com redução do
formato original e conseqüente redução da escala.
Antes de entrar no assunto, desejamos fazer uma observação. A
carta de Anchieta, que refere a viagem feita por ele, na companhia do Padre Manoel da Nóbrega, até Iperoig, é pouco descritiva.
Contudo, há um tópico em que Anchieta refere que, uma vez estando na praia em companhia de Nóbrega, uma canoa, que vinha da
direção do Rio de Janeiro, tripulada por um filho de Pindoboçu e por outros "mancebos", se aproximou dos dois padres, com a
intenção de agredi-los. E que os padres correram pela praia, atravessaram um rio, deram à outra margem, subiram o morro e se
foram acolher à casa de Pindoboçu.
Este trecho descreve um local que o Padre Viotti identifica como
sendo a atual Praia da Cidade ou de Iperoig, com o Rio Grande de Ubatuba e o Morro da Prainha. Pelos nossos conhecimentos da
região, entendemos também que o trecho é suficiente para localizar a aldeia indígena de Iperoig, como sendo o local onde hoje
está a cidade de Ubatuba.
A identificação, feita pelo Padre Viotti, se baseou na
documentação histórica, mas se baseou também no incidente narrado por Anchieta, na carta mencionada.
Diz o tópico da carta:
"... senão quando, aos 9 de junho, véspera de Corpus
Cristi, estando nós outros no fim da praia, apareceu uma canoa que vinha do Rio de Janeiro, nós outros tomamos por melhor
conselho ir à aldeia de Pindoboçu, porque estando ele presente, nos parecia estaríamos mais seguros de qualquer encontro
e demos a andar pela praia e às vezes a correr, porque pudéssemos passar antes que a canoa chegasse, por não lhes dar
ocasião, se nos achassem a sós, de executar sua danada vontade, da qual ainda que não éramos mui certos, todavia estávamos
receosos pelo que já havíamos passado. E este foi um outro trabalho, o maior, ao menos dos maiores eu o Padre Nóbrega teve em
sua vida, porque estando ele mui fraco de suas contínuas indisposições e, junto com isso, da má vida que ali se passava, se
queria correr não podia, se não corria punha-se em sério perigo de vida: todavia, correu quanto pôde e mais do que pôde, até
o fim da praia, onde antes da aldeia, que está posta em um monte mui alto, corre uma ribeira d'água mui larga e que dá pela
cintura, o Padre ia com botas e calças que comumente traz pelas chagas que tem em as pernas, do que ficou mui mal tratado:
se se punha a descalçar chegava a canoa, que estava detrás de uma ponta mui próxima de nós outros, de maneira que o tomei às
costas e o passei; mas em o meio do rio vínhamos já todos molhados, e como minhas costelas ainda cansem e doem como soíam, e
tem mui poucas forças, não o pude bem passar e foi forçado o Padre a lançar-se na água, e assim passou todo ensopado, de maneira
que escassamente tivemos tempo para nos poder meter pelo monte e encobrir-nos com as árvores. Pois pelo monte arriba foi
coisa de ver. Retirou o Padre as botas, calças e roupeta, e todo molhado, com toda a sua roupa molhada às costas e ele em
camisa, só com o bordão na mão, começamos a caminhar. Mas ele nem atrás, nem adiante podia ir, entanto que, vendo o seu trabalho
e que era impossível chegar à aldeia, lhe cometi que nos escondêssemos no bosque até que passassem os da canoa, os quais
estavam já no ribeiro gritando, e se não fora a tardança que fizeram em tirar a canoa à terra, bem creio que não chegaríamos
à aldeia, à qual ainda chegamos, porque encontramos um índio dela, do qual, com muitos rogos e prometer que se lhe pagaria,
alcancei que, agora às costas, agora puxado pelo bordão, levasse o Padre, e assim, quase sem respiração, chegou às casas.
