Situação literária de Anchieta (I)
Mello Nóbrega
Quando, entre nós, se rearticula o
movimento piedoso, junto às autoridades eclesiásticas, para aceleração do processo de canonização do Padre José de Anchieta, não
será descabido se promova, também, a revisão da controvérsia crítica de sua obra literária. O primeiro santo brasileiro terá
sido, realmente, o primeiro poeta brasileiro? Qual o seu mérito? Como situá-lo, na história das correntes literárias?
Para quem não esteja familiarizado com as indagações críticas,
essas questões parecerão ociosas, tanto nos acostumamos a considerar Anchieta como figura precursora de nossa poesia, admiração
que se confunde com os atributos de santidade reconhecidos no Apóstolo do Brasil.
Dúvidas têm sido levantadas e ainda perduram, em alguns
historiadores de nossa literatura, suscitando divergências que só não se tornaram polêmica pelo respeito que a todos, mesmo aos
autores agnósticos e anticatólicos, inspira a memória do sacerdote, cujas virtudes ungiram as origens de nossa nacionalidade.
A muitos afigurar-se-á intempestiva, senão malpropícia, a
revivescência do velho debate, agora que se promovem homenagens oficiais ao Venerável José de Anchieta e fazem orações pela sua
santificação. Qualquer dúvida sobre seus méritos, mesmo os humanos, corre o risco de ser havido por irreverência.
Ressalve-se, desde logo, que nossa revisão não envolve qualquer
restrição ou dúvida, nem mesmo quanto aos valores humanos do Padre José, ao colocar-se na restrita angulação de sua capacidade
artística. A santidade floresce fora e acima das aferições da inteligência e da cultura: tanto pode manifestar-se na sabedoria
dos teólogos, como no sangue dos mártires ou na ingenuidade daquele pelotiqueiro que rezava, diante de Nossa Senhora, suas
habilidades de prestímano.
Nossa enquisa não vai além de simples levantamento
crítico-literário. Afizemo-nos de tal maneira à aceitação consensual de Anchieta como escritor brasileiro, que qualquer opinião
contrária nos surpreende e molesta. As dissenções existem, porém, e não são novas. Vêm-se repetindo, há mais de um século, e
ainda subsistem, ressurgindo, de quando em vez, sempre assentadas nos mesmos argumentos, ou melhor, sempre a repetir
fundamentações que se alternam ou reforçam: o poeta não nasceu em nossa terra, sua obra é escassa e comprometida, seu valor
literário é discutível.
Passemos revista a alguns dos compêndios, monografias e
florilégios de nossa poesia.
O Padre Januário da Cunha Barbosa, nosso primeiro antologista, em
seu Parnaso Brasileiro, publicado em 1831, nem sequer mencionou a obra anchietana.
O Florilégio da Poesia Brasileira, de Adolfo Varnhagen,
editado em 1850, restringindo a coleta aos autores nascidos em nosso território, também a excluiu de suas páginas.
Em livro adotado, por muitos anos, pelo estabelecimento-padrão de
nosso ensino secundário, o Curso Elementar de Literatura Nacional, editado em 1862 e reimpresso vinte anos depois, o
Cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro também omitiu o nome de Anchieta.
Esse livro, de duradoura influência didática, embora escrito por
um sacerdote e prestigiado por um colégio oficial, em país constitucionalmente católico, não menciona, ainda que em simples
referência, as primeiras manifestações de nossa poesia. Note-se que, apesar do título, o compêndio abrange a literatura
portuguesa, desde seus primórdios, começando por lembrar um certo Frei João Camelo, capelão de D. Afonso Henriques.
Só no capítulo derradeiro o autor passa a reconhecer a existência
de uma literatura caracterizadamente nossa: "Nenhuma distinção havemos até agora estabelecido entre
os dois povos que, através do Atlântico, falam a língua de Camões: dividindo em escolas a sua literatura, classificamos
indistintamente nelas brasileiros e portugueses, conforme entendemos pertencerem-lhes seus escritos. Assinalamos todavia por
mais de uma vez certa fisionomia própria que caracterizava os poetas americanos, e que os extremava de seus irmãos de além-mar:
diferenças essas provenientes da influência do clima e dos costumes, mas que não eram, a nosso ver, suficientes para constituir
uma literatura independente.
