Ínfimo da Companhia de Jesus
Maria José Duprê
Era dessa maneira que o Padre José
de Anchieta assinava as cartas que enviava desta Piratininga aos jesuítas de além-mar. Às vezes assinava em latim: Minimus
Societatis Jesu. Foi sempre o mais humilde, o ínfimo, o último, realizando assim as palavras do Evangelho: os humilhados
serão exaltados.
Os atributos que recebeu ou foram-lhe outorgados, ou ainda
alcançados por seus próprios méritos aqui nas terras brasílicas, são inumeráveis, e pode-se observar que o maior deles, o dom
mais sensível, mesmo o sobrenatural, foi seu amor ao próximo.
Ele amou esta terra e esta gente com o amor devotado do Apóstolo,
com o amor entranhado do Missionário, com o amor convicto do Santo.
José de Anchieta foi um caçador de almas. Foi o primeiro humanista
das Américas, foi o pacificador, o colonizador, o confessor, o enfermeiro, o professor, o pai dos índios, o poeta, o catequista,
o pregador, o dramaturgo e o taumaturgo.
Sobressai o poeta: "E a mim, o mais
pobrezinho dos teus servos, orna-me com tua humildade, sem a qual nem a ti nem ao Senhor agradarei".
Ele agradou ao Senhor, não talvez pela pobreza ou pela modéstia ou
pela humildade em que vivia, mas sim porque cumpriu fielmente o primeiro mandamento: Ama o próximo como a ti mesmo. E agradou à
Virgem porque foi manso de coração, foi quase obscuro, foi o Minimus Societatis Jesu.
Esse homem só, doente da espinha, fraco e pobrezinho, foi capaz de
ações tão heróicas que parecem divinas. No meio humano hostil em que viveu, entre a natureza agressiva que o rodeava, tudo
suportou com heroísmo porque acima de todos os dons, além dos atributos, ele seguiu as palavras de Cristo. Amou o próximo.
O Padre José de Anchieta chegou ao Brasil em 1553, desembarcando
na Bahia. Em janeiro de 1554, foi nomeado regente do colégio de Piratininga, colégio fundado nesse mesmo mês por ele, pelo Padre
Manoel da Nóbrega e outros que tinham vindo da Bahia.
O próprio Padre José de Anchieta disse em carta escrita para Roma
ao fundador da Companhia de Inácio de Loiola, em agosto de 1554, portanto poucos meses após a fundação do colégio de
Piratininga: "Aqui se fez uma casinha de palha com esteiras de canas por porta, em que moraram
algum tempo, bem apertados, os irmãos; mas este aperto era ajuda contra o frio, que nesta terra é grande com muitas geadas".
Mais adiante lemos: "O vestido era
mui pouco e pobre, sem calças nem sapatos. Para mesa usaram algum tempo folhas largas de árvores em lugar de guardanapos, mas
bem escusavam toalhas, onde faltava o comer, o qual não tinham d'onde lhes viesse senão dos índios que lhes davam alguma esmola
de farinha e às vezes mais raras, alguns peixinhos e caça do mato".
O padre Simão de Vasconcelos escreveu em 1680, baseado nas cartas
e memórias do próprio punho do padre José: "Aqui nesta pobreza se abriu a segunda classe (de
gramática que teve o Brasil, porque já na Bahia se tinha aberto uma); freqüentavam-na todos os nossos irmãos e bom número de
estudantes brancos e mamelucos que acudiam das vilas circunvizinhas. Lia esta classe o irmão José de Anchieta, ocupação em que
perseverou alguns anos, com grande aproveitamento de seus discípulos e com maior opinião de sua santidade... No mesmo tempo era
mestre e era discípulo, e os mesmos lhe serviam de discípulos e mestres, porque na mesma classe, falando latim, alcançou das
falas dos que o ouviam a mór parte da língua do Brasil, que brevemente aperfeiçoou com tal excelência que pôde reduzir aquele
idioma bárbaro a modo e regras gramaticais, compondo artes d'elas, tão perfeitas, que aprovadas dos mais famosos línguas,
foram dadas à impressão e têm servido de guia e mestre d'aquela faculdade aos que depois vieram com proveito e facilidade e
d'elas a lição particular em alguns colégios da província... Era destro em quatro línguas, portuguesa, castelhana, latina e
brasílica; em todas elas traduzia em romances-pios, com muita graça e delicadeza..."