Mas porque nos mostrasse Nosso Senhor quão falsa é salus hominis, permitiu que Pindoboçu, em quem confiávamos não
estivesse em casa, e na canoa vinha um seu filho, um dos mais insignes em maldade que há entre aquela gente, com alguns trinta
mancebos da sua qualidade, o qual estando com sete ou oito canoas para vir à guerra, ouvindo a fama dos nossos as deixou e se
meteu mui depressa em uma delas, querendo ser ele quem levasse a honra de nossa morte... Entrando ele, pois, com esse propósito
em casa de seu pai, que estava ausente, disse-lhe um tio como nós outros éramos idos e tratávamos de pazes, e quem éramos, com o
que, parece que algum pouco se amansou seu furioso coração, mas não de todo, antes dali a pouco espaço entraram muitos dos seus
onde pousávamos, estando nós outros rezando a véspera, a qual acabada, entrou um, que era dos que nos haviam de tomar"...[1]
Temos, então, referido por Anchieta, um conjunto de três acidentes
conjugados e evidentes: uma praia, um rio (a ribeira) e um morro. Quanto à praia, qualquer poderia ser, uma vez que Anchieta não
a descreveu. Mas o rio e o morro devem ter características inconfundíveis e identificáveis. O rio, em prosseguimento da praia,
devia ser "uma ribeira d'água mui larga", que se pudesse transpor a vau, com água pela cintura, e o morro havia de ser um
morro próximo do rio, pois que, ao atravessar a ribeira, começaram a subir o morro e com ladeiras tais que pudesse ser
escalado com facilidade e tendo ainda uma esplanada, porque no tope havia a casa de Pindoboçu e uma aldeia indígena.
Mapa nº 1 - Faixa litorânea do Rio de Janeiro à Ilha de São
Sebastião.
Nesta ilha, Anchieta e Nóbrega pernoitaram a 1º de maio de 1563,
quando a caminho de Iperoig
Reprodução publicada com o texto
Examinemos onde, na região, se encontra esse conjunto de praia,
rio e morro. E comecemos pela Ponta de Joatinga para o Sul.
A escolha da Ponta de Joatinga se baseia no fato de que ali existe
um contraforte da serra que avança longamente para o mar, como se pode ver no mapa nº 1. Este esporão da serra separa a Baía da
Ilha Grande da Baía de Ubatuba e deve ser a fronteira a que aludia Anchieta em sua carta, que foi também referida no ensaio do
Padre Viotti, pois as fronteiras, geralmente, constituem obstáculos e acidentes geográficos.
Diz o trecho de Anchieta, que se refere à fronteira:
"...ao tempo que
saímos naquela fronteira de inimigos tinham os índios desta nação"... (Pág. 99 da Rev. do
Arq. Mun. (número dedicado ao 4º Cent. da Paz de Iperoig) "... e que assim o havíamos
concertado com os da fronteira"... (pág. 103) "... eram
partidas para aqui onze canoas em que vinham muitos do Rio e todos da fronteira"... (pág.
108) "... porque aos 25 de junho, assim os poucos que haviam ficado na fronteira com uns do
Rio que aí estavam"... (pág. 109) "... como aqueles do Rio... vendo
Pindoboçú... falando não quero que ninguém bula em minha aldeia; os cristãos fazem pazes comigo, que estou fronteiro"... (pág. 114) [2].
Quanto à fronteira, há um documento histórico a respeito, que o
Padre Viotti gentilmente nos cedeu para usar neste trabalho. Trata-se do depoimento de Salvador Corrêa de Sá, feito no dia 1º de
dezembro de 1620, no Rio de Janeiro, no Processo Informativo para a Beatificação de Anchieta. Diz o trecho, referindo-se
a Anchieta, que:
"desejou derramar seu sangue,
padecendo martírio, arriscando por esse respeito a muitos perigos, indo a este sertão de infiéis. E estando lá entre eles em
reféns e de acordo e deliberados para o matarem. E o sobredito foi público e notório assim nesta Capitania como na de Sâo
Vicente, passando o sobredito entre a dita Capitania e esta e umas aldeias de infiéis".
As expressões do trecho transcrito evidentemente se referem a uma
fronteira. Examinada a região, do ponto de vista da geografia física, verifica-se existir ali um obstáculo natural importante,
como é fácil de ver, examinando-se o mapa nº 1.
Pondo-se uma escala que ligue Ubatuba a Parati, em linha reta, se
verifica que a distância é de cerca de 45 quilômetros. Um avião de turismo, com velocidade de 180 km à hora, cobre esse percurso
em 15 minutos. Traçando-se, porém, uma linha imaginária de navegação, em linha reta, entre as duas cidades, encontramos uma
distância de cerca de 150 quilômetros, pois essa linha imaginária de navegação teria que contornar a Ponta de Joatinga, tal como
o fazem normalmente os barcos de pesca que navegam entre Ubatuba e Parati e que gastam de 9 a 10 horas pra fazer esta viagem.