"Bem que nos pese apartar-nos da
opinião de um particular amigo a quem muito respeitamos pelos seus profundos conhecimentos na matéria (Joaquim Norberto de Souza
e Silva), não pensamos que possa existir literatura brasileira antes da época que vamos estudar (a Escola Romântica).
Fortalecem-nos nesta crença as seguintes palavras escritas por um distinto compatriota nosso (Domingos Gonçalves de Magalhães): 'Cada povo tem a sua literatura, como cada homem tem o seu caráter, cada árvore o seu fruto. Mas esta verdade
que, para os primitivos povos, é incontestável e absoluta, todavia alguma modificação experimenta entre aqueles cuja civilização
apenas é um reflexo da civilização de outro povo. Então, semelhante às árvores enxertadas, vêem-se pender dos galhos de um mesmo
tronco frutos de diversas espécies, e posto que não degenerem aqueles que do enxerto brotaram, contudo algumas qualidades
adquirem, dependentes da natureza do tronco que lhes dá o nutrimento, as quais as distinguem dos outros frutos da mesma espécie.
Em tal caso, porém, as duas literaturas marcham à(sic)par, e
conhecer-se pode qual a indígena, qual a estrangeira. Em outras circunstâncias, quais as águas de dois rios, que em um
confluente se anexam, e confundidas num só leito se deslizam, as duas literaturas de tal jeito se aliam, que é impossível
separá-las'. Na última dessas hipóteses pensamos poder colocar as obras dos brasileiros que
escreveram antes que o sol da independência literária luzisse sobre o firmamento da pátria. Dissemos independência literária e
não política, porque esta precedeu àquela: formamos primeiro uma nação livre e soberana, antes que nos emancipássemos do jugo
intelectual; hasteamos o pendão auriverde, batizado pela vitória nos campos de Pirajá, muito tempo antes que deixassem de ser as
nossas letras pupilas das ninfas do Tejo e do Mondego".
Aí está: o douto professor de Retórica, Poética e Literatura
Nacional do Colégio de Pedro II só reconhecia nossa autonomia intelectual a partir de 1826. Todo o longo processamento de uma
consciência natural, política e literariamente sedimentada - as rebeliões, os novos costumes, as alterações da linguagem, as
influências do meio, a diversificação da sensibilidade -, nada significava para Fernandes Pinheiro. Essa opinião, que já tinha
contraditores, seja dito, denuncia influências culturais lusitanizantes, documentando transigências aulicistas que represaram e
retardaram nossa completa emancipação literária.
Certa submissão às glórias portuguesas, o zelo pela boa linguagem
à maneira de além-mar (nem sempre respeitado, como se vê do trecho transcrito...) e no culto de seus clássicos, tudo isso era,
de algum modo, reverência prestada à nossa casa reinante, ligada pelo sangue e por compromissos políticos à dinastia lusitana. É
de notar-se que Fernandes Pinheiro, com sua obra, pleiteou e obteve o diploma de sócio correspondente da Academia Real das
Ciências de Lisboa, graças ao parecer favorável de Rebelo da Silva e de Silva Túlio, datado de 28 de janeiro de 1864.
Dois anos depois da reedição desse compêndio, Melo Morais Filho,
em seu Parnaso Brasileiro, insurgiu-se contra a exclusão do Padre José de Anchieta de nossos registros literários: "Não nasceu no Brasil, é exato; mas Ossian, o chefe da tribo dos bardos, o preludiador nas harpas das nuvens, o
poeta nacional da Escócia, era escocês?" O argumento, convenhamos, não era dos mais válidos por
isso que o herói invocado, embora ligado à tradição erse, não passou de figura lendária, popularizada pelo embuste de Macpherson,
que tão fundamente impressionou os poetas românticos.
Nesse mesmo ano (1885), Eduardo Perié, em A literatura
brasileira nos tempos coloniais, do século XVI ao começo do século XIX, também não acolheu poemas de Anchieta.