A casa em que residiam possuía 14 passos de comprimento por 10 de
largura. Nessa única sala havia a escola, a enfermaria, o dormitório, o refeitório e a cozinha.
Tinham por camas redes.
Por cobertores o fogo.
As roupas poucas e pobres.
Não possuíam sapatos.
Sabe-se que o principal alimento era farinha de pau feita de
raízes - mandioca.
Alguma caça oferecida pelos índios; carne de macaco, de corça, de
lagarto. Alimentavam-se também de abóbora, de folhas de mostarda e outras ervas cozidas. Fabricavam vinho de milho cozido em
água e mel. Quando a fumaça dentro de casa era espessa e acre, "preferiam o frio de fora do que o
fumo de dentro".
Conforme o irmão José escreveu ao superior em Roma, a casa era
coberta de palha com esteira de canas como porta. Pois nessa pobreza, nesse desconforto, nesse infortúnio de missionários, que a
qualquer outro tiraria a vontade de viver, Anchieta escreveu também aos superiores: "Quase não nos
parecemos a nós mesmos pobres!"
Ama o próximo como a ti mesmo! Ele amou os "meninos órfãos nascidos de pai português e mãe brasílica". Ensinou-os a ler e a
escrever. Fez para cada discípulo um caderno e muitas madrugadas vieram encontrá-o ainda com a pena na mão, escrevendo. Ensinou
a doutrina cristã, ensinou cantigas e quando seus companheiros caminhavam ou cortavam lenha nas matas, louvavam o Salvador em
cantos instruídos por Anchieta.
Ele fabricou alpercatas de duros espinhos porque assim podiam
caminhar pelos ásperos caminhos.
Ele amou devotadamente seus companheiros de trabalho. Amou os
órfãos abandonados; amou "as pobres rosas nascidas entre espinhos",
amou todos os ferozes habitantes desta terra, mesmo os índios tamoios.
Ama o próximo como a ti mesmo! Tornou-se prisioneiro dos tamoios,
voluntariamente em Iperoig, durante quatro meses e meio, e obteve, pelo amor e pela mansidão, a paz entre os portugueses e o
filho do Pindabuçu, o mais feroz de todos os índios, capaz de todas as crueldades.
De Reritiba a Vitória,
gravura em relevo de Mastroiani.
Cerca de três mil índios, em cortejo, levaram o corpo de Anchieta à capital
capixaba
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Numa véspera de Corpus Christi, Anchieta e padre Manoel da Nóbrega
passaram grande perigo. Perseguidos pelos índios chefiados pelo filho de Pindabuçu, correram pela praia, atravessaram o riacho,
arrastaram-se por brenhas espinhosas e alcançaram a cabana, pensando ali encontrar um índio amigo. Mas não havia ninguém. Caíram
de joelhos esperando a morte. Entre grande alarido e gritos de guerra chegaram os perseguidores. Que encontraram? Dois pobres
homens trôpegos e doentes, maltrapilhos, desarmados, sem defesa, de joelhos, orando. Tudo se transformou. O filho de Pindabuçu,
quando deparou com os dois missionários rezando, em vez de deixar cair a clava sobre suas cabeças, disse depois: "Entrei, vi os padres e lhes falei, caiu-me o coração e fiquei mudo e fraco. Eu não os matei e já nenhum os há de
matar, ainda que todos os que vierem hão de vier com o mesmo propósito e vontade".
O feroz indígena confessou que não teve coragem. Em vez de deixar
cair a clava sobre as pobres cabeças, "caiu-me o coração e fiquei mudo e fraco".
Como o tratado de paz não chegava à praia de Iperoig, após esse
episódio que foi o mais ameaçador entre tantos outros, estando o padre Nóbrega doente e cansado, decidiu partir.