Tanto esta ponta é uma fronteira, que a serra vem por ali numa
sucessão de morros elevados, os mais elevados da região, sendo a linha de cumeada desses morros a divisa entre os Estados do Rio
de Janeiro e de São Paulo. Este elevado espigão é uma fronteira natural evidente. Se os civilizados traçaram por ali a divisa
dos dois Estados, preferindo o acidente geográfico, sempre melhor do que as linhas convencionais, maior razão teriam os tamoios,
selvagens e primitivos, para fazer passar por ali a fronteira de suas diferentes nações.
Fixado, pois, o ponto extremo, ao Norte, procuremos agora qual
poderia ser o ponto extremo ao Sul. Fixado que se consiga este ponto extremo ao Sul, teremos estabelecido uma faixa em que se
possa fazer a pesquisa do local onde deveriam estar essas aldeias tamoias do século 16.
Esse ponto extremo ao Sul, a nosso ver, será a Praia Dura, que tem
também, próximo ao rio, o nome de Praia do Barro. A escolha deste ponto extremo não é arbitrária. Baseia-se na circunstância de
que a viagem de Nóbrega e Anchieta, começada na Bertioga, teve uma etapa intermediária, na Ilha de São Sebastião, onde dormiram
uma noite e de onde partiram no dia 2 de maio, em caminho de Iperoig, gastando quatro dias nesse percurso.
Ora, um olhar para o mapa nº 1 nos demonstra que as aldeias não
poderiam estar ao Sul desta praia, pois a primeira, a de Lagoinha, é muito próxima da ilha para justificar o pernoite.
Esta Praia Dura, como se pode ver no referido mapa nº 1, também
não fica longe da ilha de São Sebastião, tanto assim que, pela rodovia que passa por ali, se faz o percurso da Lagoinha à Praia
Dura em 15 minutos. Porém, a viagem era feita por mar e quem vem pelo mar, na Ilha de São Sebastião, tem que contornar outro
esporão de serra que avança pelo mar até a Ponta do Cedro.
Então, fixada a faixa que fica entre a Ponta de Joatinga, ao
Norte, e a Praia Dura, ao Sul, investiguemos para saber onde existe o conjunto de praia, rio e morro, como descreveu a carta de
Anchieta.
Mapa nº 2 - Ubatuba e as enseadas adjacentes
Reprodução publicada com o texto
Eliminemos, de início, as praias ao Norte de Ubatuba, vizinhas da
divisa de S. Paulo com o Rio de Janeiro. São as praias de Ubatumirim, da Fazenda, da Almada e da Pecinguaba. Estas praias, como
se pode ver no mapa nº 2, estão voltadas para Sudoeste.
Quem reside na região, ou freqüenta-a com assiduidade, sabe que os
ventos predominantes na costa são os alísios, que, aliás, sopram em toda a costa brasileira. Estes alísios, durante o dia, com
bom tempo, sopram do mar para a terra - a viração - e à noite, da terra para o mar - o terralão.
Quando ameaça chuva, sopra o Noroeste, vento quente, de mau tempo.
Duas ou três vezes por ano, sopra um Sudoeste tempestuoso. E durante o inverno e a primavera, o pior vento do litoral é o
Sudeste, vento enregelante que sopra da Patagônia, perturba a pequena navegação, suspende a pesca e é extremamente
desconfortável. Às vezes sopra uma semana inteira, às vezes um dia só, outras, três a quatro dias seguidos. É um vento irregular
e profundamente desagradável. Tanto assim que os caiçaras da região não constroem suas casas diretamente na praia, mas
escondem-nas por detrás do jundu, para se abrigarem deste vento.
A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, na parte
dedicada à Grande Região Sul, coordenada por D. Dora de Amarante Romariz, tratando deste assunto, diz o seguinte:
"Quanto ao regime dos ventos, situa-se a Região em
estudo (Sul) na zona de dominância dos ventos austrais, oriundos da zona anticiclonal do Atlântico Sul. A regularidade dos
alísios é perturbada pela ação dos ventos variáveis provocados pelas incursões da Massa Polar e dos anticiclones do Sul" [3]
Não é de se acreditar que os tamoios, dispondo de terra à vontade,
fossem escolher para suas moradas estas praias voltadas para o quadrante Sul, mesmo na boca enregelante do Sueste.