Anchieta escreve o poema à Virgem
nas areias de Iperoig
(de Cândido Portinari, óleo sobre madeira, 0,56 x 0,46, acervo do Banco Itaú)
Imagem: Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Ed.Nova Cultural Ltda.,
S.Paulo/SP, 1998, vol. 2
Sílvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira
(1888), ao estudar sua primeira época ou período de formação, assim focalizou a contribuição de Anchieta, como poeta e
dramaturgo: "Durante quase meio século o ilustre Apóstolo do Novo Mundo foi o grande instrutor das
populações brasileiras nos primeiros tempos da conquista. Só por este fato, tinha direito de figurar na história literária do
país, ainda que não houvesse escrito uma só palavra. Se se considerar, porém, que os primeiros autos e mistérios representados
nesta parte da América são devidos à sua pena; que ele escreveu poesias e outros trabalhos, ainda mais firmes se o tem de
colocar em seu lugar...
"Bafejado, além disso, desde a sua mais tenra infância, pelo sopro
popular da poesia anônima, que nas ilhas Canárias e nos Açores, em seu tempo, medrava fortemente; imbuído dessa melancolia,
desse misticismo poético, tão próprio ao meio insulano, bem se compreende a razão por que, de todos os missionários, foi ele dos
poucos que escreveram poesias e compreenderam as canções dos tupis. O culteranismo de sua educação não pôde estiolar
completamente suas qualidades nativas. Não é nos versos latinos que deve ser estudado; é antes em suas cartas, e em suas poesias
portuguesas, ou ainda nas tupis... Tem-se aí diante um tipo que deve ser estudado imparcialmente, detidamente pela face
literária".
Deixando de parte duas afirmativas de Sílvio Romero (as que dão a
Anchieta a primazia na composição, entre nós, de peças dramáticas, e lhe atribuem formação culteranista), fixemo-nos nesta
conclusão: "Não tivemos naquele século uma só produção literária, que mereça ser lembrada, além das
de Anchieta".
Cabe ao escritor sergipano o mérito de haver sido o primeiro a
incluir o Padre José entre os nossos poetas. O trecho transcrito, da História da Literatura Brasileira, foi divulgado
sete anos antes da publicação da obra, pelas páginas da Revista Brasileira (15 de novembro de 1881), antes, portanto, que
Melo Morais Filho incluísse Anchieta em seu Curso de Literatura Brasileira (2ª edição, 1882) e no Parnaso Brasileiro
(1885).
Melo Morais Filho, todavia, foi além, reivindicando para o jesuíta
a posição de criador da literatura nacional, contra o que Sílvio Romero, em nota à sua obra, apresentou os seguintes argumentos:
a literatura não é uma realização individual, não tem criadores, mas apenas tipos representativos, não sendo admissível, no caso
de Anchieta, a criação de uma literatura antes da existência do povo; nosso catequizador não teve intuitos literários, mas
apenas desígnios edificantes e educativos; para ocupar o lugar que se lhe pretendia atribuir, faltava a Anchieta "o misterioso impulso do nascimento, o único que sabe dar completamente a nota pátria"; a obra do jesuíta foi escrita em quatro línguas, não sendo a nossa a mais usada; Anchieta não foi o único a
escrever autos e poemas, pois outros sacerdotes também o fizeram, entre eles o Padre Aspicuelta Navarro.
Essas observações merecem reparo, notadamente a de que o lugar de
nascimento de um escritor é o elemento predominante, definidor de sua nacionalidade artística. Nesse ponto, Sílvio Romero apenas
repetiu a motivação excludente de Varnhagen.
Em História da Literatura Brasileira, depois de conceituar
o que considerava a primeira manifestação de nossa arte escrita, José Veríssimo creditou a Bento Teixeira o mérito de sua
iniciação, embora não reconhecendo, na Prosopopéia, qualquer valia que a recomende por outros títulos senão o da
precedência cronológica. Da que denominou "poesia jesuítica", pôs em ressalte a de Anchieta, negando-lhe, entretanto,
significação artística:
"São puras obras de catequização,
devoção e edificação sem intuitos nem qualidades literárias, apenas conhecidas de fragmentos e sem unidade de estilo ou sequer
de língua, pois as escrevia, consoante o interesse do momento, em português, latim ou castelhano e ainda em tupi e até misturava
esses idiomas. Mas essas mesmas composições... estão manifestamente revelando no piedoso jesuíta uma vocação de escritor. Foi
seguramente um poeta, menos, porém, nestas obras, a que apenas salva a ingenuidade da intenção e a pureza do sentimento que lhas
inspirou, que pelo seu ardente e esquisito sentimento do divino e profunda simpatia com o gentio cujo se fez apóstolo... Quanto
às suas composições poéticas, essas apenas lhe autorizam a menção do nome, por outros e melhores títulos glorioso, entre os
nossos primitivos versejadores. São tanto literatura como os diversos catecismos bilíngües escritos no período colonial".