Foi então que José de Anchieta ficou só, em contínuo risco de
vida. Os índios, com o temperamento variável e inconstante dos selvagens, um dia pareciam amigos, em outro inimigos. Foi quando
Anchieta desejou e esperou a morte brutal. Nos versos que escreveu na areia, desejou a morte como prêmio ao seu martírio. Narrou
no poema a vida de Nossa Senhora para que a Linda Menina o livrasse daquele meio horrível de corrupção moral. O poema em quase
6.000 versos termina tristemente:
"As inspirações do céu
Eu muitas vezes desejei penar
cruelmente expirar em duros ferros.
Mas sofreram merecida repulsa
os meus desejos;
SÓ A HERÓIS
COMPETE TANTA GLÓRIA."
O padre José de Anchieta sentiu-se amargurado, não morreu
martirizado. Mas ele morreu todos os dias durante quatro meses e meio. "Cada dia bebíamos tragos de
morte", como escreveu ao seu superior. Ele sofreu mil mortes, foi muitas vezes mártir. Esperou a
todo o instante, dia e noite, o tacape abrir-lhe o crânio; morreu da morte lenta durante quatro meses e meio.
Seu amor ao próximo foi mais forte que a ferocidade dos selvagens.
Foi mais forte que o ódio, que a perseguição, que a crueldade infinita do filho de Pindabuçu.
Os silvícolas espreitavam aquele homem fraco e humilde escrevendo
nas areias de Iperoig, procurando compreendê-los, desejando comunicar-lhes as palavras de Cristo, servindo-os. Um dos índios
disse um dia: "Ele é mais que homem". Na sua simplicidade, não soube
explicar que ele já era santo, mas descobriu que era mais que homem.
Narra o padre Antônio Vieira que os embaixadores perguntaram a São
João Batista quem ele era e ele respondeu o que fazia, "porque cada um é o que faz e não é outra
coisa. As coisas definem-se pela essência: João Batista definiu-se pelas ações. Porque as ações de cada um são a sua essência.
As ações generosas, e não os pais ilustres, são as que fazem os homens".
Que fez José de Anchieta durante sua vida no Brasil, se não um
verdadeiro apostolado de amor? Foi catequista, trabalhou pela paz, pregou o Evangelho, foi professor dos índios e mamelucos,
ensinou cânticos e quando prisioneiro dos tamoios escreveu o Poema na areia, provando deste modo o poeta sutil, o poeta
maravilhoso, o primeiro poeta do Brasil.
Escreveu Autos para os índios representarem e no Auto de
Representação na festa de São Lourenço há versos assim:
Oh perdido!
Alli serás consumido
Sin nunca te coinsumir
Alli vida sin vivir
Alli lloro y gran aullido
Alli muerte sin morir
Planto será tu reir,
Tu comer hambre mui fiera
Tu beber, sed sin manera
Tu sueno nunca dormir,
Todo esto ya espera.
Pelos versos acima e muitos outros que escreveu, não só nos Autos
para representação, mas na descrição da vida de Nossa Senhora na areia de Iperoig, dá sobejas provas do poeta magnífico que foi.
"Porque cada um é o que faz", como escreveu Antônio Vieira, o padre
Anchieta definiu-se pelas ações heróicas, dignificantes, extraordinárias, que formaram sua própria essência. Essência do homem
bom, e humilde, e justo e Santo.
Certa vez, o índio Cunhambebe disse dele: "Deixá-lo. O pajé fala com o céu. Tupã mandou as avezinhas para saber seus desejos".
Diante da bondade infinita de Anchieta, os índios tornaram-se
bons. "Foi mais que homem", definiram os índios.
A maior glória do padre Anchieta foi seu amor ao próximo. Ele
amou o próximo mais que a si mesmo. Isso o definiu e o santificou.
Esse foi o "Ínfimo da Companhia de Jesus".
Cidade de Anchieta, antiga aldeia
de Reritiba, no Espírito Santo, na década de 1960/69
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
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