Vindo para o Sul, até a Praia do Perequê-Açu, temos as praias do
Poruba, do Promirim, do Felix, da Itamumbuca e a Praia Vermelha (do Norte).
Pensamos que estas praias dispensam investigações mais detidas,
pois não é também provável que houvesse em nenhuma delas uma aldeia indígena. Todas estas praias são de mar alto e,
conseqüentemente, o mar engrossa com qualquer vento. Os tamoios, que dependiam da pesca para viver, dificilmente
escolheriam para morar praias de abordagem difícil, sendo que a Praia Vermelha, por ser praia de tombo, mesmo sem vento, é de
abordagem dificílima.
Agora, saltemos provisoriamente sobre a Praia do Perequê-Açu, que
apresenta muitas das características citadas na carta de Anchieta, a fim de examiná-la mais adiante, e passemos às praias ao Sul
da cidade de Ubatuba.
Vindo então para o Sul, temos o Saco do Cedro e o Saco das
Andorinhas, ao Sul e ao Norte da Ponta Grossa. Esses dois sacos não são praias propriamente; são anfiteatros cheios ainda de
rochas, onde o mar, por meio da abrasão, está construindo duas praias, que surgirão daqui a alguns séculos. E não existe rio com
as características exigidas. A Praia Vermelha do Sul não tem rio, como não há rio na Praia do Tenório. A Praia Grande, as
Toninhas, a Enseada e o Perequê-Mirim só têm riachos, desses que se atravessam com água pelos tornozelos. No Saco da Ribeira, as
praias que formam a Enseada do Flamengo, assim como a Praia das Sete Fontes, já fora da Enseada, também não têm rios, como não
há rio, com as características indispensáveis, na Sununga, não há no Lázaro, nem na praia de Domingas Dias.
Desse modo, fica limitada agora nossa análise à faixa compreendida
entre a Praia Dura, ao Sul, e o Perequê-Açu, ao Norte.
E nessa faixa, eliminadas as praias que não apresentam aquele
conjunto descrito por Anchieta - de praia, rio e morro -, restam apenas três locais, que são o Perequê-Açu e a Praia Dura e,
entre essas, a Praia de Iperoig-Itaguá, diante da cidade de Ubatuba.
No Perequê-Açu, temos a praia, o rio Indaiá e o Morro do Alegre.
Ainda que o morro apresente satisfatoriamente todas as características exigidas, pois tem em cima uma boa esplanada e não é de
ladeiras muito íngremes e o rio Indaiá, com maré cheia (se for maré de sizígia) se atravesse com água talvez um pouco acima da
cintura, há uma característica que elimina o local. É que entre o rio Indaiá e o Morro do Alegre, a praia, que, neste trecho,
tem o nome mudado para Barra Seca, continua por um trecho de cerca de um quilômetro de extensão. Não teriam podido fugir os
padres por ali, porque deveriam andar por uma praia desprotegida ainda mais mil metros e seriam inevitavelmente alcançados pelos
ocupantes da canoa, antes de atingir o pé do morro.
A Praia Dura apresenta conjunto perfeito de praia (neste ponto a
Praia do Barro), o rio (o rio Claro) e o morro (do Escuro), que se inicia mesmo na margem esquerda do rio.
Olhando-se, porém, para os dois mapas, se verifica que os tamoios
jamais poderiam ter uma aldeia nesta praia, que fica escondida. A costa, neste ponto, faz outro largo movimento, que começa no
fundo da Enseada do Flamengo e se prolonga pela Ponta Grossa (a do Sul). Volta daí, formando um saco, sendo as praias do Barro e
Dura precisamente o fundo desse saco. Daí para o Sul, começa outro contraforte da serra que penetra no mar, até a Ponta do
Cedro, onde submerge no oceano, para aflorar das águas na ilha do Mar Virado, com um boqueirão de dois quilômetros. Esses dois
movimentos da costa tapam completamente a vista do mar alto para quem esteja na Praia Dura ou na Praia do Barro, principalmente
para o Sul e para o Norte.