Para José Veríssimo, Anchieta foi um poeta gorado, uma vocação
abafada pela missão a que se dedicou, nome a ser escrito nos brancos marginais de nossa história literária.
Oliveira Lima, em Aspectos da Literatura Colonial Brasileira,
contraditando Sílvio Romero, ampara a exclusão dos escritos jesuíticos, globalmente, de nosso patrimônio cultural, recorrendo a
argumentos mais sutis, ainda que não mais esclarecidos: "O rol do distinto crítico sergipano
poderia ser até alongado, no caso de devermos realmente considerar como escritores nacionais aqueles sacerdotes, que abjuravam
cegamente nas mãos de um geral toda a preocupação de pátria, vivendo e operando exclusivamente para a sua sociedade, num
internacionalismo de afeições e comunismo de ambições que marcam-lhes domínio à parte na história das congregações religiosas...
Eis o que falta nos escritos dos jesuítas, com exceção talvez de Simão de Vasconcelos: essa nota sincera de entusiasmo, esse tom
estimulante de paixão pelo Brasil, que eles substituem pelo cuidado nas vantagens coletivas da Ordem e nos benefícios da
introdução ou conservação da idéia católica entre os elementos da mesclada população... Não lhes cabe... lugar no número dos
precursores de uma literatura nova que, não podendo reclamar originalidade, exigia pelo menos o sinal da admiração e do carinho
pela nação da qual ela tendia paulatinamente a tornar-se a expressão".
Para Oliveira Lima, os jesuítas, apátridas voluntários,
concentrados nos objetivos de sua comunidade, não tiveram, pela terra que desbravaram em sua missão civilizadora, a menor
parcela de interesse humano. A afirmação é de uma falsidade evidente. A obra evangelizadora da Companhia, pela ação e pela
palavra, está indissoluvelmente ligada à história de nossa formação. No caso especial de Anchieta, esse entusiasmo requerido por
Oliveira Lima documenta-se em muitos escritos, entre os quais o primeiro registro descritivo das espécies animais e vegetais
nativas.
A afirmativa de Oliveira Lima é, além disso, em si mesma,
contraditória: negando aos jesuítas qualquer apego ao Brasil nascente, reconhece que o afeiçoaram. À falta de qualquer título
específico, bastaria esse para integrar os padres inacianos em nossa cultura. Em verdade, porém, sua ação foi muito mais direta,
expressando-se, precisamente, nessa participação apaixonada, que pretenderam negar-lhes.
Ronald de Carvalho, em sua Pequena História da Literatura
Brasileira, amparando-se em Sílvio Romero, repete-lhe as restrições: "Como acentua Sílvio
Romero, não assiste aos que o têm excluído da nossa literatura a menor razão. Ele (Anchieta é o mais antigo vulto da nossa
história intelectual)... Se é certo que o padre Anchieta não era um admirável escritor, possuía, entretanto, aquelas virtudes
indispensáveis para vir a sê-lo... O estilo das suas poesias, sem relevo, mas puríssimo, dará a medida da sua imaginação viva e
colorida"...
Apresentando os Cantos de Anchieta, na edição da Academia
Brasileira de Letras (1923), Afrânio Peixoto, embora adstrito ao critério cronológico, considera esses poemas as primeiras
manifestações de nossa literatura: "Em vernáculo e tupi não podem ser de nós esquecidas. As
primeiras têm o mérito de serem as primeiras letras que possuímos escritas no Brasil, além das cartas políticas e históricas, de
outro gênero literário... Discuta-se, com argumentos mais ou menos especiosos, se daí começa a literatura brasileira;
historicamente, e com uma finalidade sublime, não há a menor dúvida que as poesias e autos perdidos do Padre Navarro, os
remanescentes do muito que escreveu Anchieta, são as nossas primeiras letras".