Não é fácil acreditar que tamoios guerreiros morassem ali, onde
não poderiam vigiar o mar alto. Ao avistar uma ubá inimiga, que viesse do Rio ou fosse de S. Vicente, os moradores destas duas
praias teriam os ocupantes da ubá em suas areias dentro de quinze minutos - sem tempo, portanto, para a organização de nenhuma
defesa eficiente.
Assim, só nos resta na faixa a praia que se chama hoje Praia da
Cidade ou Praia de Iperoig e que fica diante da cidade de Ubatuba, precisamente a praia que o Padre Viotti identifica. Esta
praia tem, na sua extremidade Norte, um rio, o Rio Grande, e o Morro da Prainha, em seguimento.
Há uma foz bastante larga ("ribeira d'água mui larga", na
expressão de Anchieta) pois o rio forma antes uma ilha. A foz é, pois, a soma dos dois braços do rio que contornam essa ilha.
Evidentemente, no ponto em que hoje está essa embocadura, não poderia ser atravessada a vau, pois as águas são aí muito
profundas. Porém, hoje é que se vê o rio desta forma, porque há cerca de 30 anos (N.E.: portanto,
por volta de 1935, já que o texto é de 1965) a Prefeitura de Ubatuba construiu um enrocamento na
margem direita, alongando a embocadura para o oceano. Mas, antes desse enrocamento, era uma barra mais larga e, portanto, menos
profunda, naturalmente. Além desta observação, se pode admitir que Anchieta e Nóbrega não tivessem escolhido a parte mais
avançada para o mar, a fim de atravessar. Poderiam ter entrado um pouco a montante, para o fio da correnteza, e transposto aí o
vau.
Esta observação tem seu cabimento, porque seria uma prática
desusada. Quem atravessa correntes de água à beira-mar faz precisamente o contrário. Procura atravessar à jusante da linha da
praia, porque nesse ponto há um constante assoreamento, de modo que o vau se torna mais raso.
Na foz do Rio Grande as condições são diferentes. A praia que
existe nesse ponto, em conseqüência mesmo da embocadura do rio, é uma praia de tombo, que se afunda rapidamente. Tanto assim que
no Cruzeiro, que está a cerca de 300 metros da margem do rio, a praia continua sendo de tombo e, portanto, imprópria para banhos
de mar.
De qualquer forma, por esta embocadura, só se pode atravessar
com água pela cintura, na maré vazante e assim mesmo em maré de sizígia, que enche muito e vaza muito. Com marés cheias,
mesmo de quadratura, que são marés mortas, não é possível atravessar a pé, a não ser remontando muito o curso do rio, o que não
seria provável em quem tivesse urgência de atravessar, como é o caso em exame.
Quanto ao morro, que é o da Prainha, corresponde inteiramente às
exigências e necessidades. Começa diretamente na margem esquerda do Rio Grande, apresenta excelente ponto estratégico para
vigiar toda a baía, não é de ladeiras íngremes e tem extenso plateau, onde não só caberia a casa de Pindoboçu, mas toda
uma populosa aldeia indígena.
Mas ainda há outros pontos notáveis de identificação.
O primeiro é quando informa Anchieta que a canoa que os perseguia
vinha do Rio de Janeiro e se escondera "detrás de uma ponta que estava mui próxima de nós"... Em outra praia, esta
circunstância seria de conciliar. Na mesma baía de Ubatuba, onde a praia se chama de Itaguá, também há uma ribeira, o rio Itaguá,
e este, com maré alta, se pode atravessar com água pela cintura. A praia tem, em seguimento, um morro, o Morro da Sorutuva. Mas
o local não se concilia com a informação de Anchieta, de que a canoa ficara escondida por detrás de uma ponta "mui próxima",
enquanto os padres fugiam. Não poderia acontecer isso aqui, porque a ribeira deságua diretamente na praia, tendo ao lado as
escarpas do morro. Para esconder-se, uma canoa vinda da direção do Rio de Janeiro teria de se afastar muito no oceano, até quase
as alturas do cais do porto (mais de um quilômetro) e não corresponderia à situação descrita, que era de uma canoa que vinha
muito perto e se escondera por detrás de uma ponta, ainda muito próxima, tanto que os padres mal tiveram tempo de concluir a
travessia do vau e encetar a escalada do morro.