Menos radical, Jorge O. e Almeida Abreu, na História da
Literatura Nacional (1930), obra despretensiosamente didática, reconhece em Anchieta apenas "um
ponto de partida, um precursor".
Fernando de Azevedo, em A Cultura Brasileira (1943), voltou
ao ponto de vista de José Veríssimo, considerando todas as obras de nosso primeiro século como simples capítulo colonial da
literatura portuguesa, admitindo, todavia, na epistolografia jesuítica daquele período, "um
interesse particular, mais que informativo e documentário". Só na centúria seguinte teriam
aparecido os primeiros poetas e prosadores brasileiros de nascimento, ainda que portugueses pelo pensamento e pela expressão.
Essa conceituação de nacionalismo literário excluiu, de plano, o
Padre Anchieta de nossos registros culturais. Artur Mota, em História da Literatura Brasileira, já o dissera, em menos
palavras: "Com rigor, pode-se afirmar que não existiu uma literatura nacional no século XVI".
Citando essa peremptória negativa, Sílvio Júlio (Reações da
Literatura Brasileira, 1938) assim conclui suas considerações, sem aludir, nominalmente, a Anchieta: "No decorrer do século XVI o Brasil, que não contou com um único literato nascido em seu território, viu-se
inteiramente esquecido, quanto a assuntos culturais, pelas autoridades portuguesas. Se os jesuítas não ministrassem aos
mamelucos umas tinturas de instrução primária e o catecismo, aqui o mais perfeito dos analfabetismos grassaria como peste. Nem
universidades, nem tipografias tivemos. Assim se explica que nossa literatura seja nula no decorrer do século XVI, enquanto a
das principais colônias espanholas, que eram servidas por universidades e tipografias, florescia promissoramente".
Desse trecho se infere que o critério de nacionalismo literário
adotado por Sílvio Júlio é o do nascimento dos autores e não o da significação de suas obras. Tal ponto de vista, embora
discutível, não apequena, pelo menos, a figura de Anchieta.
As opiniões contrárias à consideração do Padre José como poeta
brasileiro não impediram que alguns de seus poemas figurassem num florilégio editado oficialmente (Antologia dos Poetas
Brasileiros da Fase Colonial). O selecionador e comentador da coletânea, Sérgio Buarque de Holanda, embora advertindo que
não se podem atribuir "com absoluta segurança à autoria do Padre Anchieta todas as poesias que
correm em seu nome", arrolou algumas, as mais conhecidas e estimadas. O autor de Ao Santíssimo
Sacramento não só figura na antologia, mas ocupa-lhe o primeiro lugar, com precedência cronológica no levantamento de nossos
poetas.
Esse reconhecimento já fora manifestado também por Joaquim Ribeiro
que, por ocasião do quarto centenário do nascimento do Padre Anchieta, considerando-o "o mais antigo dramaturgo de nossa
literatura", intencionou publicar, sob os auspícios da Escola Dramática Municipal do Rio de Janeiro, seus autos escritos em
português. Mais tarde, em Estética da Língua Portuguesa, o mesmo escritor incluiu uma reconstituição do Auto de Santa
Úrsula e de outro, composto em honra do visitador Padre Bartolomeu Simões Pereira, denominando-o Auto da Crisma,
ilustrando os textos com ligeiras lições críticas.
Otto Maria Carpeaux, em sua Pequena Bibliografia Crítica da
Literatura Brasileira (1952), obra publicada pelo Ministério da Educação, excluiu do rol dos autores brasileiros todos os do
século XVI, "por não haverem influenciado na evolução posterior" de
nossas letras. Respeitamos a opinião do ilustre organizador e comentarista, mas divergimos de seus fundamentos. Não é a
influência exercida por um literato o elemento caracterizador de sua nacionalidade. Se assim fora, todos os pequenos escritores,
que os há em todas as línguas, no modesto isolamento de suas obras, ficariam sumariamente suprimidos dos registros literários.