Na Prainha já isto poderia suceder, porque há uma formação rochosa
que avança para o mar, podendo esconder uma canoa que viesse do Rio, e a distância entre este pequeno promontório e a embocadura
do Rio Grande é de cinco minutos de canoa, no máximo.
Outra coincidência está na informação de Anchieta de que os
ocupantes da canoa não alcançaram os padres, porque tiveram dificuldades em tirar a canoa para terra. Ora, esta
dificuldade é a que vemos todos os dias em Ubatuba, quando canoas e baleeiras tentam entrar nesta barra do Rio Grande, ou sair.
No meio da embocadura, há uma laje descoberta, que produz um turbilhão no entrechoque das águas e que dificulta sempre e cria
embaraço para pequenas embarcações a remo.
Ainda ocorre mais uma coincidência e vem referida na mesma carta
de Anchieta, onde diz:
"...trabalhei muito
que trouxessem consigo a meu companheiro, porque não podia por então resgatar sua gente estava ainda enfermo, mas não o pude
conseguir, ordenando assim Nosso Senhor que lhe tinha aparelhado melhor caminho, porque uma das canoas em que havia de vir seu
resgate se fez pedaços ao sair da barra, o que foi causa se ficasse Pindoboçu em terra com muitos outros, esperando outra melhor
embarcação" [4].
Nenhum outro ponto da costa, naquela região, tem características
desta natureza, pois, desde a Ilha de São Sebastião até a Ponta de Joatinga, o único ponto em que uma embarcação, ao entrar pela
embocadura de um rio, ou sair por ela, corre o risco de dar em uma laje mal colocada, é aqui na foz do Rio Grande. E, portanto,
só aqui uma canoa poderia ser despedaçada na barra.
O único problema que nos restava resolver, a fim de tentar
confirmar gegraficamente a tese, já clara e copiosamente demonstrada pelo Padre Hélio A. Viotti, era a questão de só poder a foz
do Rio Grande ser transposta a vau por um homem de talhe médio, com maré baixa. Se temos em cada vinte e quatro horas e
cinqüenta minutos duas marés vazantes, temos também, no decurso do mesmo período, duas marés enchentes. Assim, identificar uma
barra que foi transposta a vau uma vez, mas só pode ser transposta em maré baixa (e de preferência, de sizígia), é admitir uma
hipótese que só tem cinqüenta por cento de probabilidade de confirmação por este meio.
Ocorreu-nos então a idéia de que se pudéssemos saber que tipo de
maré se estaria processando no momento em que Anchieta afirma ter atravessado o rio, com água pela cintura, para então
concluirmos que o rio poderia ser mesmo aquele que só se pode atravessar com maré vazante, teríamos podido clarear muitíssimo o
problema.
Anchieta, como pode ser comprovado pela leitura da carta, não era
um descritivo. Talvez nem mesmo fosse bom observador de fenômenos da natureza que, na verdade, interessam número muito pequeno
de pessoas que não têm necessidades profissionais de os observar. Por isso, não disse se a maré estava alta ou baixa na ocasião,
nem esclareceu a hora em que o episódio aconteceu. Apenas, como notação de tempo, refere que, já na casa de Pindoboçu e depois
de superado o incidente, em meio de longas conversações, como parece que era costume entre os selvagens, rezava as vésperas.
Diz assim o trecho:
"Entrando ele (o
filho de Pindoboçu), pois, com este propósito em casa de seu pai que estava ausente, disse-lhe um tio como nós outros éramos
idos e tratávamos de pazes, e quem éramos, com o que, parece que de algum pouco se amansou seu furioso coração, mas não de todo,
antes dali a pouco espaço entraram muitos dos seus, onde pousávamos, estando nós outros rezando a véspera, a qual,
acabada"... [5].
Ora, rezar as vésperas, é rezar à tarde. E, como está narrado, a
gente imagina que o caso teria acontecido horas antes, com aquele nunca acabar de entrar e sair índio da casa, e falar, e
perguntar, e responder.