Se assim fora, nós teríamos que considerar de algum modo brasileiros muitos autores de outras terras e línguas, por haverem,
marcadamente, exercido influência sobre nossos poetas e prosadores.
A propósito do ponto de vista de Otto Maria Carpeaux, na maneira
pela qual foi formulado, ocorre-nos perguntar: e a influência de um autor sobre seus contemporâneos, embora sem repercussões
diretas nas gerações seguintes? E sua ação no meio-ambiente, social e cultural, ainda que sem projeções históricas? E, afinal,
como adquirir a possibilidade de evolução regressiva, que a tanto equivale a desnecessária acentuação de posterioridade?
Em 1955, no volume I, tomo primeiro de A Literatura no Brasil,
obra planejada e dirigida por Afrânio Coutinho, dois estudos monográficos aludem à poesia anchietana. Num deles, de Domingos
Carvalho da Silva, As origens da poesia, assim se estabelece sua situação cronológica: "Como
poeta, Anchieta teve por antecessor, em S. Vicente, outro jesuíta, o Padre Aspicuelta Navarro. A obra ocasional desse
catequizador perdeu-se, no entanto, e ficou sendo apenas uma referência e não um documento, um marco histórico. Mas, apesar de a
poesia de Anchieta ser esse marco e esse documento, não são poucos os críticos e historiadores da literatura brasileira que têm
negado um lugar no Olimpo nacional ao autor das trovas A Santa Inês. Varnhagen, por exemplo, só enquadrou no seu
Florilégio, como brasileiros, os poetas nascidos em solo americano. O estudo objetivo do surto e desenvolvimento da poesia
brasileira da época colonial dispensa, no entanto, qualquer preocupação decorrente do local do nascimento das personagens que
animaram os primeiros passos da vida literária do país".
A segunda monografia, de Armando de Carvalho, estuda, em conjunto,
A literatura jesuítica, creditando-lhe, de igual modo, a precedência de Anchieta nas letras brasileiras: "Anchieta foi um poeta, e poeta lírico... Simultaneamente com o teatro, criado e orientado pelos jesuítas,
assiste-se ao alvorecer da poesia, servida principalmente pelo poeta que foi José de Anchieta. A publicação integral de suas
Poesias coloca-o em posto ímpar na história da poesia quinhentista, como bem salientou o padre Hélio Viotti, ao prefaciar a
monumental edição".
Em magnífico escorço critico-histórico, Do barroco ao rococó,
também incluído em A Literatura no Brasil, Afrânio Coutinho afina, em opinião, com os seus colaboradores, ao afirmar que,
"com a valorização da literatura jesuítica, já agora amplamente conhecida, avulta o significado da
obra de Anchieta, situando o doce evangelizador do gentio como o fundador da literatura brasileira".
A propósito, Afrânio Coutinho lembrou as palavras de Afrânio Peixoto: os escritos anchietanos foram os primeiros no Brasil,
"para brasileiros", no século XVI, quando os demais eram "sobre o Brasil", para europeus (Panorama da Literatura Brasileria,
1947).
Em rápidos retrospectos da literatura paulista, publicados,
respectivamente, no Diário de S. Paulo e na Folha da Manhã, em janeiro de 1954, Carlos Burlamaqui Kopke e José
Geraldo Vieira dissentiram dessa aceitação, já consensual, de que o Padre Anchieta foi o primeiro poeta brasileiro: aquele
reconhece-lhe, apenas, o lugar de "precursor"; este nega-lhe qualquer significação literária: "A
poesia de Anchieta é circunstancial, de tarefa, mas não será imaginação dizer que o Poema à Virgem se filia à mística
ibérica tanto no tema como no léxico".
Não sabemos porque José Geraldo Vieira desprezou sumariamente os
versos de Anchieta escritos em português, para amparar sua opinião no poema composto em latim. O alegado misticismo dessa obra,
além disso, é inerente ao tema versado, não valendo, pois, como generalização crítica. Nem aproveita ao julgamento o caráter
aplicativo da obra anchietana escrita em português, apresentado, desdenhosamente, como "circunstancial" e "de tarefa". Foi essa
finalidade educativa e edificante, precisamente, que a vinculou à nossa nacionalidade, dando maior significação a seus valores
literários.