Porém, Anchieta nos deu um preciosíssimo elemento. Referiu que
aquele era o dia 9 de junho. Ora, pensamos, procurando saber qual era a idade da Lua naquele 9 de junho de 1563 e a que horas,
mesmo aproximadamente, a Lua nascera nesse dia, poderíamos descobrir, com nossos próprios recursos, qual a hora, também
aproximadamente, da preamar e da baixamar nas marés ocorridas no dia.
Sabíamos que o conhecimento da idade da Lua em uma determinada
data constitui problema que os astrônomos podem resolver. Conhecendo essa idade, já o conhecimento da hora do nascimento da Lua
é muito fácil e o da hora da preamar e da baixamar nesse dia é facílimo, ainda que pudéssemos resolver o problema com
aproximação e para o nosso caso diferenças de meia hora não importam muito.
Formulamos então duas consultas ao Exmo. Sr. Prof. Dr. Aristóteles
Orsini, diretor do Planetário Municipal, perguntando-lhe qual era a idade da Lua no dia 9 de junho de 1563 e qual a hora, ainda
que aproximadamente, em que a Lua nascera nesse dia. O Sr. Diretor do Planetário nos atendeu gentilmente e se prontificou a nos
dar as respostas. Mas perguntou-nos, por sua vez, se poderíamos esclarecer se a data do nosso interesse devia ser considerada
como sendo do Calendário Juliano ou do Calendário Gregoriano, pois que a reforma de um para o outro se fez em 1582.
Não hesitamos em responder que devia ser pelo Calendário Juliano,
o que estava em vigor na época e forçosamente haveria de ser por esse que Anchieta se referiria em suas cartas.
A resposta, que vai transcrita no fim destas linhas
[6], foi de que a Lua no dia 9 de junho de 1563, era
cheia. Quanto à hora do nascimento, informou que teria sido, aproximadamente, às 19 horas.
Desse modo, a resposta do Planetário veio apenas confirmar o que
já imaginávamos e que seria mesmo a melhor hipótese para o nosso ponto de vista. Anchieta só poderia ter atravessado a foz do
Rio Grande com maré baixa e mais facilmente em maré de Lua Nova ou de Lua Cheia, que são as marés ditas de sizígia, que enchem
muito e vazam muito, por força do mesmo mecanismo.
Com estes dois dados, pudemos efetuar os cálculos,
aliás, simplicíssimos, partindo do princípio de que a maré, em um dado local, começa a encher logo em seguida à passagem da Lua
pelo meridiano desse local [7].
Se a Lua, no dia 9 de junho de 1563, nasceu às 19 horas
(aproximadamente), remontemos ao dia anterior, para facilidade do cálculo e clareza de exposição. Então, no dia 8 de junho,
nasceu às 18 horas e 10 minutos (50 minutos de atraso diário, aproximadamente). Estava então (nesse dia 8), ao nascer a Lua,
findando uma preamar, começando aí o refluxo da maré vazante, que durou até zero hora e 22 minutos do dia 9 de junho. Nesse
momento, a Lua cruzou o meridiano de Iperoig e, em conseqüência, começou o fluxo da maré enchente.
Cada movimento de maré dura 6 horas e 12 minutos. Portanto, esta
maré enchente, que começou aos 22 minutos do dia 9, durou até 6 horas e 34 minutos, quando atingiu a preamar, a primeira do dia
9. Aí, começou o refluxo da vazante, que durou até 12 horas e 46 minutos, quando atingiu seu máximo. Prosseguindo o andamento do
processo, começou nesse momento outro fluxo da enchente (agora maré reflexa, porque a Lua fazia sua passagem inferior pelo
peridiano, nos antípodas). E esta maré enchente durou até 18 horas e 58 minutos, ou seja, até 19 horas, para arredondar, hora em
que a Lua nasceu, segundo informação do Planetário.
Vê-se, pois, arredondando-se também aqui, que das 6 horas e 30
minutos da manhã do dia 9 de junho de 1563, até as 13 horas desse dia, a maré era vazante.
Então, é perfeitamente lógico afirmar que em todo o período da
manhã, o Rio Grande poderia ter sido transposto a vau, em sua foz, com água pela cintura, como disse Anchieta, pois que o oceano
se teria afastado para o largo, as praias estavam com dezenas de metros de fundo à vista e os rios que desembocam no mar estavam
reduzidos ao volume de água da sua própria correnteza, como acontece normalmente em toda a costa, nas marés vazantes de Lua Nova
e de Lua Cheia.
Esta conclusão é corroborada por dois fatos.
Um, é o costume de passear pelas praias nas primeiras horas da
manhã, que poderia ser do hábito de Anchieta e Nóbrega, pelo menos enquanto estiveram em Iperoig. Ora, este costume existe
principalmente em Ubatuba, porque suas peculiares condições geográficas e climáticas só podem assegurar manhãs de sol, enquanto
tornam sempre duvidoso esse sol pela tarde. Mesmo com bom tempo, o Alísio, soprando do mar para o continente, acumula nuvens na
serra, que ali, em Ubatuba, vem até o mar, passando o divisor de águas a cerca de seis quilômetros, em linha reta, da praia.
Esse acúmulo de nuvens que se vão somando, a partir das dez horas, no verão, e das onze, no inverno, faz com que as tardes
ubatubenses sejam normalmente nubladas.
Descrevendo a floresta da Serra do Mar, diz o sr. Luiz Guimarães
de Azevedo:
"Floresta
latifoliada tropical e úmida de encosta. Pela posição geográfica que ocupa, este sub-tipo apresenta um caráter úmido acentuado,
pois ocorre em áreas de elevados índices pluvio-higrométricos, conseqüência do anteparo montanhoso dos ventos que sopram do
oceano" [8].
Além disto, o dia 9 de junho estava a duas semanas do solstício de
inverno e o Sol se punha muito cedo. O alto paredão da serra, passando precisamente a Oeste de Ubatuba, esconde o Sol a partir
das 17 horas, no inverno, de modo que as tardes são frias, tornando desagradáveis quaisquer passeios, como é do conhecimento
corrente dos habitantes e freqüentadores da região.
O outro fato que corrobora a hipótese de ter acontecido o episódio
pela manhã é pela menção já referida, de que Anchieta e Nóbrega, na casa de Pindoboçu e depois de encerrado o incidente, rezavam
as vésperas, o que quer dizer que era então pela tarde.
Oferecendo estas modestas
achegas, não pretendemos acrescentar qualquer coisa às conclusões do erudito ensaio do Padre Hélio Abranches Viotti, que são
claras, satisfatórias e solidamente baseadas em ótima documentação histórica. Não necessitam, portanto, de nenhum acréscimo, nem
carecem de confirmação. Nosso propósito foi apenas de abordar o problema pelo lado da geografia física, tentando mostrar que os
aspectos e peculiaridades da região corroboram perfeitamente com o acerto daquelas conclusões, que, se se justificam pelo
documento, pelo meio físico também se podem justificar, como esperamos haver podido demonstrar.
Notas:
[1] Revista do Arquivo Municipal, número dedicado ao IV Centenário da Paz de Iperoig, págs.
105, 106.
[2] Idem, ibid.
[3] Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (Inst. Brasileiro de Geografia e Estatística),
vol. X, pág. 13.
[4] Revista do Arquivo Municipal, número citado, pág. 120.
[5] Idem, ibid., pág. 100.
[6] É o seguinte o texto da carta que recebemos:
"Prefeitura Municipal de São Paulo - Escola de Astrofísica -
Planetário Municipal
São Paulo, 15 de junho de 1965 -
Exmo. Sr. Leão Machado
Capital
Em atenção à sua prezada carta de 1º de junho, corrente, em que V.
S. consulta sobre a idade da Lua e a hora do seu nascimento, no dia 9 de de junho de 1563, cumpre-me informar:
1º) No dia 9 de junho de 1563 (Calendário Juliano) a Lua devia ter
14 dias (Lua cheia).
2º) Tendo 14 dias, a Lua deve ter surgido às 19 horas
aproximadamente.
Atenciosamente,
(a) Aristóteles Orsini
Encarregado da Ad. da Escola Municipal de Astrofísica-Planetário".
[7] "É um pouco depois da passagem pelo meridiano
do lugar que o mar começa a subir nesse lugar, e, tal como o atraso da Lua, o das marés é também, na média 50 minutos, de um dia
para o seguinte". - Mário da Veiga Cabral - (Lições de Cosmografia - Liv. Francisco
Alves, 6ª ed., pág. 275).
[8] Luís Guimarães de Azevedo - Atlas do Brasil - Conselho Nacional de Geografia, 1960, pág.
270. |