Alceu de Amoroso Lima (Quadro sintético da Literatura
Brasileira, 1956) assim ressaltou essa particularidade: "Aproveitando temas e personagens na
mitologia indígena e introduzindo temas e personagens do cristianismo, (os jesuítas) criaram uma forte arte original que iria
constituir o capítulo inicial da nossa história literária. A figura máxima nesse terreno foi a de José de Anchieta S.J. ...
Humanista, poeta em latim, castelhano e português, filólogo que iniciou os estudos das línguas indígenas, historiador,
epistológrafo, dramaturgo, tem sido Anchieta considerado, com razão, como fundador da literatura brasileira".
Em 1959, em obra de caráter didático (José de Anchieta - Poesia),
Eduardo Portela assim começou seu estudo crítico sobre a figura liminar de nossa literatura: "Como
poeta que foi o primeiro de nosso quinhentismo, ao Padre Anchieta corresponde, em nossas letras, o papel de iniciador de nossa
poesia. Mas não é justo que apenas essa circunstância deva falar da sua poesia. Anchieta foi o primeiro poeta brasileiro
sobretudo pelo sentimento nativista, tão arraigado nele".
Péricles da Silva Pinheiro (Manifestações literárias em São
Paulo na época colonial, 1961), estabelecendo paralelo entre Anchieta e Bento Teixeira, assim o concluiu: "Mais do que o escritor da Prosopopéia, e do Auto da Pregação Universal, não pode, entretanto, ser
excluído da nossa literatura, mas ao contrário situado em suas legítimas nascentes, a bem dizer como ponto isolado de referência
e de partida, pela mesma razão superior e obvia de que é impossível dissociá-lo do processo de formação da nossa sociedade civil
e ainda com melhores motivos da nossa história geral".
A nacionalidade literária do Padre José de Anchieta já não é
objeto de dúvidas entre muitos e credenciados historiadores e críticos de nossa poesia. Tão pacificamente, que começa a
delinear-se a questão de saber a que região brasileira deverá ser o poeta especialmente vinculado. Já não se discute se é, ou
não, brasileiro; reivindica-se, tenta-se reivindicar, sua regionalidade. O problema parece-nos inconsistente, porque o
reconhecimento de que Anchieta, por sua vida e obra, se integrou em nossas origens, não admite particularização exclusivista.
Os grandes vultos de uma nacionalidade não são divisíveis por
preconceitos, vaidades ou venerações localizantes. Que sejam cultuados mais intensamente nos lugares em que nasceram ou deixaram
traços mais representativos de sua personalidade, isso é, porém, perfeitamente compreensível. Compreensível e louvável.
A obra catequética e cultural de Anchieta exerceu-se mais
decisivamente no planalto piratiningano, onde escreveu alguns de seus autos e poemas e desenvolveu uma atividade pioneira e
variada que o liga, intimamente, à história de São Paulo. Daí a reclamá-lo como poeta paulista vai exagero só explicável pelo
zelo que põem os paulistas na exaltação de sua influência na formação nacional e, talvez, como revide sentimental ao descaso com
que, por muito tempo, foi tratada a causa do brasileirismo precursor do Padre José. O fato é que, em publicação oficial, a
Antologia dos Poetas Paulistas (1960), organizada por Domingos Carvalho da Silva, Oliveira Ribeiro Neto e Péricles Eugênio
da Silva Ramos, Anchieta é arrolado, com precedência cronológica.
O Padre Anchieta não pertence aos paulistas, nem aos cariocas, nem
aos fluminenses, nem aos baianos, nem aos espírito-santenses de agora. Se participou da fundação de São Paulo, também esteve
presente na expulsão dos franceses da Guanabara; se missionou no Rio de Janeiro e exerceu o provincialato de sua Ordem na Bahia,
foi em Reritiba que deixou as relíquias de seu corpo castigado e sofrido por amor da terra que fizera sua, da gente em que se
integrara, tanto nas dores do mundo como nos anseios do céu. Anchieta é de todos nós, brasileiros, gloriosa e indivisivelmente.
Missionário, historiador, naturalista, dramaturgo, poeta e, com a graça de Deus, santo - o primeiro santo brasileiro, nosso
primeiro santo. |